Entrevista concedida a Marco Aurélio Luz no âmbito das Semanas Afro Brasileiras
Cartaz das SEMANAS AFRO BRASILEIRAS
Em 1974 participei a convite de Mestre Didi da realização das SEMANAS AFRO BRASILEIRAS no MAM Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Foi um momento histórico, um ponto de retomada na luta de afirmação do negro brasileiro através da exposição da riqueza de sua cultura fruto da reposição da continuidade do fluxo civilizatório africano no Brasil.
Das inúmeras atividades destacaram-se as apresentações musicais e o encontro de Gilberto Gil e Jorge Ben foi muito especial.
Depois dessa realização fui incubido de organizar um número da Revista de Cultura Vozes sobre as Semanas AFRO BRASILEIRAS publicada em 1977. Dentre as entrevistas publicamos agora a que fiz com Gilberto Gil também nos juntando as homenagens de seus 50 anos de realizações.
Gilberto Gil
Foto disponível na INTERNET
A
presença de elementos negros nas composições de Gilberto Gil está ligada às
suas origens, à sua identificação intuitiva com a cultura de raízes africanas.
Ele fala da conscientização dessa presença e da marcante influência da maneira
negra de cantar, tocar e dançar em todo mundo.
MA- Eu lhe
perguntaria primeiro como você tomou conhecimento das Semanas Afro-brasileiras
e da exposição de arte sacra negra?
GG- Foi através de Didi e Juanita.
Eles me contaram na Bahia que tinham a intenção de fazer um encontro
relacionado com a cultura negra e a arte negra. Perguntaram se eu gostaria de
participar e eu achei legal, bacana, porque o trabalho de Didi é muito interessante
e muito importante. O de Juanita também, um trabalho muito rigoroso de um outro
ponto de vista. Ela é uma pesquisadora lúcida e aberta. Então eu achei legal.
MA-Você chegou a
ver a exposição?
GG-Eu vi a exposição muito
rapidamente no MAM e depois em São Paulo(Anhembi) na Feira da Bahia. Vi e achei
muito bonita, com uma série de símbolos esculpidos, coisas antigas negras no
Brasil, as indumentárias, muito bonito...
Exu, orixá princípio do movimento que proporciona existência.
Exposição de arte sacra negra.
Foto:M.A. Luz
Oxossi orixá princípio da caça, o provedor do alvorecer da humanidade.
Exposição de arte sacra negra.
Foto M. A. Luz
Xangô, orixá do princípio de sociabilidade.
Foi o quarto rei de Oyó, cidade capital política do império nagô/yorubá.
Foto M.A. Luz
Oxum, orixá princípio dos mistérios e poderes femininos.
Paramentos emblemáticos, abebe de forma ventral, ventre fecundado, fertilidade.
Também é considerada patrona da música.
Seu ritmo característico é o ijexá.
Foto M. A. Luz
MA- Você acha que
ela lhe trouxe uma informação nova em termos de cultura negra?
GG- É, um pouco. Eu já tinha visto
outra exposição ligada ao culto negro. Uma vez no Unhão, Museu de Arte popular,
que tinha uma parte grande dedicada a toda essa coisa de arte negra na Bahia,
ligada evidentemente ao culto e aos aparatos ritualísticos da religião. E foi
muito interessante. Na época, foi a primeira coisa que eu vi dos trajes dos
orixás, dos instrumentos. Eu já tinha visto na Bahia, de modo que em termos de
abertura panorâmica em torno do espaço cultural negro, essa exposição talvez
tenha sido mais marcante para mim. Mas a exposição do Didi é alguma coisa assim
mais cuidada, mais sofisticada, e mais profunda. Porque ele se dedica
exclusivamente a isso e é imbuído da função dele, como elemento de ligação
entre a tradição e as comunidades. Do ponto de vista legal mesmo, institucional
do terreiro Axé Opô Afonjá, onde ele tem uma função sacerdotal. Então ele leva
muito a sério isso... não tenho dúvida.
Iwin Igi, o Espírito da Árvore.
Representação de ancestralidade masculina.
