O REI NASCE AQUI
Entrevista feita a Marco Aurélio Luz por Fala Nagô
Nesta entrevista exclusiva a Fala Nagô, Marco Aurélio aborda aspectos interessantes sobre a dinâmica do cotidiano curricular da experiência pluricultural africano-brasileira desenvolvida na Mini Comunidade Oba Biyi.A experiência educacional é relatada no livro “O Rei Nasce Aqui” em co-autoria com Mestre Didi Asipá. Marco Aurélio Luz possui os títulos de Elebogi na Comunidade terreiro Ile Asipá e de Oju Oba no Ilê Ase Opô Afonjá. É co-fundador da comunidade-terreiro e da Sociedade civil, acompanhando o Alapini Mestre Didi, desde quando se conheceram em 1974. Além dessa participação e compromisso comunitário, o Elebogi estende sua atuação em atividades acadêmicas e sócio-culturais, a saber: escultor de imagens da temática arte sacra afro-brasileira, Filósofo, Doutor em Comunicação, Pós-Doutorado em Ciências Sociais Paris V-Sorbonne-CEAQ-Centre D’Etudes sur L’actuel du Quotidien. Foi professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense-UFF e da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia onde criou na Pós-Graduação e Graduação a Linha de Pesquisa Educação e Pluralidade Cultural.
FALA NAGÔ: Qual o significado e o valor desse novo livro em co-autoria com Mestre Didi?
MARCO AURÉLIO LUZ: “O Rei Nasce Aqui” é um livro que se baseia na experiência pedagógica da Mini Comunidade Oba Biyi, nome em homenagem a Mãe Aninha fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá.Na Mini Comunidade Oba Biyi foi implantado um currículo pluricultural coordenado pelo grupo de trabalho em educação da SECNEB -Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil no âmbito da comunidade-terreiro Ile Axé Opô Afonjá nas décadas de 70 e 80, e que resultou numa verdadeira revolução na educação.
FALA NAGÔ: O que você chama de “revolução na educação”?
MARCO AURÉLIO LUZ: Para atender as expectativas das crianças e jovens integrantes de uma comunidade de tradições culturais afro-brasileira, e que se sentiam rejeitadas pelas escolas do sistema oficial de ensino, constituiu-se um novo “continente pedagógico” que iria caracterizar o projeto educacional Mini Comunidade Oba Biyi. O caminho indicado na primeira metade do século passado por Mãe Aninha, Iyalorixá Oba Biyi, de ver as crianças da comunidade no dia de amanhã “de anel no dedo e aos pés de Xangô ”inspirou a trajetória de nascimento de uma nova linguagem educacional. Fundou-se um espaço pedagógico assentado na recriação das linguagens e nos valores da comunidade. Da tradição nasceu o novo; gerado na criação um novo currículo, uma nova forma de aprendizagem. Uma revolução à lá Copérnico, uma inversão, o sol e não a Terra está no centro do universo. A cultura que guarda o saber da tradição comunitária passa a ocupar o centro da experiência educacional.Todavia, é uma revolução a passos de pombo como diria Nietzsche.
FALA NAGÔ: De que modo o ensino oficial é incapaz de acolher as crianças e jovens e mesmo os rejeitarem?
MARCO AURÉLIO LUZ: O sistema oficial de ensino se ergue em “território” do contexto ideológico laico, positivista se podemos assim dizer. A República desdobrada do mundo colonial ou neocolonial constitui sua Razão de Estado baseando-se na filosofia de Augusto Conte e de suas derivações ao longo do tempo. Ela vai cimentar os aparelhos de Estado e os aparelhos ideológicos de Estado como o da educação.
FALA NAGÔ: Mas como se operacionalizava essa rejeição?
