Por Ola Balogun
Tradução Marco Aurélio Luz
Pesquisa de imagens e epígrafes Marco Aurélio Luz
"O escultor africano interpreta uma visão coletiva do mundo"
(Ola Balogun)
As formas da arte africana não se caracterizam de nenhum modo por uma unidade de estilos, e seria um erro pensar que todas elas têm um alcance e uma orientação idênticas. Toda cultura é resultado de múltiplas correntes, por vezes inclusive aparentemente contraditórias, e a arte africana não é uma exceção à regra.
Então, embora não exista uma única forma de arte que se possa definir como estritamente africana,todavia existe sim, em troca um amplo conjunto de estilos e de formas que constituem a arte africana.
Painel com diversos estilos de esculturas
Por seu ambiente e por sua motivação, esta arte não se parece com nenhuma outra. As formas de arte africanas, raramente tem por finalidade tão somente divertir. Embora às vezes apresentem uma parte de diversão não é esse seu aspecto mais importante. Nas cerimônias que se utilizam de “máscaras” o essencial é o caráter ritual da representação. Isto não impede que a própria dança, ou às vezes a perseguição simulada dos espectadores por entidades ou personagens “mascarados”, introduzam um elemento recreativo. Todavia a prática da dança não se limita a esse fim de pura diversão a não ser quando surge em certas festas ou celebrações.
Comparando, os elementos dramáticos das cerimônias rituais nunca se apresentam independentemente do contexto do qual fazem parte e cujo objetivo principal não consiste certamente em divertir.
A única exceção notável desta regra talvez se refira à arte dos narradores e dos cantores ambulantes que buscam manifestamente o objetivo de distrair o público em troca de uma remuneração. Mas, inclusive nesse caso longe de serem puras distrações, os contos e epopéias procuram tratar, sobretudo de expor princípios morais ou relatar feitos importantes.
As formas de arte mais correntes na África são a escultura (madeira ferro, pedra, bronze, barro cozido etc.), a arquitetura, a música, a dança, os ritos de caráter dramático, a literatura oral, etc. São pois, muito mais diversas e numerosas do que se supõe. São também mais complexas e mais diversificadas do que se desprende dos estudos etnológicos em geral. O exemplo das “máscaras” por um lado, e a dança dos ritos de caráter dramático, por outro, podem ajudar-nos a compreender sua significação.
A escultura (em madeira ou em outros materiais) é um dos pilares da arte africana ao mesmo tempo em que é a que mais foi divulgada no estrangeiro. As esculturas de madeira mais notáveis são as “máscaras” que integram as cerimônias.
Essas esculturas foram objeto de muitas interpretações errôneas, sobretudo porque pretenderam julgá-las aplicando os critérios estéticos da Europa ocidental.
O melhor exemplo desta confusão é de quem afirma que a arte africana é “primitiva”, baseando-se na teoria de que se os escultores africanos são incapazes de fazer uma cópia exata das formas naturais, de acordo ao estilo greco-latino clássico. Daí se deduz um corolário que carece também de todo fundamento, qual seja que em sua evolução a humanidade passou por uma fase de arte “tosca” antes de chegar por fim a perfeição formal da arte greco latina.
Este raciocínio é evidentemente falso. Em primeiro lugar os critérios estéticos não incorporam obrigatoriamente a idéia de imitação das formas naturais. Em segundo lugar,somente uma visão etnocêntrica de mundo permitiria afirmar que a inexistência de uma concepção estética análoga a surgida na Europa ocidental significa uma falta de perfeição formal.
O juízo estético que cabe formular a respeito das “máscaras” deve correr paralelo com uma perfeita compreensão de sua finalidade. Convém então analisar o caráter das cerimônias africanas cujos participantes convivem com as “máscaras” e o clima geral em que se desenrolam.
O Rosto do Divino- Na maioria das culturas africanas a “máscara” não constitui um disfarce, mas sim uma representação do divino. Assim o mito e a “máscara” estão indissoluvelmente unidos. As reproduzidas são da Costa do Marfim./ Foto de Fulvio Roiter in Correio da UNESCO.Essa epígrafe consta no Correio da UNESCO.
