Por Ubiratan
Castro de Araújo
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RESUMO
Para
compreender o processo permanente de elaboração da identidade negra neste país
africano da Bahia, é necessário, sobretudo, não esquecer o cordão umbilical
pelo qual os baianos acreditam estar ligados à África. Ao longo da história,
depois do tempo da escravidão, este mito fundador dos negros da Bahia se
adapta, se transforma, muda suas máscaras e seus hábitos para desempenhar o
papel mágico de uma espantalho que afasta a tentação, aliás sempre proposta
pelas elites brancas, de aceitar a idéia segundo a qual os negros brasileiros
seriam um simples produto da sociedade escravista luso-tropical. Para esses
negros da Bahia, é necessário estabelecer suas raízes antes e fora da
escravidão. Assim, o tempo e o lugar da liberdade original não podem estar
dentro do Brasil. Utopia, anacronismo, pouco importa, esse refugio da herança
cultural da escravidão é o núcleo duro da identidade negra baiana. Esta utopia
identitária fundamenta-se em uma constante evocação e reelaboração da das
matrizes culturais africanas, o que só é possível graças às comunidades
religiosas do Candomblé, verdadeiros arquivos da memória africana na Bahia.
Palavras-chave:
Identidade negra – Cidadania negra – Memória e História Afro-Brasileira
A UTOPIA AFRICANA
Para
compreender o processo permanente de elaboração da identidade negra neste país
africano da Bahia, é necessário, sobretudo, não esquecer o cordão umbilical
pelo qual os baianos acreditam estar ligados à África. Ao longo da história,
depois do tempo da escravidão, este mito fundador dos negros da Bahia se
adapta, se transforma, muda suas máscaras e seus hábitos para desempenhar o
papel mágico de um espantalho que afasta a tentação, aliás sempre proposta
pelas elites brancas, de aceitar a idéia segundo a qual os negros brasileiros
seriam um simples produto da sociedade escravista luso-tropical. Para esses
negros da Bahia, é necessário estabelecer suas raízes antes e fora da
escravidão. Assim, o tempo e o lugar da liberdade original não podem estar
dentro do Brasil. Utopia, anacronismo, pouco importa, esse refúgio da herança
cultural da escravidão é o núcleo duro da identidade negra baiana. 1
Essas
tentações são especialmente apresentadas durante as conjunturas de mudança
acelerada dos termos de integração do Brasil em uma economia mundial, durante
as quais foram registradas algumas medidas importantes para a modernização da
sociedade brasileira e, por conseqüência, das relações raciais no país.
Entretanto, o fracasso de todas as sinceras tentativas de desenvolvimento das
novas identidades negras nessas conjunturas de modernização explica o retorno
dos movimentos de afirmação do negro à tradição africana, tal como ela é
preservada dentro das comunidades religiosas.
Os
Nagôs e os Sabinos: a formação do Estado Nacional Brasileiro
Por
volta do fim do século XVIII, no início do século XIX, o Ocidente foi sacudido
pela primeira vaga de revoluções liberais, desencadeadas pela independência dos
Estados Unidos da América, pela Revolução Francesa, pela Revolução dos Negros
do Haiti, e pelas Revoluções produzidas pela expansão napoleônica na Europa, e
pelo desmoronamento do Império de Portugal. Dentro desse novo momento da
mudialização, fundado sobre o ?livre comércio? e sobre a universalização dos
direitos do homem, dois desafios se apresentaram para a sociedade escravista
brasileira: o fim do pacto colonial com a metrópole portuguesa e o fim do
tráfico de escravos africanos.
No
que diz respeito ao primeiro desafio, foi necessário às elites coloniais
formarem um estado independente, com novas instituições, com uma ideologia
nacional e com novos critérios de enquadramento dos povos habitantes do
território do novo estado americano. Dentro dessa nova nação, quem seriam os
brasileiros? As minorias de ?brancos portugueses e de brancos da terra? ao lado
da maioria de escravos africanos, escravos crioulos, de pretos e pardos
libertos e livres? Um novo regime político, ainda que exaltando um liberalismo
semeado por todos os lugares, seria capaz de aceitar a universalização dos
direitos de cidadania em benefício das pessoas de cor? A Revolução Francesa,
ela mesma, não foi capaz de aceitar as reivindicações de Vicent Ogé para o
alargamento dos direitos de cidadania para os negros de São Domingos – esta é a
origem da Revolução Negra Haitiana. Da mesma maneira no Brasil, os
independentes tiveram necessidade de pessoas de cor para carregar os fuzis, mas
não os incorporaram como negros cidadãos.