Escultura de Mestre Didi
Foto disponível na INTERNET
MA- Você já estava
então familiarizado com o aspecto estético, artístico da cultura negra através
do culto religioso?
GG-Já, mais ou menos, é evidente.
Primeiro, porque na Bahia eu era muito ligado a todas essas coisas. Não
diretamente, mas por força de polaridade, de magnetismo relativo a certas áreas
como o turismo. Eu estava próximo da coisa de terreiro, que se fazia presente
através de elementos comuns no teatro, na música. Então, desde adolescente já
conhecia Valdeloir Rêgo, o gravador de Santo Amaro que agora esqueço o nome, e
uma série de pessoas que estavam ligadas à música e à cultura negra. O Reitor
Edgard Santos...
MA- Você ia no
terreiro?
GG- Não, eu não ia ao terreiro. Mas
é por isso que eu digo, eu conhecia tudo aquilo do terreiro que saía pra
cultura popular e artes plásticas. Quase num nível tão respeitoso de divulgação
quanto num nível mais vulgar de “folclorização”. Tudo isso chegava até nós em
Salvador e era essa “ambiência atmosférica” que eu tinha. A primeira vez que eu
fui a um terreiro, foi ao terreiro de Egun na ilha de Itaparica. Mais tarde fui
a São Gonçalo, ao Axé Opô Afonjá.
MA- Isso foi
quando?
GG- Isso foi agora, há dois ou três
anos.
MA-Foi antes ou
depois da exposição?
GG- Foi antes, alguns meses antes.
MA- Você acha
possível uma recriação profana da música sacra na faixa em que você exerce,
meio ligado à cultura popular e ainda ligado à cultura de massa através do
disco, do show? No ambiente em que você produz, através dos canais que utiliza,
é possível uma criação a partir da cultura popular, cuja divulgação fique
vinculada à cultura de massa?
GG- Primeiro, eu acho que essa coisa
hoje, o divisor de águas entre esses dois espaços, é muito difícil de
estabelecer. Assim, no Rio, São Paulo e Salvador, cultura de massa e cultura
popular estão cada vez mais misturadas mesmo.
MA- Nesse caso, a
música sacra dos terreiros seria a marca desse divisor de águas, isto é, a
música das casas mais tradicionais, que não estão ligadas a esses dois circuitos
a não ser indiretamente?
GG- É o que escoa dali pra fora.
MA- Você vê uma
aproximação mais direta com a música de culto, o conjunto de Djalma Correia
(Bahiafro) por exemplo, fazendo uma recriação melódica, rítmica, como uma
possibilidade de trabalho pra você?
GG- Claro que é possível você fazer
um estudo, um recolhimento de material básico de música sacra negra, música de
culto, de terreiro. Claro que você pode recriar em vários níveis: nível
sinfônico, camerístico, regionalista, cânticos de coros, reproduções primárias
e diretas com o que se apresenta o próximo ao próprio terreiro. Mas a formação
da alma brasileira, dos arquétipos negros ligados ao canto e à dança, às
manifestações lúdicas, ligadas evidentemente à religião e ao culto dos orixás
se apresentam já como uma resultante, numa manifestação do que a gente chama de
cultura popular. Então, a maioria dos gêneros de música brasileira vem
diretamente dos toques, dos cânticos. Maracatu, samba, jongo, coco, cateretê
etc. São música negra, com nomes vindos das línguas africanas faladas pelas
primeiras comunidades a se instaurarem aqui no Brasil. É tudo uma adaptação
para moldes urbanos de um toque daqueles que vem de lá da comunidade de culto,
e isso não é só no Brasil. Em Cuba, em todo o Caribe a música é isso. O
calipso, o mambo e o bolero são toques de orixá. É difícil você pensar na
necessidade de uma utilização sistemática da coisa para revela-la. Acho que ela
já é muito revelada inconsciente e conscientemente também. O samba na alma
brasileira, sendo negro, vem da religião negra também.
Samba de roda do Recôncavo Baiano.
