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PRODESE E ACRA



VIDA QUE SEGUE...Uma
das principais bases de inspiração do PRODESE foi a Associação Crianças Raízes
do Abaeté-Acra,espaço institucional onde concebemos composições de linguagens
lúdicas e estéticas criadas para manter seu cotidiano.A Acra foi uma iniciativa
institucional criada no bairro de Itapuã no município de Salvador na Bahia, e
referência nacional como “ponto de cultura” reconhecido pelo Ministério da
Cultura. Essa Associação durante oito anos,proporcionou a crianças e jovens
descendentes de africanos e africanas,espaços socioeducativos que legitimassem
o patrimônio civilizatório dos seus antepassados.
A Acra em parceria com o Prodese
fomentou várias iniciativas institucionais,a exemplo de publicações,eventos
nacionais e internacionais,participações exitosas em
editais,concursos,oficinas,festivais,etc vinculadas a presença africana em
Itapuã e sua expansão através das formas de sociabilidade criadas pelos
pescadores,lavadeiras e ganhadeiras,que mantiveram a riqueza do patrimônio
africano e seu contínuo na Bahia e Brasil.É através desses vínculos de
comunalidade africana, que a ACRA desenvolveu suas atividades abrindo
perspectivas de valores e linguagens para que as , crianças tenham orgulho de
ser e pertencer as suas comunalidades.
Gostaríamos de registrar o nosso
agradecimento profundo a Associação Crianças Raízes do Abaeté(Acra),na pessoa
do seu Diretor Presidente professor Narciso José do Patrocínio e toda a sua
equipe de educadores, pela oportunidade de vivenciarmos uma duradoura e valiosa
parceria durante o período de 2005 a 2012,culminando com premiações de destaque
nacional e a composição de várias iniciativas de linguagens, que influenciaram
sobremaneira a alegria de viver e ser, de crianças e jovens do bairro de
Itapuã em Salvador na Bahia,Brasil.


quinta-feira, 31 de agosto de 2017

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

HOMENAGENS A MESTRE DIDI NO FESTIVAL DE BADAGRY


Por Marco Aurélio Luz


No mês de agosto a cidade de Badagry na Nigéria, realiza um grandioso Festival que celebra a sua importância para a tradição cultural e preservação da memória histórica referente à diáspora.

Badagry foi um porto de embarque de africanos escravizados para as Américas, daí a sua importância histórica.


Foto disponível na internet

A memória do momento de transformação da população de prisioneiros em escravizados, se mantém preservando aspectos físicos do sítio e os instrumentos escravistas, e a atmosfera que envolveu essa viagem sem retorno.
O Festival de Badagry reúne inúmeros eventos, a exemplo da apresentação de vários grupos culturais; competição de barcos enfeitados;aparição dos Zangbeto espíritos ancestrais cobertos de palha da costa; competição de barcos enfeitados e torneio de futebol que disputam a taça do Oba o rei.


Grupo Cultural
Foto disponível na internet


Grupo Cultural
Foto disponível na internet

Aparição dos Zangbeto espíritos ancestrais cobertos de palha da costa.
Foto disponível na internet


 Competição de barcos enfeitados. Foto disponível na internet

 O mais importante porém, são as homenagens aos líderes da diáspora que se destacaram no processo de libertação, de afirmação da identidade e reposição da civilização africana nas Américas. Em 2013 foi Marcus Garvey, em 2015 Toussaint L´Ouverture, em 2016 Olaudah Equiano e agora em 2017, Deoscoredes Maximiliano dos Santos, Mestre Didi.
Uma delegação de lideranças religiosas do terreiro Ilê Asipá fundado por Mestre Didi Asipá Alapini, está presente.