Estas cerimônias sagradas, obedecem em geral a um ritual destinado a invocar as
entidades ou a estabelecer uma comunicação entre elas e a coletividade, e ao mesmo tempo, pretendem recordar à seus membros os vínculos que os unem com as forças não humanas do Universo. Daí que as considerem como a manifestação material de uma força inacessível, como uma encenação temporal de algo que ultrapassa os limites humanos. Todavia, se trata de uma manifestação que exige para se produzir a participação dos humanos. As entidades estão presentes com a participação dos humanos cujos rituais dramáticos, incluem a presença inclusive de “máscaras”. Mas há também situações que o sacerdote deixa de ser humano, para se converter num avatar da divindade ou do ancestral cuja presença se invoca. Deve pois, distinguir-se dos demais seres humanos por um signo ou um conjunto de signos.
Inclusive quando existe uma forma convencional, o que o escultor aspira alcançar é uma essência oculta, e não uma aparência exterior. O estilo do escultor de “máscaras” tem sua origem em uma certa concepção, que lhe vem do sistema de crenças religiosas e do âmbito conceitual em que ele vive e trabalha. No limite muito geral das crenças e convenções da comunidade, há sempre uma ampla margem de liberdade e improvisação. Se a divindade cuja “máscara” invoca presenças que provoquem espanto, não se exigirá ao artista que copie fielmente as “máscaras” de acordo aquelas em que a divindade já foi representada, mas sim que evoque a idéia de uma presença temível, desde que se mantenha fiel às regras e convenções artísticas locais.
Um dos principais elementos de tal transformação é a “máscara”. Somente nos aprofundando é que poderemos perceber que a função essencial da “máscara” (e do traje ritual em geral), consiste em sugerir e demonstrar a presença do sobrenatural, e pode-se compreender então o marco teórico em que trabalha o escultor. Os artistas da Europa ocidental nos quais sucede a influência da arte africana, não parecem ter percebido nela senão a intenção de representar formas naturais de um modo abstrato, abstração que o cubismo e outros movimentos levaram ao extremo. Portanto, se tratava de um erro de interpretação, que obedecia a um desconhecimento do contexto intelectual próprio do escultor de “máscaras” na África.
Elemento do culto aos ancestrais Fang, que é um povo presente no norte do Gabão, ao sul do Cameroun e na Guiné Equatorial
Em muitos sentidos, as “máscaras” africanas manifestam um perfeito domínio, perfeito amplamente estudado das técnicas da criação. Um dos aspectos mais notáveis desta arte é quem sabe a capacidade de realizar assombrosas simplificações plásticas a partir de formas naturais.
Diante da maioria das “máscaras”, temos a impressão de que o escultor quis ultrapassar a simples aparência exterior das formas naturais para apreender a sua essência e que a partir dessa apreensão se criou novas estruturas. Se tomarmos como exemplo essas obras mestras que são as “máscaras” bambaras conhecidas com o nome de tyiwara, as quais se inspiram na forma e na graça do antílope, observamos que o que fica deste animal, como forma visível, se reduz a uma mera sugestão de seus atributos essenciais: suas linhas lisas e seu aspecto gracioso, a que se somam alguns elementos decorativos. Contemplando uma dessas esculturas, transcendemos a forma exterior para aprofundar no ser do animal mítico, simbolizado, em sua essência, pela forma do antílope.
Tiy-wara, o tema do antílope é característico do povo Bambara que vive no Mali, e também na Guiné, Burkina Faso e Senegal.
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/sala_de_aula/geografia/geografia_geral/africa/geral_africa_2_cultura_material_e_arte
A simplificação dos motivos naturais percebidos, incita por vezes, o escultor a elaborar uma concepção geométrica do objeto que constitui a fonte de sua inspiração. Em tal caso, os olhos se convertem em círculos ou em quadrados perfeitos, ou simples linhas oblíquas, e essas formas permanecem equilibradas, em intervalos, com outros traços concebidos da mesma forma.
As célebres “máscaras” basongues, originárias da bacia do Congo oferecem um exemplo notável a esse respeito. Não somente se dispõe as feições em torno de um conjunto geométrico constituído por quadrados (que são os olhos), mas, além disso, toda uma série de linhas curvas e em relevo sulca a superfície da máscara e acentuam seu caráter.
Escultura de estilo de povo da bacia do Congo
Este modo de manejar as formas geométricas, leva a introduzir elementos rítmicos no campo da plástica, graças aos efeitos de simetria e de assimetria obtidos mediante a disposição dos diversos elementos. Em muitas “máscaras” congolesas e gabonesas, a repetição de curvas regulares que representam certos traços do rosto como, por exemplo, as sobrancelhas, os olhos e os lábios, criam uma série de ritmos que recordam os ritmos musicais.
