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PRODESE E ACRA



VIDA QUE SEGUE...Uma
das principais bases de inspiração do PRODESE foi a Associação Crianças Raízes
do Abaeté-Acra,espaço institucional onde concebemos composições de linguagens
lúdicas e estéticas criadas para manter seu cotidiano.A Acra foi uma iniciativa
institucional criada no bairro de Itapuã no município de Salvador na Bahia, e
referência nacional como “ponto de cultura” reconhecido pelo Ministério da
Cultura. Essa Associação durante oito anos,proporcionou a crianças e jovens
descendentes de africanos e africanas,espaços socioeducativos que legitimassem
o patrimônio civilizatório dos seus antepassados.
A Acra em parceria com o Prodese
fomentou várias iniciativas institucionais,a exemplo de publicações,eventos
nacionais e internacionais,participações exitosas em
editais,concursos,oficinas,festivais,etc vinculadas a presença africana em
Itapuã e sua expansão através das formas de sociabilidade criadas pelos
pescadores,lavadeiras e ganhadeiras,que mantiveram a riqueza do patrimônio
africano e seu contínuo na Bahia e Brasil.É através desses vínculos de
comunalidade africana, que a ACRA desenvolveu suas atividades abrindo
perspectivas de valores e linguagens para que as , crianças tenham orgulho de
ser e pertencer as suas comunalidades.
Gostaríamos de registrar o nosso
agradecimento profundo a Associação Crianças Raízes do Abaeté(Acra),na pessoa
do seu Diretor Presidente professor Narciso José do Patrocínio e toda a sua
equipe de educadores, pela oportunidade de vivenciarmos uma duradoura e valiosa
parceria durante o período de 2005 a 2012,culminando com premiações de destaque
nacional e a composição de várias iniciativas de linguagens, que influenciaram
sobremaneira a alegria de viver e ser, de crianças e jovens do bairro de
Itapuã em Salvador na Bahia,Brasil.


sábado, 8 de junho de 2013

ESCRITA E AUTORIA FORTALECENDO A IDENTIDADE

 Daniel Munduruku


Foto M.A. Luz

            Uma das lembranças mais agradáveis que tenho da minha infância é a de meu avô me ensinando a ler. Mas não ler as palavras dos livros e, sim, os sinais da natureza, sinais que estão presentes na floresta e que são necessários saber para poder nela sobreviver.

       
 Foto de Marcelo Luz

  Meu avô deitava-se sobre a relva e começava a nos ensinar o alfabeto da natureza: apontava para o alto e nos dizia o que o vôo dos pássaros queria nos informar.
            Outras vezes fazia questão de nos ensinar o que o caminho das formigas nos dizia. E ele nos ensinava com muita paciência, com a certeza de que estava sendo útil para nossa vida adulta. Aos poucos, fui percebendo que aquilo era uma forma natural de aprendizado e que tudo era real. Mesmo quando nos falava dos mistérios da natureza, das coisas que minha cabeça juvenil não compreendia, sentia que o velho homem sabia exatamente o que estava nos ensinando. Fazia isso nos contando histórias das origens, das estrelas, do fogo, dos rios. Ele sempre nos lembrava que, para ser conhecedor dos mistérios do mundo, era preciso ouvir a voz carinhosa da mãe-terra, o suave murmúrio dos rios, a sabedoria antiga do irmão-fogo e a voz fofoqueira do vento, que trazia notícias de lugares distantes.
       

Foto de Narcimária do Patrocínio Luz

 E assim cresci. E já grande fui perceber que o ensinamento que o velho avô nos passava, realmente nos ajudava a viver os perigos da floresta. Assim podia ler o que a natureza estava sentindo e o que nos estava dizendo. Coisas do futuro? A natureza dizia. Coisas do presente? A natureza nos dizia. Mortes? Brigas? Descaminhos? Estava lá a natureza para nos comunicar.
      


