sábado, 28 de fevereiro de 2015

AINDA A “NEGA DO CABELO DURO...?

Por Narcimária Correia do Patrocínio Luz

Nas sociedades tradicionais africanas, o cabelo simboliza a identidade profunda individual e coletiva de gerações. O cabelo africano é um patrimônio milenar e, como tal, constituiu uma das formas de comunicação mais radicais na dinâmica dos vínculos de sociabilidade que atravessaram o Atlântico. 
Cor, textura, cortes, tranças, penteados com adornos, tudo entrelaçado, comunicando narrativas que contam histórias de linhagens, famílias, instituições, hierarquias, papéis sociais que estruturam as relações primordiais que envolvem crianças, jovens e anciães nas comunidades.







Chamo atenção também para as formas de reterritorialização histórica das populações negras nas Américas e Caribe, que encontram na plasticidade do cabelo africano, próprio das culturas de participação, a riqueza estética que permite a expressão possível de um corpo livre em permanente movimento de afirmação identitária.

Cantor e Compositor Bob Marley

Professora e Ativista Ângela Davis nos anos de 1970
Imagem disponível em http://www.huffingtonpost.com/henry-a-giroux/angela-davis_b_3055913.html


Atriz Lupita Nyong'o 
Venceu o Oscar 2014  de melhor atriz coadjuvante no filem 12 Anos de Escravidão
Imagem disponível em http://www.cnbc.com/id/102460030
 Apesar do rico universo simbólico que constitui o cabelo como extensão do patrimônio civilizatório milenar africano, contemporaneamente ainda assistiu atônito a crianças, adolescentes, jovens e adultos submetidos a constrangimentos inaceitáveis por anunciar em suas cabeças esse vínculo ancestral com a África.Refiro-me aos discursos estéticos fixados na ideologia do recalque e racismo, que há séculos agridem as populações negras.

Gabriela Monteiro graduanda de  Design de moda da PUC-Rio ,assim como muitos descendentes de afrricanos/as no Brasil e no mundo,  esta semana foi alvo de racismo por parte de duas professoras que  fizeram piadas e comentários de cunho racista sobre o cabelo.
Imagem disponível em http://brasileirissimos.xpg.uol.com.br/caso-de-racismo-na-puc-rio-ganha-notoriedade-ao-ser-divulgado-em-perfil-de-aluna/

Já tive oportunidade de abordar aspectos do carnaval, destacando as geografias que recortam e modulam os espaços da folia momesca, agudizando tensões e conflitos entre civilizações. Aqui vou me referir a duas geografias: uma envolta no manto civilizatório neocolonial, alicerçada na política do embranquecimento, insistindo em constranger as mulheres negras por meio do estereótipo da “nega do cabelo duro que não gosta de pentear”, e o pior, o convite à agressão: “pega ela aí!”, “pra quê?”, “pra passar batom”.


 No carnaval de Salvador, essa música entra na classificação do mercado capitalista de “axé music”, aliás, essa sigla nada tem a ver com a complexidade semântica africano-brasileira. O mais triste de todo esse cenário é que, para homenagear os trinta anos desse “gênero musical”, a “nega do cabelo duro...” foi cantada em cima de um trio que trazia mulheres e homens negros vestidos com roupa e adereços da tradição africana. Muito triste!
A outra geografia está alicerçada nos valores e linguagens da civilização africano-brasileira presentes nas comunidades que singram vários bairros tradicionais de Salvador. As comunidades africano-brasileiras recusam veementemente a geografia do recalque que tenta deturpar e desmoralizar valores fundamentais do seu patrimônio civilizatório.

Vista aérea da Lagoa do Abaeté no bairro africano-brasileiro de Itapuã
Imagem disponível em http://cartografia0905.blogspot.com.br/2012_06_01_archive.html

Nessa geografia africano-brasileira nagô, axé é palavra sagrada, compõe a semântica do universo simbólico que dinamiza a atmosfera litúrgica do aiyê (mundo visível) e do orun (mundo invisível). Axé é pulsão das narrativas míticas que nos religam ao orixá e nossos ancestrais.Axé é força! Palavra pronunciada que carrega a energia vital que dá sentido ao nosso existir individual e coletivo.

Imagem disponível em http://www.jornalismo.com.br/index.php/conchinhas-do-mar-da-vida/mobile-com-conchas-do-mar1/

No discurso estético do carnaval africano-brasileiro, inclua-se aí a plasticidade dos cabelos com seus penteados e adereços interagindo com a música percussiva, vestuário, danças e dramatizações, as mulheres negras são abordadas pela imponência e integridade que as caracterizam. 