Neste
quadro muito estreito de escolha, as populações negras da Bahia se dividiram em
dois movimentos. Os negros nascidos no Brasil, chamados na época de crioulos –
libertos, escravos e negros livres – escolheram o caminho da participação no
processo de formação do estado nacional, reclamando para eles uma nova
identidade nacional, assim como na América Espanhola, sob o impulso do
movimento bolivariano. Segundo o barão de Aramaré, um general baiano, estes
negros eram pessoas sem pátria, que desejavam fazer um a seu modo, contra
aquela dos descendentes dos portugueses, verdadeiros brasileiros. Esta massa
crioula constituiu a base armada das revoltas e dos levantes populares, desde a
Revolução dos Búzios, em 1798, até 1838, por ocasião do aniquilamento da
revolução federalista chamada Sabinada. O saldo dessa participação política foi
muito negativo: a manutenção da escravidão negra, a exclusão política pela
adoção do voto censitário e o reforço da discriminação contra os negros segundo
o critério da cor da pele. Em lugar de uma república liberal, eles viram se
afirmar um Império Brasileiro escravista. Abatidos, humilhados, esses negros
brasileiros fracassaram nos seus propósitos de afirmação de uma identidade
brasileira plena, a seu modo.
Os
negros nascidos na África, escravos e libertos, rechaçados por todos, brancos e
negros brasileiros, foram estimulados a empreender várias revoluções escravas.
De 1811 até 1835, por ocasião do levante dos africanos islamizados chamados de
Malês, suas esperanças foram renovadas. Para esses revolucionários, não estava
em questão a criação de um novo Estado Americano mas, simplesmente, a superação
do estatuto da escravidão e a colocação, em seu lugar, de um estado negro
fundado sobre as tradições africanas. Derrotados como os outros, eles guardaram
ao menos a honra do bom combatente. A propósito desses combatentes, foi formado
o mito da resistência africana, com um forte apelo identitário.
A
Abolição e a República
No
final do século XIX, tempo do cientificismo e do imperialismo, as elites
brasileiras propuseram, mais uma vez, a modernização da sociedade brasileira. O
Brasil era o último país escravista do Ocidente e a única monarquia na América.
Era necessário então abolir a escravidão e proclamar a república. E os negros
brasileiros, que pensavam eles? Abolição, sim, mas com o direito a terra e ao
trabalho. República sim, mas com a ampliação dos direitos de cidadania para
todos os brasileiros. Para miséria deles, foram considerados pelos republicanos
positivistas como pouco civilizados para o trabalho qualificado e para a
liberdade. Assim, o novo regime republicano brasileiro decidiu pela substituição
da mão-de-obra escrava pela mão de obra livre pela via da imigração européia.
No que diz respeito aos direitos de cidadania, a Constituição de 1891 decidiu
pela incapacidade política da maioria negra, recentemente saída da escravidão,
excluindo-os do direito ao voto sobre o pretexto do analfabetismo. Era ainda
uma questão de cultura! Existiam no Brasil pessoas civilizadas e outras
bárbaras. Esta república constituiu então uma espécie de colonialismo interno
pelo qual os verdadeiros brasileiros seriam aqueles que guardariam, dentro da
sua cultura, os traços construtivos da civilização européia.
Era
o tempo de civilizar os bárbaros a tiros de fuzis. Essa nova ordem foi
finalmente imposta em 1897, quando o Exército brasileiro, sob o comando da
esquerda republicana, exterminou o arraial baiano de Canudos, e decapitou
milhares de camponeses negros e mestiços, considerados culpados de barbarismo,
resistência à modernidade, monarquismo, etc… Ainda no território do massacre, o
coronel Dantas Barreto escreveu à família dizendo que ele estava impaciente
para retornar à civilização – Rio de Janeiro – porque ele estava, por muito
tempo, entre os Tuaregs, no deserto, de fato naquele fim de mundo que era o
interior da Bahia? Depois dessa derrota, todos os movimentos negros de
integração política fracassaram: os negros republicanos, a guarda negra
monárquica e mesmo o Partido Operário Democrático da Bahia, dirigido por
antigos negros abolicionistas.