Foto de Marcelo Luz

 Hoje, pensando naquele tempo, sinto que a sabedoria dos povos indígenas está além da compreensão dos homens e mulheres da cidade. Não apenas pelo fato de serem sociedades diferenciadas, mas por terem desenvolvido uma leitura do mundo que sempre dispensou a escrita, pois entendiam que o próprio mundo desenvolve um código que precisa ser compreendido. E apenas os alfabetizados nesta linguagem são capazes de fazer esta leitura.
            Apesar de ter crescido na cidade, freqüentado a escola formal desde pequeno e ter um relativo domínio dos códigos urbanos, alguma coisa internamente sempre me alertou para a necessidade de não deixar os códigos da floresta morrer dentro de mim. Este alerta sempre aparecia nas horas em que dúvidas ou dificuldades se faziam mais presentes. Era como uma voz que me lembrava o motivo pelo qual tinha aceitado vir para a cidade e nela viver, mesmo tendo aberto mão de uma vida aldeã.
            Este alfabeto, que a natureza teima em manter vivo; esta escrita invisível aos olhos e coração do homem e da mulher urbanos, tem mantido as populações indígenas vivas em nosso imenso país. Esta escrita fantástica tem fortalecido pessoas, povos e movimentos, pois traz em si muito mais que uma leitura do mundo conhecido...Traz também em si todos os mundos: o mundo dos espíritos, dos seres da floresta, dos encantados, das visagens dos desencantados. Ela é uma escrita que vai além da compreensão humana, pois ela é trazida dentro do homem e da mulher indígena. E neste mundo interno, o mistério acontece com toda sua energia e força.

Foto de Narcimária do Patrocínio Luz

A LÓGICA DO DOMINADOR

Não preciso lembrar aqui que a lógica de quem domina é totalmente diferente daquela dita anteriormente. O humano ocidental cresceu para dominar a natureza como algo fora dele. Dessa forma, ele ignorou a escrita da natureza na tentativa de tornar-se dono dela. Desvalorizou as outras formas de leitura e de escrita do mundo e impôs seus próprios olhares e métodos científicos fazendo-nos crer que sua escrita era mais perfeita que aquela infinitamente mais antiga.
            Estes olhares que os europeus trouxeram para cá revelaram que seus interesses estavam acima da real intenção de encontrar-se com nossos antepassados. Eles não tiveram consideração por nossos olhares e logo mostraram suas verdadeiras intenções de domínio, de riqueza fácil. Para isso não se furtaram de querer aprisionar nossos avós, roubar-lhes os conhecimentos tradicionais e tentar tirar de dentro de nós nossa forma de escrever, nossa própria escrita. Quiseram roubar – e em muitos casos conseguiram – nossa alma colocando em seu lugar um espírito que nunca foi nosso. E o que eles colocaram no seu lugar? Necessidades que não eram nossas. Vontades que não tínhamos; desejos que não desejávamos; ódios que não sentíamos; bens que não nos pertenciam; pensamentos que não pensávamos. Foram plantando no coração de nossos antepassados um desejo de não Ser.