Foto disponível na INTERNET
MA- Você veria uma
distinção entre o samba urbano e o samba de roda cantado em Salvador e no
Recôncavo? Eu percebo o samba de roda como uma recreação da qual as pessoas
participam diretamente e acabam todos se integrando à roda. Esse samba comunal,
originário, seria também o samba de morro carioca, o partido alto.
GG- O coco do norte também é assim,
a mesma coisa. Roda, palmas, uma repartição da responsabilidade funcional por
todos os elementos. Cada um funcionando ordenadamente não é a mesma coisa...
MA- Esse samba
comunal é produzido ``naturalmente´´. Assim, quando o sambista do morro do Rio foi
sondado para vender um samba, ele não entendeu como poderia vender algo que
fazia parte da roda e era cantado durante o carnaval, na praça XI. Os
compositores e a comunidade podiam levar seus sambas pra exibir aos grupos que
se aglutinavam ali. Na passagem do samba e outros gêneros pra cultura de massa,
observamos uma adaptação para a classe média. O samba passa a participar do
rádio onde já entra com outros instrumentos, como o pandeiro, viola,
cavaquinho, violão...
GG- Banjo, clarinete... Houve uma
adaptação paralela à que os negros tinham feito na América. O inicio da música
de massa no Brasil, através de instrumentos brancos, com Pixinguinha, João da
Bahiana, Donga e todo o pessoal do início do século é influenciado pela formação do Jazz-band. Os
conjuntos brasileiros se formam na base dos instrumentos de madeira, metal. É
trambone, trompete, banjo, como nos EUA...
MA- Os negros
americanos, não podendo tocar os atabaques, transformam os instrumentos brancos
com uma característica rítmica própria. No Brasil, seria essa manifestação
também resultante de uma repressão?
GG- Eu não sei. Não conheço bem a
história da repressão aos folguedos negros, ao músical, à “opera negra” no
início do século no Brasil. Conheço passagens a respeito do maxixe, por
exemplo, que foi denunciado como obsceno por Rui Barbosa, e seus dançarinos
acusados de atentarem contra o pudor público. Tentaram proscrever o maxixe que
era um ritmo de origem negra. Sei também da repressão aos capoeiristas, da reação
do mundo branco aos jogos, danças e músicas que eu chamei de “ópera negra” do
início do século. Mas não me parece que a coisa possa ser vista como nos EUA.
Os negros daqui tinham mais liberdade de tocar e cantar e de uma certa forma
isso era até apreciado pelos brancos. O negro americano não podendo cantar o
seu canto nas fazendas de algodão procurou cantar de uma forma branca.
MA- Você acha que
aqui, ao invés de ser pressionado pelo sistema para vender seu samba, o
compositor por si mesmo resolveu fazer samba para o rádio?
GG- Mas isso é claro. A casa Edison
começou nos anos 20 e foi pegando o pessoal. Donga, Pixinguinha e João da
Bahiana estavam gravando desde o tempo da casa de tia Ciata. Enquanto os jovens
ainda rodavam aquela casa, eles já estavam gravando. Aqui foi bem diferente,
quer dizer, eu tenho a impressão que a coisa aqui já começou ao nível de
aculturamento das coisas negras. A passagem das coisas negras para o
instrumental branco, o modus operandi da música branca, já se deu com o advento
da industrialização, da divulgação da música de massa.
Pixinguinha e Louis Amstrong .
Foto disponível na INTERNET
MA- Você acha que
apesar dessa adaptação foi mantida uma característica marcante ligada àquelas
raízes?
GG- Acho, sem dúvida. Mais ainda que
nos EUA, de certa forma por causa da liberdade religiosa que foi mantendo a
tradição. Por isso, até hoje, qualquer jovem mais informado pode identificar
claramente as características básicas, primitivas de nossa música. Ainda que
não possa denominar porque desconhece os nomes de cada ritmo. Se alguém ouve o
afoxé, o ijexá ou as batidas-congo ligadas ao maracatu identifica como sendo
uma coisa de raiz negra, ou melhor, uma coisa negra de raiz. Nos EUA não se dá
isso, pelo menos de modo geral.
