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Anos Depois a Terra está em Perigo
Por
Marco Aurélio Luz
PREÂMBULO
No
filme de Joaquim Pedro de Andrade, o personagem Macunaíma e seus acompanhantes,
se deparam com o trânsito da megalópole de São Paulo que do alto observam e
sentenciam: “essa cidade não foi feita pra gente, mas para carros”.
Desde
a ECO Rio 92 foi constatado que o efeito estufa
resultante do uso indiscriminado dos combustíveis fósseis, gerará inúmeras
catástrofes naturais provocadas pelas alterações climáticas.
A
próxima conferência sobre o clima que será esse ano de 2025 em Belém do Pará, vai ter que lidar com a triste
realidade da agressão desenfreada ao meio ambiente e a hipocrisia que insiste
em minimizar a crise climática. Tudo só piorou! Diante disso, estou divulgando um
ensaio que fiz inspirado na atmosfera da ECO Rio 92, compartilhado ao longo dos
anos com muitas gerações.
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Salvar,
porque há ameaças para a vida humana, cessadas as fontes de suprimento
das necessidades dessa espécie, por conta do desgaste do ecossistema
do qual faz parte, principalmente os povos do hemisfério norte, hoje
praticamente dependentes do que permanece no hemisfério sul.
Procuraremos
responder, sumariamente, ao porque chegamos a esse ponto
indagando sobre as origens, isto é, os pontos de ancoragem epistêmica em
que se fundam as civilizações, de onde se desdobram os valores pelos quais
se
organizam, produzem e agem em todos os sentidos aqueles que as integram.
Tentaremos
ilustrar com alguns mitos fundamentais, os paradigmas de formas
de vida estabelecidos nas civilizações que constituíram nossa nacionalidade,
ou seja, as ameríndias ou aborígenes, as europeias e as africanas.
Começaremos
a nossa abordagem pela mais nova e terminaremos com as mais antigas.
A
arkhé, ou ponto de ancoragem da civilização europeia, se concentra nos
princípios originários das culturas greco-romana e judaica.
Tomaremos
como referência a ideia de um movimento pendular desta civilização
onde, de um lado, situam-se princípios prometeicos, e de outro lado,
dionisíacos. Os primeiros se desdobram do mito trágico de Prometeu, que
roubou o fogo de Zeus, e entregou aos homens, pagando por isto o castigo
de
ficar acorrentado nos penhascos, entregue a sanha dos abutres.
Como
narra o mito, é dessa forma que o fogo vem parar na mão dos homens
nas elaborações da cultura europeia. Um poder divino usurpado, que
promove o conhecimento e o desenvolvimento tecnológico, e que envolve uma
forma determinada de organização social, voltada para sua promoção.
Por
outro lado, os princípios dionisíacos estão assentados sobretudo na comunhão
ou reunião da pólis, para compartilhar sentimentos e paixões características
ao culto à fertilidade da mãe terra, pródiga e misteriosa natureza, que
aplaca a angústia existencial num estar junto comunal, segundo alguns sociólogos,
origem da sociabilidade.
O
Renascimento marcará a predominância pendular dos princípios prometeicos,
ajustando princípios judaicos e cristãos às inspirações imperiais romanas,
promovendo novo ciclo de conquista de territórios e povos para além
do continente europeu em busca do “caminho das índias”, alcançando a
extensão litorânea dos continentes africano, americano e asiático.
O
livro do Gênesis 1, 28, 29, base da cultura judaica, erige referências em
relação à natureza ajustada ao impulso prometeico... crescei
e multiplicai-vos, e enchei a Terra, e tende-a sujeita a vós, e dominai sobre
os peixes do mar, sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se
movem sobre a terra. Disse-lhes também Deus: Eis, aí vos dei eu todas as
ervas, que dão as suas sementes sobre a terra; e todas as árvores, que têm
suas sementes em si mesmas... para vos servirem de sustento a vós...
Consequentemente,
vive-se um sistema de vida em que se pode dizer, segundo José Carlos Rodrigues
(1), que “200 milhões de americanos consomem e poluem mais do que o fariam
5 bilhões de índios.”
O
princípio prometeico se combinou não só com a ideia de “povo eleito
por
Deus”
do judaísmo, mas também com os valores ascéticos da noção de pecado
incorporado pelo cristianismo, a sua vocação catequética e evangélica; a
percepção do outro como “pagão” portador do pecado original a ser convertido.
