Por Marco Aurélio Luz
Confesso que hesitei em aceitar o convite da SIOBÁ-Sociedade Beneficente de Ojés,Ogãs e Tatas, devido à responsabilidade que implica falar sobre uma pessoa da grandeza do estimado e admirado Abdias. Mas como o convite partiu de Duarte Abajigan do terreiro do Bogun, amigo e irmão de longa data para falar numa sociedade da qual participa e que reúne ojés, obás, ogans e tatas, senti-me a vontade, pois o interesse deles é a presença cultural da religião africano-brasileira na obra e na trajetória de vida de Abdias, sua composição na luta contra o racismo em sua variada forma.
Everaldo Duarte ogã do Bogum e Coordenador Religioso da SIOBÁ
O motivo do convite foi que ele leu meu artigo no blog da ACRA. Enfim acabei por aceitar. Não me arrependo tanto mais que Narcimária foi também. Um público pequeno, porém muito interessado e que por vários momentos se emocionaram e me emocionaram durante a apresentação.
Diretoria do SIOBÁ formada por ojés, ogãs,tatas
Comecei dizendo que em nossa cultura africana, espiritualidade, linguagem e identidade, se manifestam através das artes, poesia, pintura, conjuntamente com ciência, filosofia, política; e se inter-relacionam, e em Abdias essas expressões são uma coisa só, embora possam parecer separadas no tempo e no espaço.
Fiz com meus filhos uma pequena montagem de slides ilustrando a emocionante e vibrante récita da poesia Padê do Exu Libertador na voz de Abdias. Comecei por essa exibição.
Todos ouviram contritos e emocionados ao final responderam:
- Laroiê! e bateram palmas.
Público atento a palestra
Fiz algumas considerações sobre os fundamentos teológicos da poesia; Padê= reunião de entidades, invocação para Exu tornar os desejos exeqüíveis, uma vez recebidas as oferendas mobilizadoras de axé, e na poesia de Abdias os pedidos são para que se possa combater e vencer as injustiças que afligem o povo negro. Contei o itan, a história, que se refere ao Exu Yangi, de como a humanidade ficou encarregada de restituir através das oferendas o axé necessário a continuidade da existência. Ficou bom porque é uma história também de Orunmilá e era dia de sexta-feira.
Contei do episódio do filme de Antônio Olavo, em que Abdias narra, da mãe protegendo e se solidarizando com o menino carente agredido pela mulher branca em Franca, e que ficou desde a infância para sempre gravado em sua memória como um ato que influencia e impulsiona sua vocação de luta pan-africanista.
Nesse sentido contei também, o episódio narrado por Mestre Didi, em que Mãe Senhora Iyalorixá..., Iyá Nasô... Asipá.. deixa esperando o cônsul americano em visita ao ilê Afonjá e depois explica para os ogãs agoniados, que da porteira para dentro estão seus poderes absolutos,e da porteira para fora a luta pelos direitos da gente dela, que ela bem sabia estava sendo maltratada na terra dele.
Então nessa dinâmica "da porteira para dentro/da porteira para fora" é que se dá a defesa da tradição africana e a luta pan africanista.
“-O Teatro Experimental do Negro foi criado para fortalecer os valores da cultura tradicional africana. Foi criado para combater o racismo sim, mas também para firmar nossos valores. Não queríamos apenas ter o direito de entrar numa barbearia, num cassino ou num restaurante”... (Abdias ,entrevista ao Portal Afro)
Como cientista social engajado, Abdias se destacou pela crítica fundamentada à ideologia da “democracia racial” que obnubilava a percepção da prática do racismo no Brasil enganando muita gente. Era a ideologia vigente ou dominante como querem uns e outros.
Ele demonstrou a intencionalidade genocida da criação ideológica da política do embranquecimento pelas teorias psi de Nina Rodrigues, que fez uma equivalência entre o transe ou manifestação de entidades das religiões afrobrasileiras com o surto de histeria. Duas situações completamente diferentes mas aproximadas grosseiramente para concluir que a doença mental era genética na raça negra e por isso seria uma “raça inferior”. Ora, com o apoio de Roger Bastide, Abdias demonstrou que uma manifestação está na ordem do discurso da cultura, do simbólico, é um momento da religião, do religare, a transição do aiyê para o orun de nossa dimensão profana para a sagrada compartilhada e acompanhada por sacerdotisas, sacerdotes e fiéis em determinado momento da liturgia. É um aspecto de um momento de profunda comunhão e fortalecimento dos vínculos sociais comunitários. A outra, é um acontecimento da ordem de um delírio em direção ao imaginário, de fuga das vinculações sociais. A intenção de Nina Rodrigues era desqualificar a tradição religiosa africana fonte de afirmação da identidade cultural negro brasileira.