 O Alagba nilé Asipá presente no Festival

A presença da linhagem Asipá no Brasil é um fato histórico fundamental para se entender a continuidade da tradição religiosa e cultural de origem nagô/yorubá. Desde a atuação marcante na fundação das primeiras casas de culto aos orixás, nas primeiras viagens e intercâmbios com a África, e na presença nos tradicionais cultos aos Egungun. Mestre Didi foi consagrado Alapini Ipekun Ojé, sacerdote supremo do culto aos Egungun. O Ilê Asipá concentra importante constelação de Egun Agba.
Em 1965 Mestre Didi acolheu em Salvador o poeta do movimento da Negritude Leon Damas, que impressionado com o seu valor para a continuidade da civilização africana na diáspora, reuniu esforços e conseguiu uma bolsa da UNESCO para ele na Nigéria.
Mestre Didi viajou em 1967 com sua esposa Juana E. Dos Santos. Com a participação de Verger, aconteceu o encontro histórico com a família Asipá em Ketú. Ele narrou o episódio desse elo transcendente em “Um Negro Baiano em Ketu”:
O Rei, todos os seus ministros e as demais pessoas que lá se encontravam na ocasião ficaram surpresos e me escutavam emocionados, pois eles nunca tinham imaginado que, do outro lado do Oceano, pudesse ainda existir pessoas como eu, capaz de cantar os cânticos tradicionais que eram cantados pelos nossos antepassados.”
Mestre Didi é sem dúvida um ponto de convergência de todos que participaram e participam na reconstituição da tradição africana com suas linguagens, valores e instituições nas Américas.