MARCO AURÉLIO LUZ: A teoria dos três estágios da sociologia positivista qualifica e desqualifica linguagens e valores de civilizações diferentes num arcabouço ideológico evolucionista e europocêntrico. Supostamente ela anuncia a chegada da humanidade ou, da sociedade humana, a etapa positivista isto é, o Estado deverá reger as relações sociais baseado nos cânones da ciência da sociologia. As demais etapas, ultrapassadas e combatidas são a metafísica, baseada na predominância do discurso filosófico e, a religiosa baseada na linguagem do mito. Nesse contexto teórico-ideológico, a rejeição possui inúmeros aspectos, é o terreno onde se constrói o apartheid ideológico, onde derivam os preconceitos e os estereótipos. No sistema oficial de ensino, o eixo central da rejeição é o lugar de rainha do currículo escolar a ser ocupado pela ideologia de onipotência de conhecimento que envolve a ciência e a pura abstração, e ainda, consequentemente a crítica, a condenação e o combate incessante aos discursos míticos e filosóficos. Acrescente-se ainda que por sua vez o discurso científico cada vez mais visa atender as demandas da tecnologia e essa, por sua vez as demandas do produtivismo industrial, de estimulação militarista, fator de acumulação incessante do capital financeiro, uma ordem de valores bem distinta das elaborações sobre o mistério do existir constituinte dos demais discursos, especificamente em outros contextos culturais.
FALA NAGÔ: Então é essa ideologia que alicerça o sistema oficial de ensino?
MARCO AURÉLIO LUZ: Exatamente, ainda mais que a ideologia não é só discurso, mas, sobretudo instituição e exigência de determinados comportamentos. Nesse contexto a escrita foi “abduzida”, ou sugada pela Razão de Estado e pela burocracia onde se constituem as chefarias dos especialistas na geração e manutenção da “ordem” nas cidades. A escola está estruturada em torno dessa escrita e dessa burocracia. Isso faz com que a aprendizagem seja, sobretudo, a adaptação do corpo e da mente para esse tipo de comunicação cujo epítome se caracteriza pelas bibliotecas, com seu silêncio, sua cor pálida, seus móveis discretos para uma comunicação solipcista, mediatizada pelo livro num único apelo sensorial – olho-cérebro; a denominada sujeição voluntária para alguns ou sujeição premiada. Enfim a constituição do sujeito produtor e consumidor, o incluído na concorrência tecnológica.
FALA NAGÔ: Fale-nos dessa sujeição voluntária e premiada.
MARCO AURÉLIO LUZ: A sujeição voluntária é uma noção integrante do pensamento de Michel Maffesoli. Refere-se à acomodação do cidadão ante as seduções encantadoras dos discursos da Razão de Estado. A sedução premiada é mais ou menos como aquela descrita na famosa música Conceição cantada ou interpretada por Cauby Peixoto: “Vivia no morro a sonhar com coisas que o morro não tem”...
Em contextos pluriculturais a principal conseqüência dessas sujeições é que os jovens têm de abandonar o contexto de sociabilidade de suas tradições para se adaptar ao sistema de valores europocêntricos se tornando no dizer de Eldridge Cleaver, ”almas no exílio”. Hoje em dia porém, já existe defesa de proteção a essas enganações, como na música de Assis Valente, “quem desce do morro não morre no asfalto”... “Lá vem o Brasil descendo a ladeira”... ou como prevenia Dorival Caymmi, “pobre de quem acredita na glória e no dinheiro para ser feliz...” ou ainda como cantou o poeta Zé Kéti, “quando derem vez ao morro toda cidade vai cantar...”
FALA NAGÔ: E como a experiência da Mini Comunidade Oba Biyi sobrepujou esses obstáculos que resultaram na constituição de um novo continente pedagógico baseado nos valores das comunidades afro-brasileiras?
MARCO AURÉLIO LUZ: A constituição de um novo currículo brotou dos valores e das linguagens da tradição, da territorialidade “da porteira pra dentro da porteira pra fora” como se expressou, certa feita, Mãe Senhora, Iyalorixá Oxum Miuwá. Na civilização africana a religião ocupa lugar central e predominante, na tradição nagô, nada de importante deve ser feito sem mobilização de axé. Para tanto tudo começa com a consulta ao sistema oracular, onde o jogo de Ifá ou Erindilogun constitui o imponderável e se caracteriza pela interpretação sacerdotal baseada numa classificação combinada de mitos ou contos ou ainda awon itan em língua yorubá.
A partir de então são designados os rituais a serem realizados, sempre envolvidos pela expressão estética que magnifica o sagrado promovendo emoção e alegria numa forma de comunicação que promove a sociabilidade comunitária, o povo junto compartilhando as elaborações do mistério do existir, a pulsão comunal.