Na
experimentação de um papel colonizador, as elites brasileiras e sua republica
adotaram as idéias racistas, desenvolvidas na Europa, sob o rotulo da
modernidade cientifica. Produziram um sistema de representações que se dizia
cientifico, no qual os negros da Bahia e suas tradições africanas foram
enquadrados em uma classificação inferior enquanto raça negra africana,
portadora de uma cultura selvagem, um perigo potencial à civilização. Era
necessário então, segundo esses cientistas do racismo, compreender as
diferenças culturais das etnias africanas representadas na Bahia, entender
todos os perigos ocultos que eles poderiam aportar contra a civilização e
contra a civilização e contra a ordem republicana. Esse barbarismo era muito
mais perigoso porque estava disfarçado em práticas religiosas, ou em
manifestações folclóricas. A Faculdade de Medicina da Bahia foi um dos centros
mais prestigiados no Brasil, nos domínios da Medicina Legal, da criminologia,
da Antropologia Criminal. Nessa instituição foram produzidos os critérios da
racialização do povo baiano. Era o tempo da Antropologia de Nina Rodrigues.
Da
teoria a pratica, o novo regime passara então a considerar toda manifestação
publica da cultura negra de origem africana como uma vergonha para o Brasil
civilizado. A capoeira foi então declarada como contravenção criminal, assim
como a religião africana – o Candomblé. Os grupos de carnaval formados por
negros, que desfilavam na rua com motivos africanos – a coroação do rei Ménelik
da Ethiopia, por exemplo – foram proibidos pela policia. Não estavam em questão
fazer a Bahia parecer com a África.
É
assim que os negros da Bahia, para salvar suas identidades, se refugiaram na
africanidade originária. Apesar das expedições punitivas da policia, os
candomblés resistiram. Apesar das dificuldades, os intelectuais negros, tal
como o Prof. Martiniano Bonfim, estabeleceram contato direto com os Agoudas da
Costa Ocidental Africana. A pureza africana constitui então o núcleo duro da
resistência negra contra o colonialismo interno. Manoel Querino, um antigo
abolicionista, desenvolve as proposições sobre o papel do ?colono negro? na
formação do Brasil. Segundo ele, a honra dos negros brasileiros seria a sua
africanidade, porque o colono negro tinha trazido para o Brasil todas as
virtudes do trabalho, da disciplina, da sociabilidade, da espiritualidade, da
força civilizatória. Os portugueses, ao contrário, aportaram para o país o resto
de suas civilizações, os condenados pela justiça, a violência da conquista, a
preguiça dos senhores de escravos.
A
democracia Racial.
Depois
dos anos 30 do século XX, em seguida a revolução que propôs a modernização do
velho Brasil republicano, mais uma vez a questão racial estava no centro da
questão nacional brasileira. Os imperativos da industrialização e o surgimento
de uma nova classe operaria exigiam um novo enquadramento das classes populares
no Brasil. Quem são os brasileiro? É sempre a mesma questão! Um novo paradigma,
aquele da democracia racial brasileira, substitui o racismo cientifico de
outrora.
Este
novo choque de modernidade impôs as elites brasileiras um grande desafio: como
integrar as massas dentro de um processo de desenvolvimento, sem os riscos da
revolução social e fracionamento do tecido social, levando em conta a
diversidade racial da população? Os dois grandes modelos propostos ao mundo,
justamente após a segunda Guerra Mundial, eram, de um lado a revolução e o
comunismo soviético e, do outro lado, a democracia americana, marcada pela
segregação e conflitos raciais permanentes. Como então enquadrar as massas sem
perder o controle? Contra o perigo revolucionário, é colocada em ação uma
dinâmica social centrada sobre a mensagem de união nacional à procura do
desenvolvimento econômico, sob controle do estado populista, interposto entre
os burgueses e os operários para amortecer a luta de classes.
No
que respeita a população negra, viu-se o estabelecimento sólido de uma
ideologia nacional, em que um dos elementos constitutivos era a negação da
questão racial. Este novo conceito se apoiara sob a convergência de duas fortes
correntes teóricas, da direita e da esquerda. Inicialmente, o desenvolvimento
do marxismo como instrumento de analise e ação política, a partir da obra de
Caio Prado Jr., recolocara a questão racial no domínio da historia da
escravidão colonial, nos termos da expansão do capitalismo centrado na Europa e
depois nos Estados Unidos. De fato, a questão racial seria amplamente
secundária, pois os descendentes dos antigos escravos são hoje os explorados
sob o capitalismo contemporâneo. Do antigo sistema de exploração, restam alguns
traços secundários, no domínio da cultura de fato um epifenômeno da
superestrutura social. O verdadeiro problema do povo seria sua consciência de
classe, o instrumento necessário para o inicio da revolução social e não as
identidades fundadas sobre algumas permanências culturais. Esta tradição está
enraizada no pensamento de esquerda no Brasil. É a convicção de que a questão
racial e as identidades que ai decorrem são questões externas ao Brasil, uma
espécie de exportação malvada ou desastrosa de um problema que não interessa
senão aos Estados Unidos, e cuja evocação no Brasil somente pode acarretar o fracionamento
do proletariado brasileiro.
