Entrevista com Nilma Lino Gomes
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“Na sociedade e na escola brasileira – da Educação Básica ao Ensino Superior – os docentes conseguem, muitas vezes, ficar indignados diante do racismo, porém, continuam imóveis. Essa é uma das maneiras por meio das quais o mito da democracia racial opera em nossa sociedade”, diz a professora da Faculdade de Educação da UFMG e coordenadora-geral do Programa Ações Afirmativas na UFMG, Nilma Lino Gomes. Nesta entrevista a Revista Dimensão na Escola(Ano II - n.8 - setembro/outubro 2008 - ISSN 1981-7037)ela fala da importância da Lei Federal que torna obrigatório o ensino de História e cultura africana e afro-brasileira na Educação Básica.
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Qual a importância da Lei Federal 10.639/03?
NLG-A lei é importante em vários aspectos. O primeiro ponto é que se trata de uma alteração da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), que inclui artigos ligados à obrigatoriedade do ensino de História e cul¬tura africana e afro-brasileira. Dessa forma, a Lei 10.639/03, que acaba de ser alterada para 11.645/08 (devido à inclusão da temática indígena), é uma lei nacional e por isso deve ser cumprida em todas as escolas públicas e privadas da Educação Básica do País. O segundo ponto é que essa Lei é uma medida de ação afirmativa. Ela é fruto da ação histórica do Movimento Negro e sua pressão em relação ao Estado. Antes mesmo de a Lei existir, várias ações nesse sentido já eram realizadas em diferentes partes do País, porém, como iniciativas isoladas do Movimento Negro ou de intelectuais interessados no tema. A Lei 10.639/03 é o reconhecimento do direito à diferença.
A Lei tem conseguido abrir o debate sobre a questão racial na educação?
NLG-Aos poucos, os educadores e as edu-cadoras vão compreendendo que discutir a questão africana e afro-brasileira de maneira crítica, séria e pedagógica é um dever de todo e qualquer educador e não somente uma pauta de luta do Movimento Negro. Ou seja, a questão racial atinge a todos nós, independentemente do nosso pertencimento étnico-racial. E se desejamos construir uma escola e uma sociedade mais democráticas te¬mos que nos posicionar na luta contra o racismo e contribuir para a supera-ção de estereótipos e preconceitos raciais. É uma questão de cidadania, mas não de uma cidadania abstrata. Eu diria que é uma cidadania multi¬cultural. Algo que no Brasil ainda tem sido muito pouco discutido.
E como tem sido a experiên¬cia na formação inicial e continuada de professores?
NLG-Acho que na formação continuada temos mais experiências interessantes. Lamentavelmente, na formação inicial, nos cursos de Pedagogia e Licenciatura e também nos Bacharelados, encontramos inúmeras resistências à inclusão da discussão sobre a África (de maneira crítica) e a questão afro-brasileira. De modo geral, tais discussões ainda ficam restritas às disciplinas optativas, ministradas pelos docentes interessados no tema. A África e a questão racial brasileira continuam invisíveis na grande maioria das grades curriculares dos cursos de graduação e pós-graduação, sobretudo na área da educação. Se somarmos a isso a questão de gênero e geracional, teremos um quadro ainda mais grave.
Por que as escolas de Educação Básica têm dificuldades para aplicar a Lei?
NLG-Os motivos são vários. Eu poderia destacar alguns. Acho que as escolas, assim como a sociedade, vivem sob a égide do mito da democracia racial. Essa crença de que vivemos relações raciais harmoniosas, de que a miscigenação brasileira resolveu os problemas raciais no Brasil é algo terrível! Ela desvia o nosso olhar das sérias conseqüências do racismo na nossa vida e embota o entendimento das pessoas. O currículo, os livros didáticos e a própria política educacional expressam de várias formas esse mito e ele ajuda a construir resistências ao debate, à discussão e à implementação de práticas pedagógicas voltadas para a diversidade étnico-racial. O que sabemos sobre a África? E sobre o negro brasileiro, suas histórias, suas lutas e conquistas? É forte ainda a presença de imagens estereotipadas e opiniões coladas no senso comum. As pessoas lêem pouco sobre o tema e repetem várias distorções do assunto realizadas pela mídia brasileira. Há também o desconhecimento do tema, o que acarreta dificuldades na implementação da Lei. Por isso, o investimento na formação inicial e continuada de professores é importante.
