Daniel Munduruku
Uma
das lembranças mais agradáveis que tenho da minha infância é a de meu avô me
ensinando a ler. Mas não ler as palavras dos livros e, sim, os sinais da
natureza, sinais que estão presentes na floresta e que são necessários saber
para poder nela sobreviver.
Foto de Marcelo Luz
Meu avô deitava-se sobre a relva e começava a nos ensinar o alfabeto da natureza: apontava para o alto e nos dizia o que o vôo dos pássaros queria nos informar.
Outras
vezes fazia questão de nos ensinar o que o caminho das formigas nos dizia. E
ele nos ensinava com muita paciência, com a certeza de que estava sendo útil
para nossa vida adulta. Aos poucos, fui percebendo que aquilo era uma forma
natural de aprendizado e que tudo era real. Mesmo quando nos falava dos
mistérios da natureza, das coisas que minha cabeça juvenil não compreendia,
sentia que o velho homem sabia exatamente o que estava nos ensinando. Fazia isso
nos contando histórias das origens, das estrelas, do fogo, dos rios. Ele sempre
nos lembrava que, para ser conhecedor dos mistérios do mundo, era preciso ouvir
a voz carinhosa da mãe-terra, o suave murmúrio dos rios, a sabedoria antiga do
irmão-fogo e a voz fofoqueira do vento, que trazia notícias de lugares
distantes.
Foto de Narcimária do Patrocínio Luz
Foto de Marcelo Luz
Hoje, pensando naquele tempo, sinto que a sabedoria dos povos indígenas está além da compreensão dos homens e mulheres da cidade. Não apenas pelo fato de serem sociedades diferenciadas, mas por terem desenvolvido uma leitura do mundo que sempre dispensou a escrita, pois entendiam que o próprio mundo desenvolve um código que precisa ser compreendido. E apenas os alfabetizados nesta linguagem são capazes de fazer esta leitura.
Apesar
de ter crescido na cidade, freqüentado a escola formal desde pequeno e ter um
relativo domínio dos códigos urbanos, alguma coisa internamente sempre me
alertou para a necessidade de não deixar os códigos da floresta morrer dentro
de mim. Este alerta sempre aparecia nas horas em que dúvidas ou dificuldades se
faziam mais presentes. Era como uma voz que me lembrava o motivo pelo qual
tinha aceitado vir para a cidade e nela viver, mesmo tendo aberto mão de uma
vida aldeã.
Este
alfabeto, que a natureza teima em manter vivo; esta escrita invisível aos olhos
e coração do homem e da mulher urbanos, tem mantido as populações indígenas
vivas em nosso imenso país. Esta escrita fantástica tem fortalecido pessoas,
povos e movimentos, pois traz em si muito mais que uma leitura do mundo
conhecido...Traz também em si todos os mundos: o mundo dos espíritos, dos seres
da floresta, dos encantados, das visagens dos desencantados. Ela é
uma escrita que vai além da compreensão humana, pois ela é trazida dentro do
homem e da mulher indígena. E neste mundo interno, o mistério acontece com toda
sua energia e força.
Não preciso lembrar aqui que
a lógica de quem domina é totalmente diferente daquela dita anteriormente. O
humano ocidental cresceu para dominar a natureza como algo fora dele. Dessa
forma, ele ignorou a escrita da natureza na tentativa de tornar-se dono dela.
Desvalorizou as outras formas de leitura e de escrita do mundo e impôs seus
próprios olhares e métodos científicos fazendo-nos crer que sua escrita era
mais perfeita que aquela infinitamente mais antiga.
Estes
olhares que os europeus trouxeram para cá revelaram que seus interesses estavam
acima da real intenção de encontrar-se com nossos antepassados. Eles não
tiveram consideração por nossos olhares e logo mostraram suas verdadeiras
intenções de domínio, de riqueza fácil. Para isso não se furtaram de querer
aprisionar nossos avós, roubar-lhes os conhecimentos tradicionais e tentar
tirar de dentro de nós nossa forma de escrever, nossa própria escrita. Quiseram
roubar – e em muitos casos conseguiram – nossa alma colocando em seu lugar um
espírito que nunca foi nosso. E o que eles colocaram no seu lugar? Necessidades
que não eram nossas. Vontades que não tínhamos; desejos que não desejávamos;
ódios que não sentíamos; bens que não nos pertenciam; pensamentos que não
pensávamos. Foram plantando no coração de nossos antepassados um desejo de não
Ser.
