sábado, 1 de março de 2025

PINDORAMA, BRASIL, ILÉ-AXÉ

 

500 Anos Depois a Terra está em Perigo

Por Marco Aurélio Luz

 

PREÂMBULO

No filme de Joaquim Pedro de Andrade, o personagem Macunaíma e seus acompanhantes, se deparam com o trânsito da megalópole de São Paulo que do alto observam e sentenciam: “essa cidade não foi feita pra gente, mas para carros”.

Desde a ECO Rio 92 foi constatado que o efeito estufa resultante do uso indiscriminado dos combustíveis fósseis, gerará inúmeras catástrofes naturais provocadas pelas alterações climáticas.

A próxima conferência sobre o clima que será esse ano de 2025   em Belém do Pará, vai ter que lidar com a triste realidade da agressão desenfreada ao meio ambiente e a hipocrisia que insiste em minimizar a crise climática. Tudo só piorou! Diante disso, estou divulgando um ensaio que fiz inspirado na atmosfera da ECO Rio 92, compartilhado ao longo dos anos com muitas gerações.

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Árvore Gameleira
                                   Acervo do autor                                       

No momento que se realiza a ECO Rio 92, e se mobiliza de forma inusitada tantos representantes de povos, nações e governos de diferentes partes do mundo, somos motivados a refletir sobre as origens de um processo, em que estamos todos inseridos, e que ora culmina na necessidade de uma reunião de tal porte para se pensar: “Como salvar o planeta!?”

Salvar, porque há ameaças para a vida humana, cessadas as fontes de suprimento das necessidades dessa espécie, por conta do desgaste do ecossistema do qual faz parte, principalmente os povos do hemisfério norte, hoje praticamente dependentes do que permanece no hemisfério sul.

Procuraremos responder, sumariamente, ao porque chegamos a esse ponto indagando sobre as origens, isto é, os pontos de ancoragem epistêmica em que se fundam as civilizações, de onde se desdobram os valores pelos quais se organizam, produzem e agem em todos os sentidos aqueles que as integram.

Tentaremos ilustrar com alguns mitos fundamentais, os paradigmas de formas de vida estabelecidos nas civilizações que constituíram nossa nacionalidade, ou seja, as ameríndias ou aborígenes, as europeias e as africanas.

Começaremos a nossa abordagem pela mais nova e terminaremos com as mais antigas.

A arkhé, ou ponto de ancoragem da civilização europeia, se concentra nos princípios originários das culturas greco-romana e judaica.

Tomaremos como referência a ideia de um movimento pendular desta civilização onde, de um lado, situam-se princípios prometeicos, e de outro lado, dionisíacos. Os primeiros se desdobram do mito trágico de Prometeu, que roubou o fogo de Zeus, e entregou aos homens, pagando por isto o castigo de ficar acorrentado nos penhascos, entregue a sanha dos abutres.

Como narra o mito, é dessa forma que o fogo vem parar na mão dos homens nas elaborações da cultura europeia. Um poder divino usurpado, que promove o conhecimento e o desenvolvimento tecnológico, e que envolve uma forma determinada de organização social, voltada para sua promoção.

Por outro lado, os princípios dionisíacos estão assentados sobretudo na comunhão ou reunião da pólis, para compartilhar sentimentos e paixões características ao culto à fertilidade da mãe terra, pródiga e misteriosa natureza, que aplaca a angústia existencial num estar junto comunal, segundo alguns sociólogos, origem da sociabilidade.

O Renascimento marcará a predominância pendular dos princípios prometeicos, ajustando princípios judaicos e cristãos às inspirações imperiais romanas, promovendo novo ciclo de conquista de territórios e povos para além do continente europeu em busca do “caminho das índias”, alcançando a extensão litorânea dos continentes africano, americano e asiático.

O livro do Gênesis 1, 28, 29, base da cultura judaica, erige referências em relação à natureza ajustada ao impulso prometeico... crescei e multiplicai-vos, e enchei a Terra, e tende-a sujeita a vós, e dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se movem sobre a terra. Disse-lhes também Deus: Eis, aí vos dei eu todas as ervas, que dão as suas sementes sobre a terra; e todas as árvores, que têm suas sementes em si mesmas... para vos servirem de sustento a vós...

Consequentemente, vive-se um sistema de vida em que se pode dizer, segundo José Carlos Rodrigues (1), que “200 milhões de americanos consomem e poluem mais do que o fariam 5 bilhões de índios.”