Mas a diversidade cultural e étnico-racial brasileira ainda não se tornou um dos eixos orienta¬dores das políticas, das práticas e dos currículos, não é?
NLG-A Lei 10.639/03 é um passo importante nesse sentido, mas para que ela realmente desencadeie uma política educacional efetiva há um longo caminho a percorrer. E para que o resultado desse percurso seja positivo é necessário que se criem condições concretas para tal. Penso que deveria haver maior preocupação pública e institucional do MEC, das secretarias estaduais e municipais de educação de todo o país em relação à superação de práticas preconceituosas, visões negativas do negro e de outros grupos étnico-raciais. E deveria haver maior inserção de uma discussão que privilegie a visão positiva e afirmativa sobre a história e cultura afro-brasileira e africana. Para isso precisamos de financiamento, formação inicial e continuada, material didático-pedagó-gico, pesquisas e monitoramento das ações. É preciso também criar espaços de formação em serviço, no interior da escola, para que os docentes discutam coletivamente e pensem ações, projetos e estratégias pedagógicas conjuntas. O trabalho com a diversidade cultural e étnico-racial não se faz no isolamento.
Na sua avaliação, estão sendo produzidos materiais que contribuem para o ensino da cultura negra e da história da África?
NLG-Sim, aos poucos esses materiais vêm sendo produzidos tanto por parte do público quanto do privado. Digo isso porque, além do Ministério da Educação e de ações de secretarias municipais e estaduais, a iniciativa privada começa a investir também. Mas ainda é muito pouco, se comparado com a necessidade e com a demanda. E nem todo material é de boa qualidade. É preciso avaliar com calma e criticidade.
Há experiências bem sucedidas nas escolas de Educação Básica?
NLG-Não temos ainda um mapeamento sistemático dessas ações. Pela minha experiência, vejo que os trabalhos bem sucedidos dizem respeito mais aos processos de formação continuada. Eles acabam sendo experiências individuais de docentes ou coletivos de educadores interessados no tema, ou articulações entre algumas secretarias de educação, a universidade, a gestão da escola e professores e professoras. Há projetos de trabalho que articulam ações com alunos, comunidade e movimentos sociais, mas são pouco conhecidos. Por isso, agora é o momento de começarmos a pesquisar mais e avaliar as ações pedagógicas em sala de aula, os projetos pedagógicos interdisciplinares que vêm sendo desenvolvidos e o impacto desse processo na formação dos alunos. Embora a Lei seja recente, já é hora de começarmos a pensar nesse aspecto.
Que sugestões você daria aos professores?
NLG-Acho que os docentes deveriam entender o caráter da Lei 10.639/03 e aproveitar esse momento político e pedagógico que vivemos para se indagarem sobre qual tem sido a sua postura diante da questão racial na escola e na sociedade. A discussão crítica e pedagógica da questão racial e africana na escola é um direito. E, enquanto tal, deve ser garantida. Já é hora de os educadores superarem o discurso de que o negro é discriminado somente porque é pobre e de que as políticas universais atingem igualmente negros e brancos. É preciso conhecer as pesquisas que nos ajudam a compreender melhor essa situação. Se não tivermos ações afirmativas sérias no Brasil, as desigualdades raciais e o racismo se arrastarão ainda por muitos anos. Outra sugestão é conhecer mais as lutas, os avanços, a resistência negra no Brasil. É importante também conhecer a História da África sob o prisma dos africanos e não somente dos colonizadores ou neocolonizadores. Há muita riqueza, sabedoria, beleza a descobrir. Não temos somente uma história de pobreza, racismo, colonização e desigualdades quando falamos sobre o negro brasileiro e sobre a África. É preciso equilibrar a discussão com a denúncia do racismo (esse ponto nunca deverá sair da nossa pauta!) e as vitórias e conquistas. O povo africano e os negros brasileiros devem ser tratados, na educação, na sua dimensão histórica, política, cultural e social. O conteúdo da Lei e suas diretrizes curriculares nacionais devem ser entendidos como constituintes da nossa formação pedagógica e escolar, e não como uma questão à parte. A história do negro brasileiro faz parte da história do Brasil, e a história da África faz parte da história do mundo. Não podemos mais passar pela educação básica e pela universidade sem compreender essas questões.
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