DOMINAR A ESCRITA DO PARIWAT
Se
houve uma tentativa de rasgar nosso espírito modificado pelo espírito europeu,
houve também – e ainda há – uma nova tentativa de sacrificar nossa escrita
tradicional, nosso olhar próprio com a uma lógica cruel que descaracteriza e
empobrece nossa gente. Falo da escola tal como ela existe hoje nos meios
urbanos. Falo da lógica da diferença que tem habitado os discursos políticos
nos últimos quinze anos e que serviu, de certa forma, para reafirmar nossa
condição de subseres humanos na prosopopéia lingüística dos discursos
etno-pedagógicos dos pariwat.
Nestes
discursos, sempre aparecem as realizações dos governos com relação à educação
indígena como algo novo, que leva em consideração o “pensar” dos representantes
nativos. É claro que não se pode negar os avanços que ocorreram e uma maior
preocupação no sentido de tentar organizar o conteúdo que levasse a contento
uma educação realmente diferenciada e inclusiva. Mas o que significa isso?
Quais os efeitos que isso tem causado na cabeça dos nossos jovens? Como os
povos têm reagido a semelhante apelo?
A
resposta não é simples, mas ouso dizer que as pedagogias inclusivas não passam
de arremedos na solução de um “problema” indígena, pois elas salientam ainda
mais a falta de uma real compreensão do que seja um povo indígena e suas verdadeiras necessidades. Mais: elas escancaram a falta de um pensamento governamental a respeito do tratamento que estes grupos étnicos devem ter. Ou seja, revelam que o governo não tem competência para definir o que ele pensa a rspeito dos indígenas. Ou será que alguém de governo já se posicionou de forma inequívoca sobre as
intenções políticas com relação aos indígenas? Como saber quais as reais
intenções políticas oficiais sobre os nativos?
Ora,
o que vem acontecendo são justificativas pedagógicas do tipo inclusivistas (a
diversidade na universidade), ou paliativas (programas estaduais de magistérios
indígenas) ou ainda neoliberais (formação de técnicos para suprir o mercado). E
qual o propósito disso? Seriam muito diferentes dos projetos de “inclusão” que
faziam os militares em sua política de incorporação à sociedade brasileira?
Não
importa qual seja a resposta a estas perguntas e, sim, o que vemos acontecer na
prática e que não respeita o caminho da memória e da tradição indígena em seu
mais amplo sentido. Basta lembrar, para isso, que o domínio da escrita do
pariwat é justificado pela necessidade de ler a realidade brasileira que, a
priori, não faz parte do imaginário indígena. De modo que, ao meu ver, foi-se
criando uma necessidade nos jovens nativos de apreender conceitos e teorias que
não cabem no pensar holístico e circular de seus povos. Esta agressão ao
sistema mental indígena, fruto de uma história da qual não somos culpados, mas
sobre qual temos responsabilidade, acaba se perpetuando nas novas políticas
inclusivistas levados a efeito por governos nas três esferas.
Conclusão:
nossos jovens se vêm obrigados a aceitar como inevitável à necessidade de ler e
escrever códigos das quais prefeririam não aprender e não lhes é dado o direito
de recusar sob a acusação de preguiça ou descaso para com a boa vontade dos
governos e governantes.
De
qualquer forma, entendo que há uma preocupação prática nos diversos programas
de educação indígena espalhados pelo Brasil afora, sejam eles operados pelas
esferas governamentais ou não-governamentais. Muitos desses programas têm
partido do princípio que é preciso fortalecer a autoria como uma forma de
fortalecer também a identidade étnica dos povos que atendem. Isso é muito
positivo se a gente entender que a autoria, aqui defendida, signifique que
estes povos possam num futuro próximo, criar sua própria pedagogia, seu modo
único de trafegar pelo universo das letras e do letramento. Só assim posso
imaginar que valha a pena o esforço dos que se põem a trilhar este caminho. Se
estes grupos de fato acreditarem que estão criando pessoas para a autonomia
intelectual e se abrirem espaço na sociedade para a livre expressão deste
pensamento, então eles estarão, de fato, fortalecendo a autoria e apresentando
um caminho novo para as manifestações culturais, artísticas, políticas, lúdicas
e religiosas dos nossos povos indígenas. Caso contrário, estarão levando nossa
gente para o mesmo buraco em que o pensamento quadrado ocidental se meteu e,
neste caso, estarão sendo piores que o regime ditatorial que almejava
exterminar as identidades transformando-as numa única e cínica identidade
nacional brasileira.
Daniel
Munduruku é autor indígena de livros infanto-juvenis. Formado em Filosofia,
História e Psicologia. Integrou o programa de pós-graduação em Antropologia Social
na Universidade de São Paulo. É Diretor-Presidente do INBRAPI – Instituto
Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual.Esse texto foi uma colaboração do autor para o SEMENTES Caderno de Pesquisa, Vol 5,n. 7, 2004 ps.29-31,publicação do PRODESE