MA- Eu acho que no
Brasil, a adaptação negra dada a esses instrumentos brancos seria algo mais
desejado, uma alternativa mais livre, mesmo melodicamente. Porque o jazz, como
única saída para o negro americano, me parece, até melodicamente, algo rebelde
às regras musicais brancas de então.
GG- Mas de certa forma rebelde a
partir delas, tendo nelas a única escolha. A princípio, os negros pegavam
naqueles instrumentos para tocar as marchas militares que as bandas brancas
tocavam em desfiles pela cidade. Então, quando os negros tinham acesso a esses
instrumentos, eles tentavam um mimetismo do que os brancos faziam, uma coisa
assim de moleque de rua que acompanha a banda tentando tocar um trombone
imaginário. Quando ele pegava o trombone tentava fazer o que o branco fazia,
mas evidentemente, levava o seu elemento real, concreto, quer dizer, não podia
usar uma forma idêntica a do branco porque ele era negro e tinha outra cultura
musical. O jazz é bateria, e esse ritmo todo o que era? Tentando imitar a
marcha militar, o negro colocava toda uma onomatopeia , uma polivalência
rítmica que vinha de seu mundo e não existia no mundo branco.
St.Louis Cotton Club Band.
Foto disponível na INTERNET
MA- O conjunto
regional, viola, cavaquinho, pandeiro, já caracterizava marcadamente a música
popular adaptada de bases negras, não é?
GG- É, o violão...
MA- Na época em que
a música popular, já misturada com a cultura de massa, atingia o público das
universidades, vocês (Gil, Caetano) introduziram instrumentos elétricos nessa
música, o que gerou uma polêmica.
GG- Uma discussão muito grande na
época. Mas uma bobagem, porque o rock tinha sido um movimento musical
eminentemente negro, feito com instrumentos elétricos pelos negros dos EUA.
Little Richard, Chuck Berry, os blueman de Chicago, Albert King e outros
provocaram essa transição do Blues até chegar ao rock. Foi uma coisa feita
exatamente num sentido antropofágico. O negro chegava nos lugares e tomava os
instrumentos elétricos do mesmo modo como tinha tomado de assalto os trombones
e clarinetes do fim do século passado em New Orleans. Esses instrumentos
elétricos, possibilitados pelo desenvolvimento tecnológico nas grandes cidades,
nos guetos de Chicago e em toda New York, foram formando o que veio a dar no
rock and roll, no soul music. Houve também influencia das igrejas protestantes
negras, onde já se fazia uma outra mistura composta com a música branca
gregoriana e sacra. Então, quando a gente usou a guitarra elétrica aqui no
Brasil, o pessoal deu uma grita. Na verdade, guitarra elétrica, no sentido da
abordagem que a gente estava fazendo, era essencialmente negra. Já tinha sido
feita e não era nada elitista, pelo contrário. O instrumento elétrico foi dos
que mais possibilitou a divulgação da música negra de base.
MA- É que o corpo
começou a se mexer...
GG- Totalmente, deixando de ser uma
coisa negra para ser nacional e universal. Sob todos os aspectos era absurda a
reclamação do uso da guitarra elétrica como provocador de alienação do material
brasileiro. Nesse sentido, o material brasileiro é bem parecido com o
americano. O que tinha sido bom lá, deveria ser necessariamente bom aqui.
Assim, para Pixinguinha e outros, foi bom a utilização do desenvolvimento de
uma adaptação de instrumentos que já tinha ocorrido na América. Não havia razão
para não se fazer isso de novo. Mas como havia um desconhecimento e mesmo uma
alienação histórica, ninguém entendeu. Os críticos rejeitavam em função de
valores aprendidos na periferia, na proximidade histórica deles. Se você fosse
dizer que o jazz band brasileiro, que até a década de 40 ainda era escrito
j-a-z-z nas baterias das cidades do interior do Brasil, era inspirado no modelo
americano, eles não se queixariam de uma abordagem disso. Mas eles pensavam que
o conjunto regional tinha nascido em solo brasileiro...
