segunda-feira, 13 de setembro de 2010

ESPAÇOS DE ENCONTRO: CORPOREIDADE E CONHECIMENTO


Itamar Silva


Apresentamos uma entrevista interessante com o jornalista Itamar Silva importante liderança na comunidade do Morro Santa Marta no Rio de Janeiro. Essa entrevista foi concedida ao Programa Salto para o Futuro em 27/4/2005 e nos aproxima de modo instigante das questões que afligem a juventude brasileira,a exemplo da perda de esperança de vida,de sonhos,do direito à alteridade...Itamar toca com intensidade nas dores que tendem a arrebatar de forma trágica a existência da nossa juventude e aponta perspectivas importantes para a superação dessa anomia característica das sociedades contemporâneas.Esta e outras entrevistas estão disponíveis no site http://www.tvbrasil.org.br/saltoparaofuturo/entrevistas.asp?PagAtual=7&buscar=
Vale a pena acompanhá-las.


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Salto – Para começar a entrevista, gostaríamos que você falasse um pouco sobre a relação entre juventude e a vida nas comunidades economicamente desfavorecidas.

Itamar Silva – Na verdade, eu posso falar da experiência que eu tenho no Morro Santa Marta e o trabalho que a gente acompanha durante muitos anos e o que a gente percebe... Primeiro que não é muito diferente o jovem de favela ou de comunidade de outros jovens, adolescentes, que moram fora de favela. Eu acho que essa faixa de idade, ela é igual, independentemente da localidade onde você está vivendo. A questão são as oportunidades. Quais são as oportunidades que esse adolescente tem, morando em uma área popular, seja favela, seja um conjunto, ou as que ele tem fazendo parte de uma classe média, por exemplo, com acesso à cultura, com acesso a equipamentos culturais diversos? Então, acho que é aí que se estabelece uma diferença: o adolescente que está na favela, acho que esse é um momento muito delicado para ele, porque ele deixa de ser criança, mas ele continua agindo, ele continua com aspirações muito infantis e, no entanto, ele é cobrado pela comunidade onde ele está morando e é cobrado também por uma sociedade que acha que pobre deve estar trabalhando muito cedo... Uma maturidade que ele não está preparado para responder. É um momento muito difícil para esse adolescente, porque ele continua com aspirações infantis, ele continua querendo brincar e ele tem o direito de errar, no entanto ele é empurrado pela necessidade da família, pela imposição da sociedade a pensar no trabalho, a já tentar enquadrar-se numa vida adulta para a qual ele não está preparado e a própria sociedade não constrói as condições para absorver esse adolescente que vai se adultizando.
Salto – O senhor poderia comentar sobre a questão da resistência de alguns jovens em participar de projetos sociais?

