domingo, 4 de julho de 2010

A AFIRMAÇÃO DAS MEDIDAS AFIRMATIVAS

Foto Ronaldo Martins
Em 15 de outubro de 2004 foi publicado no jornal Folha Dirigida entrevista de Marco Aurélio Luz concedida a jornalista Clarissa Borges. Devido à atualidade e importância do tema que também faz parte das reflexões da equipe de educadores/as da ACRA, aproveitamos o espaço do blog para divulgar as perspectivas de análise do professor entrevistado. Clarissa Borges abre a entrevista com o Professor Marco Aurélio Luz, tendo como ponto de partida a Lei 10.639/2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História da África e Cultura Afro brasileiras. Marco Aurélio Luz é formado em Filosofia e Direito pela UFRJ é Doutor em Comunicação e fez Pós Doutorado na Sorbonne, Université de Paris V. Na Bahia desde 1973 entrou em contato com comunidades africano-brasileiras. Recebeu títulos da tradição africana,atuou como professor nas Univerdidades Federal do Rio de Janeiro e Federal Fluminense.Quando veio morar na Bahia nos anos de 1980, passou a atuar como Professor na Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia-UFBA,onde criou a Linha de Pesquisa Identidade Negra e Educação. O professor Marco Aurélio Luz é autor de livros sobre a cultura afrobrasileira como “Agadá: dinâmica da civilização africano brasileira”, “Cultura Negra e Ideologia do Recalque”, “Cultura Negra em Tempos Pós Modernos” e “Do Tronco ao Opa Exin”. Ele faz parte também de diversas sociedades de ciência e cultura afrobrasileira. Em entrevista à FOLHA DIRIGIDA, o professor dá uma aula sobre a cultura e os valores das tradições afrobrasileiras.

