PERSPECTIVA PARA AS FÉRIAS
João Ubaldo Ribeiro
Saio
de férias hoje e, se tudo correr como previsto, só volto a aparecer por aqui no
dia 20 de fevereiro. Ou então nunca mais, se desta feita eu conseguir que Vavá
Major me ensine a não fazer nada. Major era peixeiro com banca estabelecida no
Mercado, mas, assim que completou o tempo mínimo, requereu aposentadoria,
vendeu a banca e voltou para casa, no Alto de Santo Antônio, onde agora se
dedica a não fazer nada. A primeira vez em que o vi depois dessa mudança foi
numa visita que ele me fez. Não, não era verdade o que diziam, não era verdade
que ele não fizesse mais absolutamente nada. Naquela hora mesmo, estava me
visitando, isso não era fazer alguma coisa?
–
Esse povo daqui fala muito e é descompreendido da filosofia, não aparece um bom
filósofo aqui desde que Cuiuba morreu – disse ele. – Eu sinto falta.
–
Ah, eu não sabia que tinha filosofia nessa sua situação.
–
Mas é claro! Eu posso não ter estudo, mas sempre escutei os antigos. Então
minha filosofia não é não fazer nada, isso é intriga dos invejosos. Minha
filosofia é sem labuta e sem aporrinhação.
–
Esse é seu lema?
–
É o meu lema filosófico. Cada coisa que aparece para eu fazer, eu examino e
faço duas perguntas. Dá labuta? Dá aporrinhação? Deu labuta ou deu
aporrinhação, não é comigo, estou aposentado. Quem quiser que vá labutar e se
aporrinhar, eu não.
–
Mas, Major, me disseram que você não topa nem jogar dominó.
–
Dá aporrinhação! Você quer mais aporrinhação do que esses jogadores que ficam
contando lorota depois que ganharam na sorte? E perder também aporrinha, estou
fora.
Confessei-me
seduzido pela filosofia dele e pela competência com que ele a aplica. Não é
coisa simples, observou ele, requer muito descortino e atenção, porque a todo
momento aparecem labuta ou aporrinhação, onde menos se espera. Na dúvida, o
melhor é não topar atividade nenhuma sem cuidadoso exame e muito tempo para
ponderar, além de olho vivo onde quer que se ande. Não tive como não concordar
e perguntei a ele se não era possível me passar sua experiência, me dar algumas
aulas, por assim dizer. Negativo, disse ele, para se despedir afavelmente logo
em seguida. A amizade continua firme, mas esse negócio de aula dá labuta.
Este
ano não vou insistir em que ele me dê as aulas, mas vou ver se consigo
permissão para acompanhar sua performance enquanto ele não faz nada. Mas talvez
ele ache que, mesmo que não dê labuta, pode dar aporrinhação, de maneira que
estou jogando com algumas opções. O leque é grande e primeiro me ocorreu saber
de Xepa se sua canoa nova já chegou e, caso afirmativo, se vai dar para a gente
sair e fazer uma pescariazinha de tatu, como ele garantiu que tem acontecido na
ilha. Com esse último, que foi Lozinho de Maroca que fisgou, já são seis tatus
somente este ano, me informou ele. Mas não, infelizmente ele não podia me levar
para pescar uns tatus com ele, agora o Ibama já está alerta e quem ferrar tatu
vai preso, esse Ibama vive atrasando o progresso.
O
Ibama, porém, não se mete nas múltiplas atividades de Zecamunista, que, neste
momento, está começando a pôr em prática seus planos de valorização da terceira
idade. Admito que, de início, desconfiei disso, em vista do rumoroso episódio
da viúva Gonçalves. A viúva Gonçalves, bem madura herdeira de um próspero
comendador, foi durante muito tempo cortejada por Zeca, que alegava estar
fazendo um trabalho de conscientização com ela, destinado a convertê-la,
segundo palavras dele, em mais uma burguesa progressista. Esse trabalho de
conscientização, segundo contam, se realizava basicamente à noite, na casa da
viúva e, aparentemente, era empresa muito esforçada, porque dizem que, nas
horas das lições, o silêncio em torno se enchia de ais, uis e gemidos variados,
certamente oriundos da contundência com que Zeca expunha suas ideias. Há quem
afirme maldosamente que ela financiava as expedições de pôquer dele, mas não se
tem confirmação, cala-te, boca, não adianta revolver o passado, nada nele
desmerece as iniciativas de Zeca para a terceira idade. Aliás, a designação que
ele usa é outra.
–
Terceira idade, não! – bradou ele no bar de Espanha. – Não admito essa
frescura, isso é deboche!
–
Mas todo mundo usa essa expressão.
–Todo
mundo é a massa alienada pela propaganda capitalista! Terceira idade, não! Pior
ainda, melhor idade! E a pior de todas: feliz idade! Eu passo a foice e o
martelo no primeiro que me disser que eu estou na feliz idade! Se não querem
dizer velhice, usem o adjetivo certo, quem já entrou nessa idade sabe qual é.
–
Eu não sei.
–
Bote a mão na consciência, só pode ser indigna idade! Aí eu aceito, é a
expressão da verdade e qualquer velho coroca jura pelo seu fraldão que é o
certo. Indigna idade, isso é o que ela é, tem que reconhecer a realidade e eu
estou promovendo esse reconhecimento. Amanhã mesmo chega um ônibus cheio de
mulher-dama, proletárias do amor que eu contratei em Salvador. É para a
Primeira Semana pela Defesa da Indigna Idade. A única maneira de encarar a
indigna idade é cometer indignidades. Você é casado, mas eu não tenho nada com
as instituições burguesas, sou pelo amor livre. Vai querer aí um vale-rapariga?
–
Não, obrigado – disse eu. – Dá labuta.