Desfile do bloco afro Bankoma 
Imagem disponível em http://www.ibahia.com/detalhe/noticia/bankoma-prepara-cd-em-comemoracao-de-15-anos-do-bloco/?cHash=d239685672e1587fb4eb3dacb3a8d36d

Mulheres negras que são lideranças expoentes nas Américas e Caribe, fundadoras de instituições, comunidades, famílias, elaboram e promovem a expansão de conhecimentos profundos que dão dignidade e asseguram a expansão comunitária. Exemplos fundamentais dessas trajetórias femininas na história do carnaval no Brasil são os ranchos de carnaval, como o Rosa Branca de Tia Ciata, as Escolas de Samba, afoxés e blocos afros que africanizam (parafraseando Marco Aurélio Luz) o carnaval brasileiro, reterritorializando-o, estabelecendo insurgências eternizadas pelas mensagens éticas e estéticas anunciadas pelos cabelos, alegorias, figurinos, danças, ritmos, músicas etc. 

A Velha Guarda da Mangueira

Imagem disponível em https://falacarioca.wordpress.com/2011/04/01/roda-de-samba-com-velha-guarda-da-mangueira/Rosa Branca de Tia Ciata

 No seu livro A Cidade das Mulheres, Ruth Landes, antropóloga americana que na década de trinta esteve no Brasil, destacou que na Bahia: “[...] as mulheres negras encontraram mais reconhecimento, do seu próprio povo [...] Uma distinta sacerdotisa chamou a sua cidade de Roma Negra, dada a sua autoridade cultural; foi aqui que as mulheres negras atingiram o auge de eminência e poder, tanto sob a escravidão como após a emancipação. Controlando os mercados públicos, as sociedades religiosas e também suas famílias.” (LANDES, 1961:112)
A sacerdotisa que usou a expressão Roma Negra a qual se referiu Ruth Landes foi Mãe Aninha, a Iyá Oba Biyi, fundadora da comunidade-terreiro Ilê Axé Opô Afonjá e que acolheu e orientou a iniciativa do Mestre Didi, em 1935, de criar o de afoxé Pae Burokô.


Mãe Aninha 
Imagem disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%AAnia_Anna_Santos

Mestre Didi Asipá
Imagem disponível em http://www.jornalopcao.com.br/posts/ultimas-noticias/morre-o-artista-plastico-mestre-didi

Subvertendo os espaços do carnaval, saturado pela estética da política do embranquecimento e seu discurso perverso da “nega do cabelo duro que não gosta de pentear”, dois exemplos aqui são bem-vindos: bloco Didá que levou para as ruas no carnaval as linguagens estéticas das mulheres negras que vivem a identidade profunda das comunidades africano-brasileiras. 


Bloco Didá carnaval 2015





Bloco Didá carnaval 2015


As componentes do bloco desfilaram de modo imponente, apresentando a dinâmica plástica dos cabelos e com vestes e adereços fazendo alusão ao princípio feminino das águas doces, representadas por Oxum, orixá patrono da fecundação e da gestação.
Bloco Didá carnaval 2015




 Outro momento singular foi a saída majestosa do bloco afro Ilê Aiyê adornado pelos rituais da tradição presididos pelas lideranças femininas que dão continuidade aos ensinamentos de Mãe Hilda. 


Saída do Ilê do Curuzú Carnaval 2015
A emoção atravessa a avenida, com o Ilê arrastando uma multidão cantando com força e muita vibração músicas que marcam a identidade do bloco afro, como os refrãos das músicas:
DEUSA DO ÉBANO de Geraldo Lima
 “[...] Minha crioula/ Eu vou contar para você/ Que esta tão linda/ No meu bloco Ilê-Aiyê/ Com suas trancas muitas originalidade/ Pela avenida cheia de felicidade/ Minha deusa do ébano [...]”
Mulheres que integram o bloco afro Ilê Aiyê



NEGRUME DA NOITE de Paulinho do Reco
“Constituiu um universo de beleza/ Explorando pela raça negra/ Por isso o negro lutou/ e acabou invejado/ E se consagrou/ Ilê, Ilê Aiyê/ Tu és o senhor/ Dessa grande nação (Dessa grande nação meu irmão) / E hoje os negros clamam/ A benção, a benção a benção.”.
Refrãos que afirmam a imponência das linguagens africano-brasileiras que persistem, recriam, subvertem e continuam surpreendendo e expandindo os valores de civilização.


Imagem disponível em http://vibedoamor.com/tag/criancas/

Muito orgulho!