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Folha Dirigida – O que significa a lei que impõe o ensino de história e cultura afro-brasileiras nos currículos do ensino médio?
Marco Aurélio Luz –
Essa lei procura atender a uma pretensão das comunidades afro - brasileiras, no sentido de resgatarem o seu passado e sua história, para alimentar sua auto-estima, sua identidade e seu conhecimento. Há um grande recalcamento, uma grande repressão do ensino e do conhecimento dessas riquezas culturais, porque a África não foi só o berço da humanidade, mas também berço das civilizações. Hoje em dia, com essa abertura para a pluralidade e diversidade humana, nós estamos atendendo a esse reclame, que vem desde a década de 70, quando os primeiros movimentos negros e afro-brasileiros reivindicaram a presença da continuidade africana no Brasil.
Folha Dirigida – como se dá a aplicação dessa lei? A cultura afro – brasileira está sendo ensinada nas escolas de forma satisfatória?
Marco Aurélio Luz –
Aí temos um problema muito grave. O interessante para nós é tomarmos consciência dos valores, das linguagens e das instituições que foram implantadas no Brasil e dão continuidade à tradição africana.
Não se pode pensar na África com um enquadramento de economia ocidental e em termos como desenvolvimento, terceiro mundo e coisas que tais que vão deslocando o eixo de compreensão de uma tradição própria, de uma civilização própria do continente. O temor que eu tenho é que a África seja percebida por esse ângulo economicista, esse ângulo das referencias e comparações com o mundo ocidental e com o mundo colonial. Então, é preciso nos deslocar para compreender o que está na alma do nosso povo, que são os valores, as linguagens e a identidade da tradição africana.
Folha Dirigida – Há algum tipo de adaptação a ser feita na educação de modo geral para que a cultura africana seja passada da forma desejada?
Marco Aurélio Luz –
São poucas as instituições que se preocupam, porque as tradições afro-brasileiras foram muito recalcadas, principalmente na constituição do Estado Republicano, de uma Razão de Estado de inspiração positivista essa da ‘’Ordem e Progresso’’ essa ordem de perceber a vida simplesmente por esse viés da produção econômica. Nessa época, instituições como os terreiros foram reprimidas politicamente, foram colocadas como uma coisa a ser destruída, bem como a capoeira. Essas instituições, a muito custo, conseguiram chegar até hoje aqui. Em termos de se assumir uma identidade, há um hiato muito grande ainda entre o povo brasileiro, que tem essas tradições, e o Estado, que só possui uma visão simplesmente economicista ligada ao capitalismo internacional e às leis que regem esse sistema. É difícil, mas por outro lado há uma pressão que vem das comunidades afro-brasileiras e indígenas. Espero que haja uma possibilidade de interação entre essas comunidades e que elas possam participar, inclusive, da mobilidade social que a escola proporciona, mas sem destruir a própria identidade.
Folha Dirigida – No Brasil, existe uma tendência em tratar a África como um todo homogêneo, como se fosse um único país, um único povo. Isso prejudica o entendimento da cultura africana? De que forma nós podemos conhecer a verdadeira cultura africana que importa para nós?
Marco Aurélio Luz –
Atrapalha porque você tem que tomar primeiro como referência os povos que aqui chegaram e deixaram legados. Então, o que nos interessa é a emergência do respeito à alteridade, do respeito ao outro, e o outro assumir a sua própria identidade e permitir que haja uma coexistência pacífica entra as diferenças do nosso contexto. Fazendo um levantamento sobre as nossas origens vai-se fazendo a ponte de referencia com a África. Interessa-nos uma referencia com a África que traga subsídios para reforçar a consciência da nossa identidade, a consciência do que somos. A África é uma multiplicidade de povos e nós não vamos conseguir conhecer tudo isso. No entanto, podemos saber um pouco sobre a origem dos povos que constituem atualmente a cultura brasileira.
Folha Dirigida – que tipo de conseqüências sociais o desconhecimento da origem africana traz para o povo brasileiro e para os afro-brasileiros mais especificamente?
Marco Aurélio Luz -
O problema é que esse sistema positivista, industrial, tem movimentos de forças centrípetas e centrífugas. Ele atrai para o centro dele, e aqueles que não vão para esse centro sobram. Esse centro totalitário exige comportamentos bem dentro das tradições européias, como se fosse um funil. Quem vai sobrando a essa identificação vai sendo arremessado por uma força centrífuga para a margem do sistema. Nessa margem, a pessoa passa por uma série de vicissitudes porque é alijado da participação social, política e econômica. A sobrevivência ao sistema ocorre através de mecanismos sedutores e marginais ao sistema. Os nossos jovens, por exemplo, são muito reprimidos, por isso sofrem uma situação de repressão e contra repressão muito aguda.É exatamente porque o sistema não reconhece, não dá a possibilidade desses jovens assumirem totalmente a sua identidade e serem acolhidos pelo sistema. Essa rejeição faz com que nós tenhamos uma sociedade tão dividida e tão violenta.
Folha Dirigida – Quais exemplos de medidas efetivas o governo deve tomar no sentido de contribuir para o resgate das tradições africanas?
Marco Aurélio Luz –
O governo sua Razão de Estado, tem que sair dos limites de uma ideologia falsa de que o problema que afeta o povo se restringe a luta de classes. Também esse conceito de raça é um conceito equivocado que já está totalmente ultrapassado. Mas esse falso conceito de raça que veio preencher a ideologia evolutiva europocêntrica de superioridade e inferioridade que constitui o racismo, agora está sendo usado para operacionalizar políticas de Estado de “igualdade racial”... Na verdade o que alimenta as identidades diferentes são as culturas, através de valores e linguagens que estruturam o modo de ser, viver e entender o mundo trata-se de uma luta de afirmação existencial defendendo e honrando um legado ancestral. Uma vez os governos percebendo essas diferenças, eles tem que acolhe-las no seu espaço institucional. Por exemplo, no ensino público, oferecer elementos que façam com que as crianças e os jovens se sintam em casa. O principal é atentarmos para o acolhimento do exercício do respeito à alteridade e o acolhimento do espaço a que toda população deve ter, o direito de ter no sistema escolar aspectos e características da sua cultura, por que essa cultura é, de certa forma, majoritária do povo brasileiro.