MA- Em relação a
sua experiência musical nas semanas Afro-brasileiras, o que você diria?
GG- Eu gostei. Não se pode dizer que
essa experiência tenha sido “suigeneris” ou particularizante. Ela não estava
dissociada dos eventos geralmente presentes no contexto de música popular, como
arte popular. Também não resultou de uma visão reservada a um aspecto cientifíco
da cultura negra, apesar de estarem lá o Jorge Bem, o Macalé, o conjunto do
Djalma(Bahiafro), enfim, artistas que trabalham material musical negro. Eu não
acredito que houvesse uma consciência da diferenciação buscada através das
semanas, como de cultura e arte negra. Muita gente foi lá para assistir a mais
uma apresentação de Gilberto Gil, Macalé, Jorge Bem e outros. Mas mesmo assim,
a idéia de coisa negra existia, evidentemente. Houve momentos em que se buscou
uma integração mais íntima do nosso trabalho, A música que a gente produz como
a do Bahiafro, mais ligada a de culto. Lembro que, naquela noite, tocamos
reproduções de toques de Oxalá, de Ogum e de Xangô. O Bahiafro estava tocando e
cantando e nós nos preocupamos em nos juntarmos a eles. Houve um caráter de
improviso do canto negro. Através de mim, do Jorge, do Macalé e outros músicos
que estavam ali, muitos de formação eminentemente branca, do rock inglês ao
neoclassicismo e dessa fase atual. Foi um trabalho de integração. Foi assim que
eu senti.
Vadinho, alabe integrante do Bahiafro
Gil e Djalma Corrêa do Bahiafro
MA- Você acha que
houve integração ou ficaram marcadas as diferenças?
GG- Não, eu acho que houve
integração mesmo. Porque ninguém pode negar que a música do mundo de hoje é a
música negra. Hoje, ao contrário do que houve no inicio do século nos EUA, os
brancos aprovam a música negra. Os brancos do mundo inteiro, da Suécia, da
Alemanha, tocam o que Jimmy Hendrix tocou. Os brancos e todo o seu aparato
eletrônico, ao nível de música popular, exploram as polirritmias africanas que
vieram com o jazz e hoje já são procuradas na própria fonte. Em muitos
conjuntos de jovens ingleses há um músico da Nigéria ou mesmo músicos das West
Indians, da Jamaica ou do Brasil. Todo conjunto americano de música progressiva
atual tem um percussionista brasileiro...
MA- Você acha que
no Brasil houve uma mudança na forma de cantar, isto é, a influência operística
italiana cedeu terreno a uma forma mais negra de canto, mais anasalada? Essa
mudança teria sido provocada por João Gilberto?
GG- Ele não buscava a excelência da
voz, como se faz no canto erudito branco, mas sim a excelência da alma, numa
emissão mais natural, mais malemolente, mais negra mesmo.
MA-Eu acho Clementina também representativa de um padrão negro de cantar
Clementina é canto de terreiro, de comunidade negra. Uma forma anasalada, gutural, mais onomatopaica e convulsiva no sentido de que veicula necessariamente uma energia de corpo inteiro. Não é uma forma de cantar buscada no refinamento, no falsete do bel canto, na ascese branca. Canta o corpo todo passando pela garganta, sacode a voz, sacode as palavras, tudo. É a escola negra.
MA- Você é dessa escola, não é? De certa forma é um caminho que João Gilberto já tinha reivindicado
GG- É, eu sou mais daí, e meu
trabalho todo é possibilitado por João Gilberto. Paradoxalmente, foi ele quem
deu consciência disso tudo. Ele é um marco indescritível dentro da música
popular brasileira. Ainda não temos um distanciamento histórico necessário para
entender a magnitude do trabalho de João Gilberto. A abertura dada por ele é
que possibilita uma visão das coisas que nós estamos falando. Porque ele
aproxima o canto negro de suas raízes e ao mesmo tempo atenua a música do
branco no canto negro. É um exercício de unidade da música brasileira, onde ele
“amacia” e unifica todas as tendências. Do preciosismo musical, no sentido da
racionalidade da escala, da música europeia, ao caráter negro da simplicidade
do canto. Ele canta parecido com Jackson do Pandeiro, Dorival Caymmi e todos
esses mulatos que herdaram diretamente as influências primitivas da arte
musical negra no Brasil. O que ele realizou é muito grande e abre possibilidade
para todas essas reciclagens, em termos de análise e síntese, como a “jovem guarda”,”tropicalismo”
e Milton Nascimento hoje em dia.