DOMINAR A ESCRITA DO PARIWAT

            Se houve uma tentativa de rasgar nosso espírito modificado pelo espírito europeu, houve também – e ainda há – uma nova tentativa de sacrificar nossa escrita tradicional, nosso olhar próprio com a uma lógica cruel que descaracteriza e empobrece nossa gente. Falo da escola tal como ela existe hoje nos meios urbanos. Falo da lógica da diferença que tem habitado os discursos políticos nos últimos quinze anos e que serviu, de certa forma, para reafirmar nossa condição de subseres humanos na prosopopéia lingüística dos discursos etno-pedagógicos dos pariwat.
            Nestes discursos, sempre aparecem as realizações dos governos com relação à educação indígena como algo novo, que leva em consideração o “pensar” dos representantes nativos. É claro que não se pode negar os avanços que ocorreram e uma maior preocupação no sentido de tentar organizar o conteúdo que levasse a contento uma educação realmente diferenciada e inclusiva. Mas o que significa isso? Quais os efeitos que isso tem causado na cabeça dos nossos jovens? Como os povos têm reagido a semelhante apelo?
            A resposta não é simples, mas ouso dizer que as pedagogias inclusivas não passam de arremedos na solução de um “problema” indígena, pois elas salientam ainda mais a falta de uma real compreensão do que seja um povo indígena e suas verdadeiras necessidades. Mais: elas escancaram a falta de um pensamento governamental a respeito do tratamento que estes grupos étnicos devem ter. Ou seja, revelam que o governo não tem competência para definir o que ele pensa a rspeito dos indígenas. Ou será que alguém de governo já se posicionou de forma inequívoca sobre as intenções políticas com relação aos indígenas? Como saber quais as reais intenções políticas oficiais sobre os nativos?
            Ora, o que vem acontecendo são justificativas pedagógicas do tipo inclusivistas (a diversidade na universidade), ou paliativas (programas estaduais de magistérios indígenas) ou ainda neoliberais (formação de técnicos para suprir o mercado). E qual o propósito disso? Seriam muito diferentes dos projetos de “inclusão” que faziam os militares em sua política de incorporação à sociedade brasileira?
            Não importa qual seja a resposta a estas perguntas e, sim, o que vemos acontecer na prática e que não respeita o caminho da memória e da tradição indígena em seu mais amplo sentido. Basta lembrar, para isso, que o domínio da escrita do pariwat é justificado pela necessidade de ler a realidade brasileira que, a priori, não faz parte do imaginário indígena. De modo que, ao meu ver, foi-se criando uma necessidade nos jovens nativos de apreender conceitos e teorias que não cabem no pensar holístico e circular de seus povos. Esta agressão ao sistema mental indígena, fruto de uma história da qual não somos culpados, mas sobre qual temos responsabilidade, acaba se perpetuando nas novas políticas inclusivistas levados a efeito por governos nas três esferas.
            Conclusão: nossos jovens se vêm obrigados a aceitar como inevitável à necessidade de ler e escrever códigos das quais prefeririam não aprender e não lhes é dado o direito de recusar sob a acusação de preguiça ou descaso para com a boa vontade dos governos e governantes.

FORTALECENDO A AUTORIA

            De qualquer forma, entendo que há uma preocupação prática nos diversos programas de educação indígena espalhados pelo Brasil afora, sejam eles operados pelas esferas governamentais ou não-governamentais. Muitos desses programas têm partido do princípio que é preciso fortalecer a autoria como uma forma de fortalecer também a identidade étnica dos povos que atendem. Isso é muito positivo se a gente entender que a autoria, aqui defendida, signifique que estes povos possam num futuro próximo, criar sua própria pedagogia, seu modo único de trafegar pelo universo das letras e do letramento. Só assim posso imaginar que valha a pena o esforço dos que se põem a trilhar este caminho. Se estes grupos de fato acreditarem que estão criando pessoas para a autonomia intelectual e se abrirem espaço na sociedade para a livre expressão deste pensamento, então eles estarão, de fato, fortalecendo a autoria e apresentando um caminho novo para as manifestações culturais, artísticas, políticas, lúdicas e religiosas dos nossos povos indígenas. Caso contrário, estarão levando nossa gente para o mesmo buraco em que o pensamento quadrado ocidental se meteu e, neste caso, estarão sendo piores que o regime ditatorial que almejava exterminar as identidades transformando-as numa única e cínica identidade nacional brasileira.


 Daniel Munduruku é autor indígena de livros infanto-juvenis. Formado em Filosofia, História e Psicologia. Integrou o programa de pós-graduação em Antropologia Social na Universidade de São Paulo. É Diretor-Presidente do INBRAPI – Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual.Esse texto foi uma colaboração do autor para o SEMENTES Caderno de Pesquisa, Vol 5,n. 7, 2004 ps.29-31,publicação do PRODESE