Folha Dirigida – Existe alguma diferença entre os termos negro, afro-descendente ou afro-brasileiro para designar o descendente africano?Existe sentido em usar essas palavras?
Marco Aurélio Luz –
O termo negro tem uma conotação que abrange uma relação de etnicidade para diferenciar dos povos da África do Norte, que é uma África mais formada pelos povos árabes e tem o islamismo como referência. Mas há o Egito, por exemplo, que tem uma população hoje de pele mais clara. Ali se formou o berço das civilizações o Egito antigo negro faraônico. Então, falar de África negra é só uma questão de situar uma marcação étnica geográfica. No caso de ‘’afro-descendente’’ seria uma manobra estratégica, de modo que, existindo uma população de pele mais clara, embora também descendente de africanos, não ficasse a margem de uma política que se falasse em negro. Mas isso ainda não é o suficiente porque, além daqueles que vivem nesse universo serem afro-descendentes, há também uma característica ora mais de europeu ou indígena na sua fisionomia, nos seus aspectos morfológicos. E, no entanto, tem que se alcançar isso também. Conheci um senhor no interior de SP no início da década de 70, um líder local que abrigava o presépio da Folia de Reis em sua casa, onde era o ponto de partida e chegada da Companhia e onde se celebrava e comemorava a festa de Reis no dia 6 de janeiro; pois bem certa feita prosando comigo ele, negro da pele bem negra, vendo seus netos lourinhos de pele clara brincando no pátio me comentou: -“ esses não vão passar por sofrimentos que eu passei. E não vendo prá sinhô nenhum, não tem jeito maneira”. Eles eram frutos do casamento dele com uma imigrante italiana que gerou o filho de tez amorenada que também se casou com uma descendente direta de italianos gerando os netos lourinhos.
Folha Dirigida – O que o senhor acha do sistema de cotas para negros nas universidades, adotado em alguns Estados, como forma de reparação social?
Marco Aurélio Luz –
É uma coisa que você tem que ter cuidado. Quase todo mundo é a favor das cotas porque realmente há um hiato de possibilidade de participação por razões econômicas, sociais, consequência da política de barragem, da política de abandono. O fato de estar na Universidade pode abrir muitas possibilidades para a própria comunidade negra se reforçar. Mas se essa comunidade entrar na Universidade tal e qual ela está, sem assumir um novo currículo, uma nova maneira de assumir a cultura afro-brasileira, essas pessoas que entrarão por cotas podem vir a se tornar almas no exílio. A cota tem que ser conjuntamente aplicada com essas referencias a cultura, a identidade própria, a valorização da tradição, enfim da civilização. São necessárias muitas políticas nesse sentido.
Folha Dirigida – Que posição deve tomar a comunidade afro-descendente frente a frente a esse contexto de não respeito a sua cultura?
Marco Aurélio Luz –
Eu acho que as instituições da sociedade civil já vinham batalhando há muitos anos sobre isso. Agora, essas políticas devem abandonar o conceito de raça e ir para o contexto de identidade, que tem conteúdo cultural. Cultura é toda uma maneira de ser, é o ser da pessoa. Por exemplo, nas tradições afro-brasileiras, você aprende muito através da culinária litúrgica. Então, é uma condição diferente. È isso que faz a diferença. A baiana de acarajé, por exemplo, tem muito fundamento, não só pela instituição de pessoas que vendem aquela comida, mas porque acarajé é uma comida que faz parte da comida do orixá e tudo o mais referente a uma rica e complexa visão de mundo.
Folha Dirigida – O senhor participou do desenvolvimento do projeto piloto de educação pluricultural Mini-Comunidade Oba Biyi. Como foi essa experiência?
Marco Aurélio Luz
– Essa Mini-comunidade começou realmente com as crianças freqüentando a casa do casal Juanita e Mestre Didi, no Ilê Axé Opô Afonjá (terreiro de candomblé localizado no Bairro de São Gonçalo, em Salvador). Havia muitas crianças lá. Certa feita indagadas, elas responderam que não freqüentavam a escola porque a escola não gostava delas. Isso fez com que o Mestre Didi propusesse à sociedade civil do Opô Afonjá a constituição de uma escola que fizesse com que as crianças se sentissem amadas e abrigasse na sua linguagem e constituição os valores da comunidade. Assim foi lançado esse projeto de educação pluricultural. No inicio foi muito difícil, mas, no final, conseguimos constituir um currículo a partir dos contos narrados por Mestre Didi. Esses contos eram dramatizados pelas crianças, dos menores até os de 14 anos. Era o que a gente chamava de desenvolvimento integrado. Passados dez anos, estamos escrevendo um livro sobre essa experiência de educação pluricultural a partir dos valores afro-brasileiros.
Folha Dirigida – Essa experiência pode servir de modelo para o sistema oficial de educação, principalmente nas escolas públicas?
Marco Aurélio Luz –
Eu acho que seria fundamental, porque a adesão das crianças foi fantástica. Essas crianças assumiram os valores da comunidade, hoje são lideres da comunidade e tudo mais transitando com facilidade “da porteira para dentro e da porteira para fora” como um dia se referiu Mãe Senhora Iyalorixá Oxun Muiwa.. Por outro lado, eu tenho certo pessimismo em relação ao recalcamento já constituído. É um problema muito sério de rejeição, pois a gente vive com medo de ser usado, de ser manipulado, de ser deturpado. Realmente eu acho que não é uma questão de vontade política, é uma questão de o próprio fluir do continuo civilizatório que possa vir oferecendo alternativas como essa experiência de educação Pluricultural africano-brasileira.

2 comentários:

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  2. Muito rica esta entrevista do Prof. Marcos Aurélio.É importante a existência desses qustionamentos a cerca da forma como a lei 10.639/2003 e 11.645/2008 esta sendo aplicada nas escolas e como se delineia a formação dos profissinais da Educação que irão lidar com este tema.
    Vale ressaltar também a importância deste tema está sendo debatido dentro da Universidade e nos demais espaços educativos sejam eles formais ou informais.

    Vamos, que vamos!

    Um Super Beijo.

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