A seguir temos o prazer de compartilhar os vídeos que apresentam as músicas DEUSA DO ÉBANO de Geraldo Lima interpretada por Lazzo Matumbi e NEGRUME DA NOITE de Paulinho do Reco.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

TREM MALUCO

                             Por Marco Aurélio Luz

Na festa de premiação do MTV EMA de 2014 em Glasgow, o roqueiro Ozzy Osbourne foi contemplado com o prêmio Ícone Global por uma carreira de destaque já de muitos anos com a banda Black Sabbath.




Ozzy Osbourne recebe troféu MTV das mãos de Slash.

 Foto disponível na intrnet

Os roqueiros Simon Neil, Miles Kennedy, e Slash prestaram uma homenagem apresentando o sucesso marcante de Osbourne Crazy Train.
O que chama atenção de mais uma interpretação dessa música famosa foi o aparato pirotécnico que revestiu a apresentação. O fogaréu engolfou a música e se tornou a estrela do show.



 Apresentação Crazy Train pelos  roqueiros Simon Neil, Miles Kennedy, e Slash.
Foto diponível na internet. 

Há algum tempo a tecnologia envolvida numa apresentação musical é a atração principal.
Essa predominância do valor da técnica é um ideal da sociedade burguesa desde os tempos de Leonardo Da Vinci, do tempo das ¨Grandes Descobertas¨ que iniciam a modernidade, até as ¨Guerras Mundiais¨ e a ¨Guerra Fria¨. A indústria armamentista sempre lidera a corrida da técnica que depois se desdobra na ideologia do conforto, e na indústria cultural. Tudo isso regido pelo valor atribuído a acumulação de capital.



Avião bombardeando o Vietnã
Foto disponível na internet

Numa cena do filme Macunaíma quando o herói sai do sertão e chega à grande cidade fica sarapantado de ver e tantos automóveis passando na noite com suas luzes feéricas. Então encabulado e encafifado fica pensando pensando até que sentenciou: a cidade era para as máquinas e não para gente.




Filme Macunaíma de 1969 escrito e dirigido por Joaquim Pedro de Andrade baseado na obra homônima de Mário de Andrade.
Macunaíma e seus irmãos chegam na cidade grande.
Foto disponível na internet

Há pouco tempo o cantor Joe Cocker nos deixou. Sua atuação no famoso encontro da contra cultura em Woodstock o tornou um ícone global. Era um momento histórico que a juventude se rebelava contra a guerra do Vietnã.




Símbolo Paz e Amor da Contra Cultura.

Foto disponível na internet

Com uma interpretação única com pouco acompanhamento de guitarra e percussão, um leve back vocal, num contexto do clímax da ideologia de PAZ E AMOR ele marcou sua presença na história da música.





Joe Cocker em Woodstock.

Foto disponível na internet

 Naquela ocasião o trem estava desenfreado porém caminhava nos trilhos. Todos sabiam o que queriam, ¨with a little help from my friends¨ (com uma pequena ajuda de meus amigos) . Sua interpretação da música dos Beatles ganhou o mundo.




Yoko e John em famoso ato de protesto contra a guerra.
Foto disponível na internet.

O rock como música afro-americana sempre se destacou por se distanciar dos cânones estéticos puritanos que procuravam reger o contexto da música. Se o jazz revolucionou pelas novas formas de composição musical, todavia manteve-se numa forma e atmosfera bem comportada de concerto erudito para poder existir.





Conjunto de Jazz em 1925.
Foto disponível na internet

 Com James Brown e outros ele inclui novos elementos estéticos a nova musicalidade. Figurinos fulgurantes e dança rítmica compõem as apresentações com gritos e sincopas. O swing transborda dos instrumentos.



James Brown foi figura estelar na divulgação do rock.
Foto disponível na internet.


Com Michael Jackson o curso desse rio se alarga inundando de criatividade a indústria cultural.
Como na capoeira, surpresa dos golpes, esquivas e negaças, disfarces e metamorfoses regem um caminho, do penteado black power nos inicios do Jackson Five, a transformação em uma pantera negra no clip Black or White; quando então já era o rei do pop superando a tudo e a todos. Inclusive começa a aceitar a maximização da tecnologia para percorrer o caminho da indústria cultural para implodi-la com valores de encantamento e beleza.




Michael Jackson o rei do pop. 

Foto disponível na internet

Noutro ramal do rock desde Elvis Presley, passando pelos Beatles chegamos ao TREM MALUCO.
Como disse John Lennon aqui o sonho acabou e em seu lugar a perda de sentido dos valores da contra cultura, caracteriza o descarrilamento do trem. Em seu lugar a indústria cultural propõe o endeusamento da técnica, os efeitos especiais, que exigem complexa equipe de especialistas e dinheiro...
O contexto de Ozzy Osbourne depois da guerra fria é de espanto e angústia em meio a novas explosões. O trem descarrila e deixa todos atônitos.