Mais surpreendente ainda, é a concepção arquitetônica de muitas “máscaras” esculpidas inclusive quando é concebida para ser levada verticalmente diante do rosto, a “máscara” raramente consiste em uma superfície plana. Na maioria dos casos vai muito mais além de sugerir formas de duas dimensões, da realidade e tentar encaixar num espaço tridimensional.
Pode-se utilizar o espaço de três dimensões plenamente no caso da “máscara” para cabeça, que se leva horizontalmente sobre esta. È o caso da “máscara” bambara (tyi-wara) ou de certas “máscaras” baules, senufos, (Costa do Marfim), e iyos (Nigéria meridional). As primeiras representam espíritos de búfalo, e os demais espíritos da água. Durante a dança o dançarino lhe apresenta aos espectadores (conforme o lugar que ocupam) desde os diversos ângulos, o qual produz em cada posição, um efeito visual
diferente. E, efetivamente, o aspecto da máscara contemplada de frente é totalmente distinto da que se apresentam quando se olha de perfil, e o dançarino ao baixar a cabeça, se observa que também a parte de cima está concebida de um modo distinto. O focinho e os dentes do personagem mítico podem perceber-se como a parte mais importante quando se olha de frente, e as orelhas e os chifres quando é contemplado de perfil. Olhando desde cima, o focinho e os dentes desaparecem do todo e somente são visíveis as formas geométricas construídas em torno dos traços da cara.
As características das formas – A “máscara” de cara e a “máscara” de cabeça – podem estar associadas (as “máscaras” geledes dos yorubas da Nigéria meridional costumam cobrir o rosto e a cabeça). A cara da “máscara” pode representar o rosto humano, embora a cabeça e a coroa representem personagens ou animais esculpidos em relevo e ilustrando diversas atividades: leopardos, guerreiros, cavalos ou soberanos sentados sobre seu trono. Em certas versões recentes aparecem inclusive automóveis e aviões.
Gelede- elemento estético ritual do culto Gelede muito afamado no reino de Ketu, Nigéria. O rosto traz uma coroa adornada com motivo de quatro pássaros aludindo à simbologia das Iya mi as mães ancestrais e aos valores dos princípios de sociabilidade de colaboração e repartição. Acervo e foto M.A.Luz
O escultor africano procura deleitar a vista do espectador sobre tudo com esses acréscimos ornamentais. Os elementos decorativos que utiliza mais comumente consistem em formas geométricas ou em pequenos motivos repetidos num certo número de vezes em temas distintos e novos que venham a somar com a cultura original. Em último caso uma cara humana poderá aparecer coroada, por exemplo, por um pássaro ou por qualquer outro elemento estranho, acrescentado também uma finalidade decorativa.
Acréscimos ornamentais, desenhos geométricos
No campo da plástica é difícil superar a audácia de certas “máscaras” africanas. Em uma “máscara” bachamam (Camerun), que representa em forma muito estilizada um rosto humano, as bochechas são estruturas cônicas salientes cuja parte superior, ligeiramente arredondada, serve de suporte aos olhos, que se situam em um plano horizontal. Debaixo das sobrancelhas as órbitas são transformadas em superfícies verticais alargadas que dominam os olhos como a parte superior de uma concha de ostra em que estão apoiadas.
A influência da arte africana que demarca o aparecimento da “arte moderna” está patente na pintura célebre de Picasso “Les Demoiselles D`Avignon”.
Um tratamento tão audaz das superfícies (o movimento cubista se desenvolveu precisamente através da influência direta desse estilo) seria inimaginável sem uma concepção muito avançada e sem um domínio total dos fatores e plásticos. Em certo sentido, a “máscara” é um instante de eternidade petrificado, mas os movimentos da dança lhe darão nova vida e a submergirão em um ritmo da existência humana.
Por um estranho paradoxo, o artista consegue uma liberdade completa em seu modo de tratar as formas precisamente porque suas próprias preocupações estéticas cedem ao ritmo e a função que desempenha a “máscara”.
Com efeito, a finalidade de seu trabalho consiste freqüentemente em sugerir formas e materiais, e não em copiar diretamente da natureza.
A arte da decoração se manifesta de modo ainda mais evidente em objetos puramente decorativos de uso doméstico. Muitos objetos pequenos do mobiliário têm elementos decorativos, que vão desde formas geométricas até personagens ou outros acréscimos ornamentais, às vezes de tamanho natural.