MA- Antes de
conhecer o trabalho de João Gilberto você já cantava com essa tendência?
GG- Já, porque até então, minha
fonte era o nordeste, com Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Jorge Veiga e
outros. Eu já era muito identificado com a coisa negra, pela alma mesmo, pela
intuição, sabe?
MA- E João Gilberto
possibilita uma continuidade deste espaço.
GG- É, João é quem dá mesmo o espaço
pra gente.
MA- Você ditou
Caymmi como próximo das influências primitivas da música e canto negros. Isso,
mesmo na época das “músicas da noite”, das composições com Guinle?
GG- É difícil responder, porque o
encanto que uma pessoa como Caymmi tem por esse tipo de música já vem de sua
própria alma. Porque essa música de boate também é uma reprodução dos blues,
Billy Holiday, enfim, todo esse slow blues que acabou dando a “música de
noite”. O samba-canção é uma derivante do blues, e do século passado para cá o
circuito fechou e pronto: a música do mundo passou a ser negra. E vem muito da
América, porque a música se popularizou no mundo através dos meios
fonomecânicos possibilitados pela indústria americana, que é de formação negra,
daí...No Brasil essa influência foi muito grande porque as fontes americanas
eram basicamente as nossas. É evidente que existe o lado econômico e social
dessa influência mas no que a gente ouviu de mambo,bolero e calipso tem muita alma.
Caymmi Oba Onikoyi, integrava o corpo dos Obá de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá.
Na foto está presente com Stella sua esposa na confirmação do Osi Oju Obá em 1977.
Acervo M.A. Luz
MA- O que já se
chamou de “Américas Negras”, não é?
GG- É verdade, e como eu disse, a
questão econômica não está só. Existe uma identificação mesmo.
MA- A primeira vez
que você tocou com Jorge Ben foi nas Semanas Afro-brasileiras?
GG-Em público, foi a primeira vez.
Foi um momento em que houve um reconhecimento de “parentesco”, uma constatação
da matriz, digamos, de uma matriz única. Foi ali que se criou essa consciência.
Nem tanto para mim ou para ele, que já sabíamos, mas em termos de um consenso
de que Gil e Jorge têm coisas em comum. Daí, surgiu o disco em que atuamos
juntos. O nome dos dois orixás, Xangô e Ogum, colocados no disco, têm muito a
ver com aquele encontro das semanas Afro-brasileiras no MAM, que ficou como um
signo de identificação do nosso trabalho. Não se pode dizer que foi exatamente
ali que se revelou isso ou aquilo mas que foi um encontro revelador eu não
tenho dúvida.
As Semanas Afro Brasileiras rendeu muitos frutos,um deles foi a aproximação de Gil e Jorge Ben Jor.
Foto disponível na INTERNET
MA- Ali houve uma
polarização do aspecto negro. E dentro disso, como você vê a música do Jorge?
GG- Eu vejo a música de Jorge como a
que mantém elementos mais nítidos da complexidade negra na formação da música
brasileira. Modos diferentes musicais vieram para o Brasil através de várias
nações africanas. Jorge assume o que veio do norte da África, o muçulmano, como
elemento básico do seu trabalho. Ele não gosta de perder a perspectiva
primitivista, não deixa de se ligar no Gege, Ketu, Yoruba. Mas ele tem um outro
lado que inclui o moderno.
MA- Muita coisa assim de espírito de Rio de Janeiro, certo?