Do
lado da direita, a obra de Gilberto Freyre lança as bases da negação da questão
racial no Brasil pela afirmação da democracia racial contemporânea, resultado
histórico da adaptação da sociedade patriarcal portuguesa aos trópicos. A
apologia da mestiçagem das três raças, do branco, do índio e do negro foi
tomada como ideologia de estado para demonstrar e desenvolvimento harmônico do
povo brasileiro, um ?povo novo? dentro da versão contemporânea apresentada por Darci
Ribeiro. Segundo Gilberto Freyre, estava se estabelecendo no Brasil um tipo
?meta racial? denominado ?moreno?. Uma vez que não havia uma prática de
segregação de raças como nos Estados Unidos, a questão racial não aparecia na
classificação dos problemas brasileiros. O racismo seria então uma questão
americana, e os brasileiros, em seu subdesenvolvimento, deveriam ser muito
orgulhosos de terem superado um problema que sempre constrange os ricos
americanos.
Para
os movimentos negros brasileiros, o grande obstáculo à formação das identidades
negras, autônomas e anti-racistas, foi a deportação da questão racial do
imaginário brasileiro. Racismo era coisa de estrangeiro, de americano. Diz-se
hoje que o pior do racismo brasileiro é crer e fazer crer que não existe
racismo no Brasil. Em um cenário contemporâneo de mundialização da cultura e da
informação, em que se tornam possíveis as trocas entre vários movimentos negros
no mundo, este obstáculo não chega a ser superado. Apesar do surgimento e da
estabilização de novas identidades e de práticas sociais formadas dentro destes
contatos, do panafricanismo, do black power, do reggae, do hip hop, tudo
termina sendo reduzido a uma escala de efêmeros acontecimentos da moda
internacional, igualmente estrangeiros em relação ao Brasil.
O
único refúgio dos movimentos negros na Bahia para a afirmação de sua
identidade, para além da sua herança da sociedade escravista da Bahia, é a
tradição africana, guardada com cuidado pelas comunidades religiosas do
candomblé. Ninguém ousa dizer que o candomblé, cada um cultivando suas raízes
africanas específicas ? suas nações, seja estrangeiro na Bahia. Isto explica o
fato de que, desde a experiência política e cultural de Edison Carneiro sob a
ditadura do Estado Novo em 1937, até os movimentos de esquerda negra
contemporânea, inspirados por ?aggiornamientos? à la Gramsci e Thompson, todos
esses marxistas negros procuram dentro do candomblé o relicário de sua
identidades ancestrais. Esta co-habitação necessária entre o materialismo e o camdomblé
produziu a deliciosa excentricidade cultura que Jorge Amado chamava
?materialismo? mágico.
Os
suportes materiais da Utopia
Assim,
ao longo da historia do Brasil independente, as comunidades formadas por homens
e mulheres muito pobres, colocados em regiões negras nos subúrbios da cidade,
todos submetidos ao peso do racismo, foram capazes de constituir um lugar da
memória africana. Como isto foi possível? Os que crêem respondem logo em
seguida: é o poder dos Orixás!. Os menos crentes estão sempre em condição de
afirmar que as características das religiões africanas. Fundadas sobre os
cultos dos ancestrais, têm necessidade guardar na memória coletiva toda a
ambiência cultural originaria, sem a qual os orixás não teriam sentido. Isto
explica o empenho dessas comunidades na preservação das tradições africanas, da
língua Yorubá e da recusa à nacionalização do candomblé, tal como ocorreu com a
Umbanda.
As
razões religiosas, somente, não explicam totalmente o fenômeno da preservação
da memória africana. O Candomblé, como aliás as outras tradições, foi atacado
por todos os choques da modernidade, e também obrigado a toda sorte de
adaptação para assegurar a solidariedade interna nas comunidades. Teve
igualmente que estabelecer as negociações e as trocas com ?os outros?, os
clientes, os que procuram no Candomblé socorros e cuidados materiais e
espirituais. Como fazer para impedir que as adaptações sucessivas não resultem
em um tipo de deformação da tradição originária e, por conseqüência, o
enfraquecimento desses lugares de memória, sés e bastiões de nossa identidade
negra baiana?