A arte africana, tanto profana quanto sagrada, dá sempre amostra de um grande refinamento. O escultor sabe imprimir no objeto doméstico, o utensílio de uso cotidiano a mesma nobreza, a mesma graça que se destaca na estátua ritual ou o elemento de relicário. Exemplo disso é essa escultura de estilo luba (sul do Zaire) cujo suporte está formado por um homem e uma mulher que se acariciam com pudor e ternura./foto Willy Kerr Coleção Particular, Bruxelas in Correio da UNESCO
A semelhança das “máscaras”, a maioria dos objetos esculpidos africanos é de madeira. Não se trata de objetos concebidos com finalidades estéticas e para serem apresentados como tais. A maior parte dessas esculturas africanas são objetos mágicos ou representações simbólicas de antepassados ou de entidades e por conseqüência, sua finalidade essencial é representar essa função. O escultor procura antes de tudo adaptar seu estilo a ela, ajustando-se por sua vez às tradições artísticas que herdou. Assim, quase nunca tentará reproduzir as feições naturais e criar uma obra realista. Daí se deduz que seja raro encontrar estátuas de tamanho natural ou inclusive que respeitem as proporções dos seres vivos reais.
Talismã de fecundidade – um homem e uma mulher sentados apresentam mutuamente uma menina. Com esta escultura também de arte luba, se procura invocar a força vital que incrementa a família./foto W. Hugentobier, Museu de Etnografia de Neuchatel, Suíça, in Correio da UNESCO.
Precisamente porque o escultor não concebeu sua obra com a única finalidade de criar formas agradáveis à vista, suas esculturas chegam a ser tão impressionantes que podem parecer um paradoxo a um ocidental.
Entre os tipos de esculturas mais conhecidos cabe citar as estatuetas comemorativas dos antepassados e as estatuetas rituais de entidades colocadas em relicários. Essas esculturas antes de tudo são “objetos dotados de um poder”, e sua eficácia no plano religioso depende tanto da destreza do escultor como dos ritos com que estão relacionadas.
Uma obra executada sem destreza, ou que muito se afaste dos cânones estéticos sagrados tradicionais do estilo próprio de uma comunidade ou de um grupo de comunidades em que foi criada, não será admitida.
A escultura, com suas características próprias, está pois estreitamente relacionada com todo o contexto sociocultural. Por essa razão, tentar fomentar a produção comercial de obras de arte desse tipo, pensando que vão poder conservar simplesmente as aparências exteriores que lhes confere seu estilo próprio, seria seguramente um fracasso.
As características estilísticas da escultura sagrada e as soluções técnicas que essas características trazem aos problemas e preocupações puramente artísticos, na verdade são elementos de um amplo conjunto que engloba um sistema religioso que transcende o artista como indivíduo.
Esse tipo de escultura é obra coletiva de toda uma civilização, e o compromisso do artista consiste em servir de intermediário, encarregado de materializar a visão e as crenças coletivas.
Escultura em Marfim do povo do antigo império do Benim. Está no Museu Britânico e foi escolhida como símbolo do II Festival Mundial de Arte e Culturas Negras e Africanas, realizado em Lagos Nigéria no ano de 1977.
É preciso ter sempre presente que o escultor não se contenta em reproduzir detalhadamente as formas que impõe a tradição a essas estatuetas mas sim que utiliza o modelo tradicionalmente admitido como uma fonte de inspiração a partir da qual pode dar rédeas soltas a sua capacidade criadora. As cópias executadas maquinalmente com fins puramente comercias e para satisfação dos turistas carecem de vida e são estéreis desde o ponto de vista artístico, enquanto que as obras atuais aprofundam suas raízes no respeito às tradições socioculturais continuam tão vigorosas como as obras de arte do passado.
NOTAS
1-Ola Balogun cineasta e escritor da Nigéria, foi especialista da UNESCO em matéria de formação de pessoal cinematográfico. Dirigiu numerosos filmes e também documentários, como Vivir (1975) e Musik Man (1976) dentre muitos outros. Participou do corpo de jurados do Festival do Filme Pan-africano de Cartago (Tunísia). Autor de várias obras de teatro (Xangô. O rei elefante), escreveu para a UNESCO vários estudos sobre cinema, a arte e a cultura da África.
2-Nesta tradução tomamos a liberdade de colocar entre aspas na palavra “máscara”. Essa opção, se deve ao fato de não encontrarmos uma palavra que realmente reflita as características essenciais das esculturas e adornos rituais na bacia semântica dos símbolos na cultura africana.
3-Esse artigo traduzido pelo nosso colaborador Marco Aurélio Luz, pode ser encontrado no Correio da UNESCO (publicação mensal)maio de 1977,ano XXX,ps 12-26.