GG- Um Rio complexo, uma negritude
carioca. Eu diria que a escola de samba, por exemplo, é uma coisa mais
simplificada do que a música de Jorge Bem. Sua música é muito mais complexa em
termos de integralidade negra, mais do que o chamado samba-enredo, que se estabeleceu
como um clichê da escola de samba. Os elementos da música do Jorge são muito
diversos e isso é bem descrito em Zumbi, quando ele fala das diversas nações,
convocando Angola, Congo como num discurso meio messiânico. Ele tem consciência
de uma integralidade e sua complexidade decorre daí e vice-versa.
MA- Eu acho Charles 45 um motivo bem carioca...
GG- É, ao mesmo tempo ele é um
garoto carioca da atualidade de escola de samba. Mas o que o distingue dos
outros sambistas é a consciência de uma complexidade negra, a manutenção na
música de nítidas diferenciações de elementos. Assim ele compõe baseado em
vários ritmos especificamente negros, e compõe samba, mas diferente da maioria
dos compositores de escola de samba, que produz uma música cultivada na escola,
um híbrido já todo pronto sem nenhuma das diferenciações elementares dos ritmos
básicos. O Jorge consegue essa elementaridade e denomina as diversas escolas
negras.
MA- Você poderia
dizer quais das suas músicas estariam mais próximas ou não desses valores,
desses elementos básicos da cultura musical negra?
GG- Algumas composições minhas
nascem da necessidade de mostrar um conhecimento sobre os ritmos negros. Filhos
de Gandi está nitidamente dentro dessa linha. É uma música feita sobre afoxé
com o tema afoxé ligado ao ijêxa. Abra o olho, não quanto à letra mas quanto à
música, também é construída sobre esses ritmos. Em domingo no parque já entra
ritmo de capoeira mas há ijêxa também. Enfim, em outras músicas minhas pode ser
identificado um ou outro elemento básico de música negra mas isso não é tão
nítido quanto no trabalho de Jorge Ben. Não há essa intencionalidade
inconsciente que torna o trabalho dele tão completo. E eu digo inconsciente,
porque pelo menos para mim, não sei como é com o Jorge, não é muito consciente.
Agora sim, eu talvez vá fazer um disco na África. Eu quero gravar com o pessoal
da Nigéria e buscar uma ligação mais direta com o que se canta nos terreiros,
nas comunidades periféricas aos centros de religião negra no Brasil, na Bahia.
Alegria na identificação e na amizade
MA- Essa
aproximação com Jorge Bem lhe trouxe uma indicação de trabalho.
GG- É, Jorge Ben é para mim uma
espécie de mestre. Eu tenho muitos mestres mas ele é um mestre em exercício,
mais um par talvez, na medida que existe muito dele nessa minha vontade de dar
nitidez aos matizes das matrizes negras do meu trabalho. Isso aparece nos meus
shows quando eu improviso. Um lado assim preto velho que está no meu mundo...
minha avó, tias velhas, meu pai. Um vocabulário onde entram palavras nagôs,
ditas com aquela guturalidade negra na voz. Fica assim como um reencontro com
minha formação mais primária.
MA- Sua família era
de Salvador?
GG- É. Minha família veio da África
mas eu não sei de qual nação. Meu bisavô foi escravo, mas se emancipou antes da
abolição. Ele adotou então um nome português -Moreira- e criou família. Meu pai
era órfão e foi criado por uma tia com muita dificuldade mas conseguiu ser um
profissional liberal, médico. Aí então se casou, formou família. Minha mãe,
assim como meu pai, sabe muito pouco sobre suas origens. Não é como uma família
abastada com árvore genealógica. Eles teriam que buscar o que existe de
documentação sobre a formação de nossa família. De meu avô para traz fica muito
difícil localizar parentesco, origem.
MA- Está bem, É
isso aí...
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Notas
1. A exposição a que Gilberto Gil se
refere constituía o “setor Afro-Bahiano” e foi organizada pelo próprio Didi
-Deoscoredes M. dos Santos- em 1965
2.O gravador de Santo Amaro é
Emanuel Araújo.
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Acima vídeos que contextualizam a parceria entre Gilberto Gil e Jorge Ben Jor e a música que Gil fez em homenagem ao ancestral Baba Alapalá.