Por Marco Aurélio Luz
A NEGRA
Tarsila do Amaral
Imagem disponível em http://www.revistaleaf.com.br/tarsila-do-amaral/1303/
O solo de origem onde está assentada a cultura negra se refere ao mistério da existência. Desde aí se desenvolvem linguagens, valores e instituições que visam aplacar nossa angústia existencial realizando elaborações religiosas para procurar substituir o sentimento de temor pela alegria de estar no mundo. Então esse mundo e o além, o aspecto imanente e aparente do ser se completa com o aspecto transcendente e essencial do ser. Enfim podemos dizer também que a vida e a morte são uma coisa só “okan naa ni”, como dizem os mestres nagôs.
Aqui não há espaço para a dúvida shakspeareana, “to be or not to be”, ser ou não ser, na cultura negra da tradição, o ser é e o não ser também é.
A religião promove a circulação da força imaginal, axé para os nagôs, que permitirá a continuidade do existir, através da liturgia que se expressa através de complexos códigos de uma estética que visam a favorecer e a fortalecer as relações entre esse mundo e o além entre o aiyê e o orun em língua yoruba.
Essa estética então é a da representação da essência do ser, ela visa a representar para os viventes de um lado os ara orun, os habitantes do orun, ancestrais e de outro os orixá, princípios que regem a natureza. Daí que essa estética não tem referencias a representações desse mundo, do real aparente. Essa é uma estética do mistério do que é invisível do que não se conhece nem se conhecerá.
Foi tomando contato com essa estética nos museus coloniais da Europa que Pablo Picasso deu início, entre 1907 a 1909 ao que se convencionou chamar de período africano, que se tornaria a base do cubismo e da chamada arte moderna no ocidente. Não podemos deixar de citar Modigliani que rivalizou com Picasso em Paris e que foi bastante influenciado pela estética africana, sobretudo do Congo e do Gabão que ele entra em contato no Museé de L´Homme.
Pablo Picasso Les Demoiselles d’Avignon (1907)
Imagem disponível em http://madsilence.wordpress.com/tag/pablo-picasso/
Os cânones formais dessa estética instalam um novo movimento a da arte moderna revolucionando o mundo artístico no Ocidente.
Escultura de Amedeo Modigliani (1884-1920)
Imagem disponível em http://www.writedesignonline.com/Prompts/Modigliani.html
No Brasil a Semana de Arte Moderna de 1922 foi um marco da luta pelas mudanças estéticas. Fazendo parte do movimento, na pintura sobressai a obra de Tarsila do Amaral.
Ela estudou em Paris onde teve Fernand Léger como mestre e conviveu com vários outros pintores cubistas como Picasso e também com os surrealistas.
Em 1923 já estava casada com Oswald de Andrade e foi quando pintou o quadro A NEGRA, que a fez entrar na história da arte moderna brasileira e juntamente com a pintura de ABAPORU seriam os ícones do movimento antropofágico, que visa a deglutir as linguagens artísticas do mundo europeu transformando em expressão de novas linguagens característica da brasilidade.
Tarsila do Amaral
Antropofagia 1929
Imagem disponível em http://www.novidadediaria.com.br/cultura/tarsila-do-amaral
A NEGRA caracteriza exatamente uma postura da arte africana que ultrapassando a realidade aparente capta a essência do que se está representando. A pintura emerge da imagem da senhora que foi ama de leite na fazenda de seus pais no interior de Minas e se transmuta para realçar o seio, a mama que alimenta os nascituros e garante a continuidade da vida.
Nos fins dos tempos coloniais as mulheres brancas dos senhores, estavam envoltas num claustro virginal para garantir a autenticidade dos herdeiros das propriedades e poucas amamentavam seus próprios filhos.
Assim sendo mesmo nesses tempos de agruras, mulheres negras realizaram sua essência feminina, mesmo naquele momento de escravidão, sendo mãe e ainda alimentando com sua seiva os nascituros de outro continente.
Se observarmos o panteão das entidades da religião africano-brasileira veremos a importância que a maternidade ocupa, caracterizando o poder e o mistério feminino, o poder e o mistério da mulher com sua capacidade de transmutação de seu corpo gestando filhos, filhas e alimento que brota do seio e se liga ao recém nascido.
Assim A NEGRA se torna não só ícone do movimento modernista mas também um símbolo da brasilidade.
Se estendermos nossa compreensão poderemos concluir que o seio alude simbólicamente também a seiva que caracteriza a presença das mulheres africanas no Brasil que com sua cultura e espiritualidade, sua entrega e doação constituíram o melhor de nossa gente.