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Ao
longo dos anos, as pessoas do camdomblé desenvolveram estratégias para
assegurar a sobrevivência das comunidades e, ao mesmo tempo, para a
consolidação desse corpus de memória. Antes de mais nada, era necessário manter
o contato permanente com a ?fonte?, com o fundamento, com a África. Durante a
escravidão, assim como a aranha, o tráfico transatlântico de escravos teceu sua
teia de conexões entre as duas bordas do Atlântico, um verdadeiro e complexos
territórios de terras e de águas pelo qual circularam homens e mulheres, com
seus bens, seus poderes e seus saberes. Este foi o fluxo e refluxo da Bahia
para o Golfo de Benin, de que nos falou Pierre Verger, que ocorreu por meio do transporte
de pessoas. Isso tornou possível um sistema de circulação de mercadorias,
compreendendo os produtos utilizados nos rituais, como também a circulação de
religiosos? Yialorixás, babalorixás e babalôs.
Este
vai-e-vem sobre o Atlântico nutriu a tradição religiosa e, por conseqüência,
assegurou o fluxo de informações políticas e culturais entre a África e a
Bahia. As revoltas africanas do início do século XIX determinaram a chegada, na
Bahia, das informações sobre os movimentos sociais na África. Depois do fim do
tráfico de escravos, de 1850 até 1889 a navegação na direção da costa da África
quase cessou. Apesar da interdição, a antiga teia ancorou seus laços na memória
efetiva dos povos sobreviventes, os afro-descendentes baianos na borda oeste e
os Agudas espalhados ao longo da borda leste do Atlântico. Persistiu ainda a
correspondência entre familiares e conhecidos.
No
final do século XIX, a chegada da republica ao Brasil e a ocupação colonial na
África impuseram o distanciamento das duas bordas do Atlântico. Alguns
religiosos, como o Babalaô Martiniano Bonfim e a Yalorixá Aninha, ainda
conseguiram várias vezes realizar a travessia para a Costa da África, durante a
primeira metade do século XX. Apesar desses esforços heróicos, aquele foi o
tempo mais difícil para a preservação da memória africana no Brasil.
Em
1959, ano da criação do Centro de Estudos Afro-Orientais na Universidade
Federal da Bahia, assistiu-se ao restabelecimento das relações bilaterais entre
Bahia e África, por força da ação desse encontro universitário, em quadro da
diplomacia brasileira para a África. Durante uma dezena de anos, pesquisadores
e professores partiram em missão nas duas bordas do Atlântico. Foi assim que os
religiosos do Candomblé fizeram a descoberta de que seu modo de falar dos
Yorubá, mesmo arcaico em relação àquele falado contemporaneamente na Nigéria,
ainda era entendido e louvado nos cursos dados por professores da língua Yorubá
no CEAO, vindos da Universidade de Ilê Ifé. Depois de 1970, mais algumas
personalidades negras da Bahia tiveram sucesso na Bahia tiveram sucesso na
travessia do Atlântico, graças ao apoio da UNESCO e de outros organismos
internacionais.
Hoje,
constatamos que as possibilidades de contatos entre as comunidades africanas e
as afro-baianas, por sus próprios meios, são praticamente impossíveis diante
dos custos da viagem. De outra parte, as instituições públicas, tal como a
universidade, não tem êxito na constituição dos suportes materiais para
assegurar a circulação de pessoas e de idéias entre os dois lados do Atlântico,
de forma a realimentar a memória africana das comunidades religiosas da Bahia.
Diante do perigo da desafricanização, da dissolução da memória afro referente,
em uma conjuntura cultural marcada pela pressão interna para a navegação das
identidades negras e da pressão externa da geléia geral globalizante, é
imperioso redobrar os esforços para o restabelecimento desta conexão atlântica,
condição indispensável para o fortalecimento da identidade negra baiana. É
importante reconhecer também que esta conjuntura é marcada por um novo choque
de modernidade, com a realização da III Conferência Mundial contra o Racismo,
na África do Sul, em 2001, e pela posse de um novo governo de esquerda no
Brasil. Esta será, com fé nos Orixás, uma outra história.
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Artigo extraído do blog www.biragordo.blogspot.com
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