Portanto, a negação do direito à alteridade própria.
A
predominância de princípios prometeico sustentaram a tensão de repressão
às pulsões dionisíacas, aos princípios femininos envolventes do mistério
da mãe terra; e, por outro lado, estimularam a vocação patriarcal, fálica,
conquistadora e avassaladora que caracteriza a bacia semântica dos valores
de organização social da modernidade.
A
chamada “era dos descobrimentos” está assentada nesses princípios. O
estímulo ao desenvolvimento científico-técnico-militar proporcionava as grandes
navegações que deram início ao processo de acumulação de poder e riqueza
à Europa. Onde houvessem territórios ocupados por “pagãos”, a igreja católica
asseguravas aos cristãos a legitimidade de sua ocupação bélica, garantia
de
exploração de trabalho e das riquezas naturais.
O
que se segue nesses quase quinhentos anos de predomínio dos princípios
prometeicos, e chega até os nossos dias, é o mercantilismo, o colonialismo,
o tráfico escravagista e a escravidão, a exploração exaustiva e poluição
da natureza, o imperialismo, guerras e genocídios...
Imagem da internet
Tudo
isso está representado condensadamente pela acumulação de capital
ou dinheiro, forma abstrata de valor que caracteriza o poder hegemônico daquelas
nações que impulsionam este processo derivado dos princípios prometeicos
que englobam também a bacia semântica dos positivismos.
Mas
deixemos nossa herança europeia que sustenta as bases do paradigma
prometeico-positivista do Estado brasileiro, “ordem e progresso”, e passemos
a nossa herança aborígene.
Um
mito de vários povos, especificamente os Nambikwara, narra como o
fogo foi parar nas mãos da humanidade.
Imagem da internet
O tio levou o sobrinho pela primeira vez à floresta para caçar. Logo, ele avistou no alto de uma rocha um ninho de araras. Colocou um tronco encostado na pedra e falou para o sobrinho subir e lançar lhe os ovos.
Chegando
no
ninho, o sobrinho teve dó dos filhotes e se negou a fazer o que o tio pedia.
Este,
depois de insistir um pouco se aborreceu, e tirando o tronco deixou o sobrinho
pra lá. Foi então que apareceu a arara, vendo o menino perto do ninho
não gostou, protestou, fazendo cocô em cima dele e causando tanto alvoroço
que chamou a atenção da onça que por ali passava. Esta, vendo o menino
naquela situação resolveu ajudá-lo, colocando o tronco, para que descesse
e levou-o para sua casa. Lá chegando, preveniu-o do mal humor da sogra
e deu-lhe o arco e a flexa para se defender e foi-se mata a dentro.
O
menino
viu a sogra da onça comendo um moqueado de carne. Depois que ela comeu,
ele que estava com fome, resolveu se servir da carne que já estava muito
assada e na sua boca fazia nhec, nhec, o que irritou a onça. Ela começou
a
rosnar mostrando os dentes.
Foi
então que ele lançou uma flexa e fugiu levando um tição com fogo. Caminhou,
caminhou, até que se deparou com a aldeia.
Surpreendidos
com o fogo, os guerreiros lhe indagaram, e cientes de tudo
foram até a toca da onça, onde pegaram todo o fogo, passando de uns pros
outros, de mão em mão, trazendo para a aldeia. Uma pequena brasa que
restou o sapo cuspiu e apagou, de modo que foi assim que, só a
humanidade detém o uso do fogo (2).
Meditando sobre a história, a antropologia nos indica ser uma representação e elaboração dos limites entre sociedade e natureza, envolvendo o processo de iniciação-socialização, que faz do menino um adulto, diferenciando-se da natureza, integrando-se às regras de cooperação e convivência social.
Mas
o que desejo ressaltar é que o fogo, neste contexto, pode representar a
pulsão da sociabilidade, o estar junto em volta da fogueira compartilhando
sabedoria
e emoções, a harmonização de convivência social humana, e a diferença
da espécie, o cru e o cozido...
Esta
satisfação comunal está distante dos valores individuais da mítica do self
made man, dos heróis à Marco Polo que caracterizam o ideal de ego prometeico
do processo civilizatório europeu, da mítica tecnológica, em que um
pode destruir milhares, como o piloto que lançou a bomba atômica em Hiroxima...