Outra ideologia foi a da mestiçagem, incentivando a emigração de europeus para “melhorar a raça brasileira” para predizer que com o aumento dos mestiços a tendência seria o fim dos negros no Brasil. Também com isso acabaria o racismo? Abdias logo viu que aí mesmo estava o racismo, e pior o mais cruel, ou seja, o desejo genocida do fim, do extermínio de um povo. Tudo isso com farta documentação de discursos ideológicos que alimentam a Razão de Estado.
Destaco a crítica à ideologia do sincretismo, também como na teoria da mestiçagem em direção a predominância do branco, aqui é o esmaecimento da pujante tradição cultural afrobrasileira para algo misturado, amalgamado com as linguagens e valores do catolicismo. Nada mais falso. Se alguma aproximação ocorre, foi por conta da repressão feroz aos cultos de tradição africana seja pelos aparelhos da força publica seja pelas instituições ideológicas. O negro se defendeu fazendo determinadas associações simbólicas com muito alarde, mas no espaço púbico das festas de largo, nas procissões e datas comemorativas dos santos então associados a determinadas entidades do panteão africano. Todavia, no âmbito da liturgia da tradição africana nada há de católico, como acrescentei eu nas minhas obras; na verdade, ao contrário do que se faz crer, há muito mais uma africanização do catolicismo que qualquer outra coisa.
Marco Aurélio Luz palestrante no evento do SIOBÁ
Essas são de modo resumido as ideologias para manter um Estado europocêntrico que reluta em assumir a africanidade da maioria de seu povo, tanto mais que a cultura afrobrasileira é a predominante da maioria do povo.
Portanto o Brasil padece de um verdadeiro abismo entre o Estado e a Nação.
Quando saindo de S. Paulo no final dos anos 30 para o Rio de Janeiro, foi que Abdias teve suas primeiras aproximações com a religião africana, e que conheceu o terreiro do afamado Babalorixá Joãozinho da Goméia, em Caxias.
Desde então se desenvolve cada vez mais essa relação e a sabedoria de que para tudo que se pretende fazer, deve-se mobilizar o axé correspondente. Daí a invocação dos orixás, em vários momentos de seus discursos para que as ações se concretizem.
Li um trecho do texto conclusivo do livro “O Genocídio do Negro Brasileiro, processo de um racismo mascarado”:
“Para mim, o mistério ontológico e as vicissitudes da raça negra no Brasil se encontram e se fundem na religião dos orixás;o Candomblé. Experiência e ciência, revelação e profecia, comunhão entre os vivos, os mortos, e os não nascidos, o Candomblé marca o ponto onde a continuidade existencial africana tem sido resgatada. Onde o homem pode olhar a si mesmo sem ver refletida a cara branca do violador físico e espiritual de sua raça. No Candomblé, o paradigma opressivo do poder branco, que há quatro séculos vem se alimentando e se enriquecendo de um país que os africanos sozinhos construíram, não tem lugar nem validez.É por isso que os Orixás são a fundação da minha pintura”. (p. 182)
Recentemente ele visitou o Ilê Axé Opô Afonjá e se confraternizou com Mãe Stela, Iyalorixá Odé Kaiodê.
Finalizei com a projeção do filme de Antônio Olavo, o trecho em que Abdias é condecorado no decorrer de um Congresso Internacional, e recebe uma medalha de comendador das mãos do presidente Lula, e depois ele sai empurrado em sua cadeira de rodas por Elisa Larkin do Nascimento(sua esposa), parando para receber os cumprimentos.A ação é acompanhada pela interpretação do cântico que saúda os alabês os tocadores de atabaques, que proporcionam a comunicação entre o aiyê e o orun. Quem canta com uma bela interpretação criativa no solo do bel canto, é Inaycira filha do Mestre Didi, neta de Mãe Senhora. Nisso no saguão ouve-se os atabaques ao vivo nos toques do samba de roda do recôncavo. Ele se aproxima, e surpreendentemente se ergue da cadeira arrebatado pelo ritmo que não deixa ninguém parado, e faz par com a senhora que já estava na roda. É tudo muito bonito, sublime e alegre.
No nosso auditório todo mundo fica tomado de emoção por essas imagens. Então vou encerrando minha modesta contribuição agradecendo por ter sido honrado com essa participação.
Mas aí,Everaldo Duarte retoma a palavra após os aplausos e relata a experiência que viveu com a visita de Abdias ao Ilê Aiyê. O mais importante além da emoção por ele vivida, inclusive por estar trabalhando na direção de um grupo de teatro da entidade, foi que Abdias comunicou a Mãe Hilda, Iyá Jitolú, que era importante fazer alguma cerimônia funerária para o glorioso líder e herói Zumbi dos Palmares. Ela concordou e no ano seguinte subiram a Serra da Barriga para as homenagens merecidas com enorme séquito do movimento negro ao som das baterias e cânticos dos blocos afros.
Acrescento agora que Abdias nessa ocasião, fez veemente discurso de esperança nas vitórias do povo negro invocando e pedindo a proteção dos orixás.
Everaldo Duarte Abajigã e Marco Aurélio Luz Oju Obá