Itamar Silva – Eu acho essa pergunta interessante porque, na verdade, ela está colocada para quem atua na área social: por que uns e não outros? Inclusive é tema de um livro, do Jailson de Souza, que trabalha na Maré. Esse é o título Por que uns e não outros? E eu acho que tem um quadro, um quadro social em que esses jovens estão colocados, em que há um recorte: a família, as relações diretas e o próprio indivíduo é que reagem de maneira diferente às determinadas situações. Então, é difícil a gente afirmar porque determinado jovem vai para marginalidade e outro jovem não. Outro jovem segue um caminho, eu digo sempre, da subordinação, que diferentemente do que se diz, e aí é minha opinião, de que os jovens de favela estão à beira da marginalidade e que, se não tiver algum projeto social, eles vão ser marginais. Para mim há uma perversidade nessa abordagem, porque é como se todo jovem pobre fosse, em potencial, um marginal e, se não houvesse os projetos sociais, ele estaria engrossando as filas das quadrilhas, dos bandos. E não é verdade isso, por quê? Em minha opinião, infelizmente, a maioria desses jovens acaba se subordinando e aceitando uma situação muito subordinada na sociedade em que a gente vive, eles aceitam os piores empregos, eles aceitam as condições mais subalternas, e isso impede a sua evolução, isso os impede de olhar para a vida e enfrentar isso como um desafio e crescer. Acho que o número de jovens que vai para a marginalidade é pequeno, se a gente comparar com a quantidade de jovens que estão na linha da pobreza e a quantidade de jovens que realmente entram para o mundo da marginalidade. Então, os projetos sociais, é claro que eles têm méritos, eu acho que eles são importantes, eles cumprem um papel numa sociedade como a nossa que, estruturalmente, tem um débito muito grande com a população empobrecida. Os projetos sociais acabam ocupando um pouco esse espaço, tapando buraco, mas eles não resolvem questões estruturais, isso a gente precisa deixar muito claro, porque os coordenadores dos projetos sociais, eles não podem acreditar que ações pontuais, ações isoladas vão dar conta da questão fundamental e estrutural da sociedade brasileira, que é a desigualdade. Esses projetos são importantes como demonstrativos, eles são importantes como projetos-piloto. Eles são importantes, são uma forma de você trazer à tona a potencialidade dessa juventude, desses jovens, dessas crianças. Mas eles têm que estar sempre direcionados para a construção de políticas públicas que sejam capazes de, na realidade, resolver a questão da desigualdade social. Nesse sentido, eu tenho muita tranqüilidade, porque o trabalho que a gente desenvolve no Santa Marta desde 1976 é um trabalho que está voltado para a organização comunitária e olha para o jovem, olha para o adolescente como um ser pleno de direito. O que a gente faz aí não é porque ele está ameaçado de ir para a marginalidade, a gente preenche o tempo dele e oferece algumas oportunidades porque acha que ele tem direito a isso e é um direito que é negado aos mais pobres na nossa sociedade. O que a gente faz é demonstrar que ele tem direito e que ele deve buscar outros espaços, ele deve enfrentar essa realidade e tentar conquistar aquilo que ele não tem até determinado momento. Esta é a nossa atuação no Santa Marta.
Salto – E quais são os desafios colocados para quem atua nos projetos sociais?Itamar Silva – Eu acho muito importante para quem trabalha com jovens em áreas empobrecidas, favelas, conjuntos, primeiro, que não olhe o jovem, o adolescente como o "coitadinho", ou como potencial marginal. É importante olhar pra ele e ver um cidadão. Um cidadão que tem condições e que precisa de oportunidades na sociedade brasileira, primeiro isso, porque o que acontece é que muita gente vai com muita boa vontade para essas áreas, mas acaba que, ao invés de ajudar a promoção desse adolescente, ele acaba achatando a sua condição de cidadão, porque não está olhando para ele como um ser de direito, está olhando para ele como alguém que precisa de uma ajuda, de uma bengala para poder não cair no abismo. Então, acho que a primeira coisa é essa, todo trabalho que enfrenta, e acho importante que quem vai fazer um trabalho social tenha na cabeça que vai encontrar aí cidadãos, vai encontrar aí cidadãos plenos de direito e que precisam alargar a sua base de atuação na sociedade brasileira. Isso é importante. Depois, os espaços, certamente a gente hoje, e eu acho que não é só na favela, a gente precisa de espaços, que acolham de uma forma boa, prazerosa, essa juventude. Porque ela vem com as diferenças dela que são inerentes a qualquer adolescente no mundo. Adolescente é irreverente, adolescente é irresponsável, adolescente é trapalhão, o adolescente às vezes tem uma certa empáfia que é própria da juventude, que eu acho que são elementos importantes, se você olha e lida com isso, entendendo que isso é próprio desse tempo, é próprio dessa faixa etária, você vai poder lidar com isso como um elemento positivo na sua relação com o adolescente e não como elemento que você tem que cortar ou tem que reduzir a capacidade de diálogo que ele está trazendo. Acho que isso é importante, porque geralmente há muito preconceito, se olha para o jovem com muito preconceito. A gente já tem um formato ou um perfil do que se espera ou como deveria ser esse jovem. Tudo o que se diferencia dessa nossa pressuposição acaba entrando como limitador da possibilidade de diálogo. A gente precisa se abrir para isso e entender essa juventude, mesmo a juventude pobre, que não é diferente de outra juventude, a gente precisa parar de fazer essa separação, como se jovens não pobres fossem de um jeito e jovens pobres fossem de outro jeito. Na verdade, isso é um tempo, é um tempo importante na vida de qualquer ser humano.
Salto – Quais são, a seu ver, os fatores de risco que podem afetar a vida dos jovens?