Mas
avancemos em torno de outra herança, a dos povos africanos que para
aqui vieram trazidos pelo tráfico escravagista, principal fator econômico
do
mercantilismo das Companhias das índias.
Um
ditado nagô afirma: “Kosi ewe, Kosi orixá”, sem folhas não há
orixá,
não há existência.
O conto “Odé e os Orixá do Mato” (3) narrado em livro por Mestre Didi, Alapini, adaptado por ele para um auto coreográfico, se tornou a peça principal da experiência de educação pluricultural da Sociedade de Estudo da Cultura Negra no Brasil – SECNEB, denominada Mini Comunidade Oba-Biyi.
O
conto narra que uma vez um famoso caçador, possuidor de poderes extraordinários,
certo dia não conseguiu um só bicho. Pior é que nos dias que se
seguiram também, até que seus suprimentos acabaram e ele teve que retornar
da
mata.
Então
ele foi direto consultar o babalawô – pai do mistério – para saber o
que se passava.
Soube
que a razão de tudo era que havia muito tempo que ele nada fazia
para a floresta. Cabia então ele oferecer aos pés de Iroko, Gameleira sagrada,
uma oferenda de fumo, aguardente e mel, e pedir ao orixá sua proteção para
devolver-lhe seus poderes.
Depois
de ter pago ao babalawô e feito as oferendas prescritas ao pé de Iroko,
logo apareceram vários bichos a sua volta. O caçador se pôs a caçá-los, e
eufórico foi matando a todos que apareciam, arrastando-os para uma choupana
improvisada.
Exausto
e com fome, escolheu uma ave abatida para assar. Foi quando, de
repente, apareceu um pinto molhado.
O
caçador ficou perplexo e assustado quando o viu, e mais ainda quando ouviu
uma voz saindo do fundo da mata:
Estevão,
Estevão...
O
pinto respondia:
–
Oi, home.
–
Venha e traga os outros.
– E
ele também?
–
Ele deixa pra depois.
Em seguida,
ele foi chamando um por um a todos os bichos, que seguindo o
pinto se adentraram pela mata.
O
caçador, apavorado, pegou o que lhe restava, a ave assada e seus
pertences,
dizendo que jamais voltaria à mata, e foi para a cidade.
Imagem da internet
Mitos milenares da tradição africana no Brasil nos alertam o que pode
acontecer com o abuso dos poderes. O mistério que envolve a existência, a restituição, a renovação, a continuidade e expansão
Acervo do autor
Na
origem de sua denominação, nosso país é concebido como Santa Cruz
e logo Brasil, demonstrando que os valores do mercantilismo se
sobrepuseram aos religiosos que legitimaram a conquista europeia pelo Papa.
No
contexto mercantilista, o pau-brasil, matéria-prima para manufatura europeia,
hoje está praticamente extinto. Será essa, inexoravelmente,
nossa vocação. Território de exploração de matéria-prima para
enriquecimento dos europeus na Europa ou nas Américas, em
detrimento de sua própria população; país que não cessa de exportar o que
tem progressivamente. E, os europeus agora
e
pior, com a biodiversidade em seus próprios territórios?! começam
a se perguntar, e se extinguir-se essa fonte de alimento e energia, como
ocorreu com o pau-brasil.
Estará
na hora de refletirmos sobre a adequação do nome Brasil, resultante
do paradigma mercantilista positivista dos tempos modernos, agora em
crise, no alvorecer pós-moderno das preocupações ecológicas, tendências dionisíacas!?
Poderíamos
então sugerir Pindorama, a terra das Palmeiras, como denominaram
aqueles que aqui estavam quando da chegada dos europeus. Ou
ainda Ilê Axé, terra de axé, de dinamização dos princípios cósmicos que regem
o universo, característico dos valores de nossa herança africana. Ou ainda
numa homenagem aos princípios o universo e aos povos fundadores do território,
simplesmente Amazônia, você sugere, você decide...
Notas
Artigo
publicado no Caderno de Cultura do Jornal A Tarde, 1992.
1 Rodrigues, José Carlos. O
Tabu da Morte, Achiamé, Rio de Janeiro, 1983, p. 247.
2-Cf.
Melatti, Júlio César, in Mito e Linguagem Social, Tempo Brasileiro, Rio de
Janeiro, 1970.
3-Cf.
Santos, M. Deoscoredes, Mestre Didi, in Identidade Negra e Educação, Ianamá,
Salvador, 1989.