FALA NAGÔ: Então é desse território que se constitui o currículo pluricultural africano-brasileiro?
MARCO AURÉLIO LUZ: Sim! As recriações dos mitos ou contos já constituíam um gênero literário na obra de Mestre Didi. Além do valor de verdade no contexto da liturgia, os contos guardam uma sabedoria acumulada pela antiguidade resultante da experiência humana preservada pela tradição. Eles possuem uma dimensão de aprendizagem expressando preciosas lições de vida, uma filosofia nagô. Agregando um valor literário na língua portuguesa do Brasil entremeadas da maneira de falar dos antigos africanos e seus descendentes, sentenças em língua yoruba, os contos foram adaptados para a experiência da Mini Comunidade Oba Biyi por Mestre Didi, e por iniciativa dele, dando-lhes uma linguagem dramática contextualmente apropriada. Nessa linguagem sobressaem-se as dimensões estéticas emergentes da comunidade, especialmente a música percurssiva combinada com as danças dramáticas ou coreográficas.
FALA NAGÔ: E qual foi o papel dos contos no currículo pluricultural?
MARCO AURÉLIO LUZ: Foi fundamental! Em torno deles foram se organizando as atividades da aprendizagem, o espectro de conhecimentos de variados matizes, e que culminavam a cada semestre letivo no Festival de Artes Integradas Mini Comunidade Oba Biyi. Nessas ocasiões as crianças interagiam com a comunidade expressando emoções e conhecimentos de uma estética constituída de ludicidade, saber e alegria. Nessa toada fundou-se um novo território de aprendizagem, o da educação pluricultural africano-brasileira. Inaugura-se a possibilidade de circulação entre mundos sócio-culturais diferentes com liberdade e integridade.
FALA NAGÔ: Nos cursos de formação de professores há um uso impreciso de termos como multiculturalidade, interculturalidade, diversidade cultural...
MARCO AURÉLIO LUZ: Desde o início do projeto se falou em educação pluricultural. Eu entendo cultura como uma expressão derivada de contínuos civilizatórios. Falando em Brasil nós temos uma pluralidade de culturas derivadas do contínuo civilizatório aborígine, ou como se menciona geralmente de ameríndio, do contínuo civilizatório europeu, e do contínuo civilizatório africano, esse o mais antigo da humanidade.
FALA NAGÔ: Concluindo...
MARCO AURÉLIO LUZ: ”Do Mundo Fechado ao Universo Infinito”, como nos diz o título do livro do filósofo Alexandre Koyré. Os contos narrados e adaptados por Mestre Didi para a Mini comunidade Oba Biyi, além de constituir o currículo pluricultural, possuem uma dimensão especial. Eles transcendem a limitação imanente, da construção ideológica positivista da materialidade do “real” característico do contexto das projeções industrialistas mercadológicas sobre a escola oficial, e abrangem um outro real, isto é, o do universo infinito, lições de vida que compreendem o mistério do existir.
Neste sentido o currículo que emerge da tradição africano brasileira acompanha os valores, éticos e estéticos, e a visão de mundo herdada de nossa ancestralidade africana projetada desde os inícios da humanidade e suas primeiras e magníficas civilizações, cuja origem se perde na noite dos tempos...
Quero parabenizar todas e todos vocês envolvidos direta ou indiretamente nesse belíssimo projeto. Fico feliz como pedagoga e principalmente como ser humano, quando vejo trabalhos como esses que vocês desenvolvem. Fiquei muito contente com a qualidade das entrevitas, acredito que só através das práticas pedagógicas, para além das teorias e dos discursos vazios é que conseguiremos de fato, contribuir para a transformação da nossa sociedade, bem como contribuir para a construção de uma socidade, mais justa, equânime, que respeite as diferenças e valorize a diversidade cultural, racial, geracional, de gênero e de orientação sexual.
ResponderExcluirAxé e que Iemanjá ilumine o caminho de vocês.
Afro abraços,
Érica O. Barbosa 'Capinan'
Como faço pra encontrar esse livro?!
ResponderExcluirNão acho em lugar nenhum...
Olá Ikaro, envie email para mauricio_luz1991@hotmail.com informando onde você está e a quantidade desejada, abraço
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