Itamar Silva – Em relação aos fatores de risco é claro que a gente hoje que acompanha, que mora, que está muito próximo dessas áreas populares, favelas ou conjuntos, você percebe que há uma parte desses jovens que hoje entram para o mundo do crime, mas não é hoje, em outros momentos também, o que a gente tem, e é importante que se diga isso, é que o momento que a gente vê é um momento muito especial, talvez seja o momento, na história do mundo, que você tenha o maior número de jovens. Então, a gente vive o que a gente chama de conseqüência, a "onda jovem" que a gente vive, em que o foco são os adolescentes e jovens. E isso pressiona o mercado, um mercado que não tem alternativa pra essa juventude, como não tem para os adultos também. A gente tem uma crise hoje de empregabilidade, uma crise de mercado de trabalho, uma limitação que faz com que essa pressão dessa juventude revele ou apareça como uma questão muito grave. Mas, na verdade, ela é uma conseqüência do desenvolvimento da sociedade. Por outro lado, você tem a questão do tráfico de drogas nas favelas e a gente não pode deixar de tocar nesse ponto, ele está cada vez mais atraindo um número de jovens com menor idade, então você tem gente com 14 e 15 anos e que está vinculado hoje ao tráfico de drogas em algumas áreas. Essa população é que está muito mais afetada, ou já está dentro do risco absoluto, isso é uma questão. Agora, qual é a saída para essa população? A saída não está exatamente na saída individual, na saída particular, eu quero acreditar que o enfrentamento dessa questão ele se dá num campo mais amplo. Ele está em políticas estruturais, a gente tem que mostrar muito claro que se você não tiver uma orientação para políticas estruturais, você não diminui, você não reduz a entrada dessa porta para o mundo da marginalidade, você vai ter cada vez menos gente disponível, mais gente sem alternativa na sociedade, e aí não é alternativa só de trabalho, mas é alternativa cultural, alternativa na escola, uma escola de qualidade, alternativa de possibilidades de uma vida digna. Porque a gente não pode fugir, o jovem está num mundo marcado pelo consumo e a maioria desses jovens não tem condição de responder a essa pressão continuada desse consumo, logo cada um vai buscar suas alternativas. Alguns acham que a alternativa vai ser o mundo do crime, outros acham que vai ser trabalhando e entregando remédio, trabalhando em uma farmácia, outro acha que vai ser sendo artista, cada um tem uma coisa na cabeça, mas na verdade todos eles estão pressionados pelo mesmo mercado, pela mesma pressão do consumo. Então, o que a gente tem que apresentar para ele são alternativas, que mesmo que ele não encontre um trabalho ideal, mas ele pode ir ao cinema, ele pode ir ao teatro, ele pode tomar um sorvete, ele pode morar num lugar decente, mesmo que seja na favela. Uma favela em que o esgoto não esteja a céu aberto, que o rato não entre na sua casa, que a sua casa possa ser de tijolo. A questão não é morar na favela, que qualidade de vida você tem nessas localidades? Qual é a possibilidade que você tem de ser um cidadão, mesmo sendo um cidadão pobre? Essa que é a questão. Não dá para todo mundo ser rico, nem todos vão ser ricos, mas como é que você dá qualidade e dignidade para a vida dos pobres?
Salto – Como as exigências do consumo podem afetar os jovens?

Itamar Silva – Essa questão do consumo é um tema para a gente levar em consideração, porque ele pressiona toda sociedade e a juventude em particular. A juventude é muito mais suscetível a esse tipo de pressão. E aí tanto a juventude pobre, a juventude classe média, quanto a juventude rica. A questão é a escala, um vai estar pressionado para comprar um tênis e aí vai achar que resolve isso fazendo um pequeno roubo, outro, para comprar um carro vai cometer um assalto maior, vai cometer um ato ilícito de outra natureza, o que lhe dê mais dinheiro, mas eu acho que há uma pressão generalizada para esse mundo consumista que a gente está vivendo. Acho que isso nos remete a pensar questões de valores, então hoje lidar com juventude significa resgatar alguns valores e entender quais são os valores novos que a juventude está trazendo. O que ela revela para ela como valor? Porque muitas vezes a gente fica lidando com coisas do passado, por exemplo: você pega a questão família, para a gente é um valor muito forte, mas tem mais a ver com a nossa trajetória, é importante entender como é que a juventude hoje olha para a família, que família ela está trazendo, o que ela está valorizando dessas relações e, muitas vezes a gente está fechado para isso e não consegue entender. Então, para eu pensar em consumo significa também pensar valores, que valores que a gente está trazendo, que valores que essa sociedade coloca como ideais e que novos valores essa juventude está trazendo?

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