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O princípio prometeico se combinou não só com a ideia de “povo eleito por Deus” do judaísmo, mas também com os valores ascéticos da noção de pecado incorporado pelo cristianismo, a sua vocação catequética e evangélica; a percepção do outro como “pagão” portador do pecado original a ser convertido. Portanto, a negação do direito à alteridade própria.

A predominância de princípios prometeico sustentaram a tensão de repressão às pulsões dionisíacas, aos princípios femininos envolventes do mistério da mãe terra; e, por outro lado, estimularam a vocação patriarcal, fálica, conquistadora e avassaladora que caracteriza a bacia semântica dos valores de organização social da modernidade.

A chamada “era dos descobrimentos” está assentada nesses princípios. O estímulo ao desenvolvimento científico-técnico-militar proporcionava as grandes navegações que deram início ao processo de acumulação de poder e riqueza à Europa. Onde houvessem territórios ocupados por “pagãos”, a igreja católica asseguravas aos cristãos a legitimidade de sua ocupação bélica, garantia de exploração de trabalho e das riquezas naturais.


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O que se segue nesses quase quinhentos anos de predomínio dos princípios prometeicos, e chega até os nossos dias, é o mercantilismo, o colonialismo, o tráfico escravagista e a escravidão, a exploração exaustiva e poluição da natureza, o imperialismo, guerras e genocídios...

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Tudo isso está representado condensadamente pela acumulação de capital ou dinheiro, forma abstrata de valor que caracteriza o poder hegemônico daquelas nações que impulsionam este processo derivado dos princípios prometeicos que englobam também a bacia semântica dos positivismos.

Mas deixemos nossa herança europeia que sustenta as bases do paradigma prometeico-positivista do Estado brasileiro, “ordem e progresso”, e passemos a nossa herança aborígene.

Um mito de vários povos, especificamente os Nambikwara, narra como o fogo foi parar nas mãos da humanidade.



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O tio levou o sobrinho pela primeira vez à floresta para caçar. Logo, ele avistou no alto de uma rocha um ninho de araras. Colocou um tronco encostado na pedra e falou para o sobrinho subir e lançar lhe os ovos.

Chegando no ninho, o sobrinho teve dó dos filhotes e se negou a fazer o que o tio pedia.

Este, depois de insistir um pouco se aborreceu, e tirando o tronco deixou o sobrinho pra lá. Foi então que apareceu a arara, vendo o menino perto do ninho não gostou, protestou, fazendo cocô em cima dele e causando tanto alvoroço que chamou a atenção da onça que por ali passava. Esta, vendo o menino naquela situação resolveu ajudá-lo, colocando o tronco, para que descesse e levou-o para sua casa. Lá chegando, preveniu-o do mal humor da sogra e deu-lhe o arco e a flexa para se defender e foi-se mata a dentro.

O menino viu a sogra da onça comendo um moqueado de carne. Depois que ela comeu, ele que estava com fome, resolveu se servir da carne que já estava muito assada e na sua boca fazia nhec, nhec, o que irritou a onça. Ela começou a rosnar mostrando os dentes.

Foi então que ele lançou uma flexa e fugiu levando um tição com fogo. Caminhou, caminhou, até que se deparou com a aldeia.

Surpreendidos com o fogo, os guerreiros lhe indagaram, e cientes de tudo foram até a toca da onça, onde pegaram todo o fogo, passando de uns pros outros, de mão em mão, trazendo para a aldeia. Uma pequena brasa que restou o sapo cuspiu e apagou, de modo que foi assim que, só a humanidade detém o uso do fogo (2).


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Meditando sobre a história, a antropologia nos indica ser uma representação e elaboração dos limites entre sociedade e natureza, envolvendo o processo de iniciação-socialização, que faz do menino um adulto, diferenciando-se da natureza, integrando-se às regras de cooperação e convivência social.

Mas o que desejo ressaltar é que o fogo, neste contexto, pode representar a pulsão da sociabilidade, o estar junto em volta da fogueira compartilhando sabedoria e emoções, a harmonização de convivência social humana, e a diferença da espécie, o cru e o cozido...

Esta satisfação comunal está distante dos valores individuais da mítica do self made man, dos heróis à Marco Polo que caracterizam o ideal de ego prometeico do processo civilizatório europeu, da mítica tecnológica, em que um pode destruir milhares, como o piloto que lançou a bomba atômica em Hiroxima...

Mas avancemos em torno de outra herança, a dos povos africanos que para aqui vieram trazidos pelo tráfico escravagista, principal fator econômico do mercantilismo das Companhias das índias.

Um ditado nagô afirma: “Kosi ewe, Kosi orixá”, sem folhas não há

orixá, não há existência.


Pedra de Xangô
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O conto “Odé e os Orixá do Mato” (3) narrado em livro por Mestre Didi, Alapini, adaptado por ele para um auto coreográfico, se tornou a peça principal da experiência de educação pluricultural da Sociedade de Estudo da Cultura Negra no Brasil – SECNEB, denominada Mini Comunidade Oba-Biyi.

O conto narra que uma vez um famoso caçador, possuidor de poderes extraordinários, certo dia não conseguiu um só bicho. Pior é que nos dias que se seguiram também, até que seus suprimentos acabaram e ele teve que retornar da mata.

Então ele foi direto consultar o babalawô – pai do mistério – para saber o que se passava.

Soube que a razão de tudo era que havia muito tempo que ele nada fazia para a floresta. Cabia então ele oferecer aos pés de Iroko, Gameleira sagrada, uma oferenda de fumo, aguardente e mel, e pedir ao orixá sua proteção para devolver-lhe seus poderes.

Depois de ter pago ao babalawô e feito as oferendas prescritas ao pé de Iroko, logo apareceram vários bichos a sua volta. O caçador se pôs a caçá-los, e eufórico foi matando a todos que apareciam, arrastando-os para uma choupana improvisada.

Exausto e com fome, escolheu uma ave abatida para assar. Foi quando, de repente, apareceu um pinto molhado.

O caçador ficou perplexo e assustado quando o viu, e mais ainda quando ouviu uma voz saindo do fundo da mata:

Estevão, Estevão...

O pinto respondia:

– Oi, home.

– Venha e traga os outros.

– E ele também?

– Ele deixa pra depois.

Em seguida, ele foi chamando um por um a todos os bichos, que seguindo o pinto se adentraram pela mata.

O caçador, apavorado, pegou o que lhe restava, a ave assada e seus

pertences, dizendo que jamais voltaria à mata, e foi para a cidade.

 

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Mitos milenares da tradição africana no Brasil nos alertam o que pode

acontecer com o abuso dos poderes. O mistério que envolve a existência, a restituição, a renovação, a continuidade e expansão


Acervo do autor

Na origem de sua denominação, nosso país é concebido como Santa Cruz e logo Brasil, demonstrando que os valores do mercantilismo se sobrepuseram aos religiosos que legitimaram a conquista europeia pelo Papa.

No contexto mercantilista, o pau-brasil, matéria-prima para manufatura europeia, hoje está praticamente extinto. Será essa, inexoravelmente, nossa vocação. Território de exploração de matéria-prima para enriquecimento dos europeus na Europa ou nas Américas, em detrimento de sua própria população; país que não cessa de exportar o que tem progressivamente. E, os europeus agora

e pior, com a biodiversidade em seus próprios territórios?! começam a se perguntar, e se extinguir-se essa fonte de alimento e energia, como ocorreu com o pau-brasil.

Estará na hora de refletirmos sobre a adequação do nome Brasil, resultante do paradigma mercantilista positivista dos tempos modernos, agora em crise, no alvorecer pós-moderno das preocupações ecológicas, tendências dionisíacas!?

Poderíamos então sugerir Pindorama, a terra das Palmeiras, como denominaram aqueles que aqui estavam quando da chegada dos europeus. Ou ainda Ilê Axé, terra de axé, de dinamização dos princípios cósmicos que regem o universo, característico dos valores de nossa herança africana. Ou ainda numa homenagem aos princípios o universo e aos povos fundadores do território, simplesmente Amazônia, você sugere, você decide...

 

Notas

Artigo publicado no Caderno de Cultura do Jornal A Tarde, 1992.

1 Rodrigues, José Carlos. O Tabu da Morte, Achiamé, Rio de Janeiro, 1983, p. 247.

2-Cf. Melatti, Júlio César, in Mito e Linguagem Social, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1970.

3-Cf. Santos, M. Deoscoredes, Mestre Didi, in Identidade Negra e Educação, Ianamá, Salvador, 1989.