UM NEGRO BAIANO EM KETÚ

 Por Deoscoredes M. dos Santos, Mestre Didi Axipá


Mestre Didi no Opa Oraniyan,

 monumento em Ile Ifé em homenagem ao orixá que expandiu o povo nagô /yoruba

Ouvia sempre minha mãe e várias pessoas mais velhas descendentes de africanos dizerem que nós descenderíamos de uma das famílias reais do reino de Ketú. Porém, eu nunca dei importância e achava até ridículo comentar o assunto com outras pessoas. Eu pensava que tudo aquilo que ouvia com referência a minha família real e levando em consideração as dificuldades que os negros sempre tiveram para manter e preservar a tradição afro do Brasil e, principalmente da Bahia, fosse um pretexto para  afirmar-se, fazendo o culto e a nossa religião afro-baiana mais respeitada no meio social. Até quando me foi concedida pela UNESCO uma bolsa, por intermédio do CEAO da UFBA, para fazer uma pesquisa comparada sobre arte sacra da África Ocidental no Brasil, na Nigéria, em Dahomey, atual república de Benin, durante um período de três meses.
Assim, foi no dia 6 de janeiro de 1967 que embarcamos, eu e minha mulher Juana Elbein dos Santos, Research Fellow do Institute for Study of Man the New York, que também obteve uma bolsa na ocasião para colaborar na pesquisa. Chegamos a Lagos no dia 7. Três dias depois viajamos para Ibadan onde, depois de nos termos apresentado ao Prof. Hebert G. Armstrong, Diretor do Institute African Studies da Universidade de Ibadan, armamos o nosso quartel general. No dia seguinte, ou seja, no dia 11, nos encontramos com Pierre Verger. Com sua ajuda e do seu pequeno carro Citroen de 2 cavalos, começamos a fazer viagens curtas para manter os primeiros contatos. No dia 21, atravessamos a fronteira e viajamos para Daomey, ficando hospedados em Porto Novo no hotel dos Deputés. Partimos no dia 23, um dia depois do falecimento de minha mãe, acontecimento do qual só vim a tomar conhecimento ao regressar para Ibadan, 11 dias depois.
Partimos para o reino do Ketú, acompanhado de um intérprete funcionário da I.R.A.D. a fim de continuar nossas pesquisas e fazer uma visita ao Rei em meu nome e em nome de todos os irmãos descendentes de Ketú residentes na Bahia. Longe estava eu de imaginar que poderia encontrar alguma pessoa descendente daquela família real de que tanto falavam. Por mais incrível que pareça, até esse momento nenhum comentário tinha sido feito a respeito dessa possibilidade. Na passagem por Cotonu, fomos a Nonoprik e compramos um bom vinho francês para dar de presente ao Rei, procurando dessa maneira seguir os costumes tradicionais e, em seguida, retomamos o caminho. O Citroenzinho guiado pelo seu dono, Pierre Verger, avançava pela estrada a fora parecendo uma besta com os freios tomados nos dentes, passando por vários povoados, espantando porquinhos, cabritos e galinhas, descendo e subindo ladeiras empinadas, cheias de curvas,  de campos e lindas passagens.
Depois de muito tempo, começamos a percorrer um caminho de terras vermelhas, a poeira tingindo de vermelho a paisagem, até chegar à entrada do reinado de Ketú. Na cidade, depois de 4 horas e meia de viagem, paramos no armazém de um simpático senhor por nome Exu, nome de um dos Orixás que, erradamente, é sincretizado como o Diabo no Brasil, para fazer uma breve refeição com sardinhas, pão e mocacola, um delicioso refrigerante feito à base de café. Meia hora depois, chegamos ao palácio do Rei. Como eu me sentia bem! Com todos e tudo o que eu via e ouvia, apesar de andar brigando com o meu Yorubá, que devido a eu não estar habituado a falar cotidianamente, ainda não podia seguir diretamente as conversações muito prolongadas. Além disso, os dialetos Yorubá variam muito de um lugar para outro.
Pierre Verger, a quem todos conhecem em toda região por Babalawô Fatunbí e que já conhecia o Rei, fez a nossa apresentação. Entreguei o presente. Logo o rei mandou abrir a garrafa e servir a todos o presente, ficando ele, como é de costume, para se servir por último. Conversa vai, conversa vem, eu disse ao Rei que era descendente da terra de Ketú. Ele, muito espantado com o meu Nagô Yorubá, mandou que eu desse prova do que tinha dito. E assim foi que cantei algumas cantigas enaltecendo a terra, o Rei e a riqueza do seu povo.
O Rei, todos os seus ministros e as demais pessoas que lá se encontravam na ocasião ficaram surpresos e me escutavam emocionados, pois eles nunca tinham imaginado que, do outro lado do Oceano, pudesse ainda existir pessoas como eu, capaz de cantar os cânticos tradicionais que eram cantados pelos nossos antepassados.
Quando terminei de cantar, o Rei, bastante emocionado, passou a mostrar a coroa que estava usando e traduzindo uma das cantigas nos disse que não era aquela coroa a que a cantiga se referia e sim a outra com a qual são consagrados os Reis.
Existia a maior alegria no recinto e todos me admiravam com muito carinho e uma certa ternura se lhes estampava nas faces.
Enquanto isso, a minha mulher se lembrou do caso da família real e me perguntou por que eu não recitava o Orilé de minha família, o que eu chamo de brasão oral. Não dei atenção a pergunta. Ela e Verger, porém, insistiram tanto, que fui forçado a recitar o Orikí, mesmo porque o Rei observou quando Juana falou em francês para Verger e ficou muito interessado.
Tive que dizer as seguintes palavras em Nagô: Asipá Borogum Elesé Kan Gon Goo. Quando terminei, só vimos o Rei de repente exclamar, Ah! Asipá! E levantando-se da cadeira onde estava sentado apontou para um dos lados do palácio, dizendo: sua família mora ali.
Todos nós ficamos parados, era uma coisa inacreditável. Em seguida, o Rei chamou uma pessoa das mais velhas, a Iya Nana, e nos mandou levar à casa dos Asipá.
Quando chegamos ao lugar, descobrimos que era todo um bairro, em vez de uma casa. Fomos levados à casa principal. Por ser um dia de semana, a maior parte dos homens estava trabalhando na roça da família denominada Kosikú (não há morte). Mesmo assim, fui apresentado a todos os que estavam presentes e, quando recitei o Orikí, foi uma alegria geral, todos bateram palmas, vieram apertar minhas mãos, queriam estabelecer conversações comigo e eu estava tão emocionado que não entendia e não sabia de nada.

Mestre Didi com a família Asipa em Ketú.
Fotografia propriedade do acervo de D.M. dos Santos

 Só via alegria, alegria no semblante de todos que se acercavam para me cumprimentar.  Logo nos levaram ao Ojubó Ode, lugar de adoração a Oxóssi, nos mostrando onde estava o Axé da casa e foram chamar uma das pessoas mais velhas pertencentes à família, a fim de nos fornecer as informações precisas.


Mestre Didi no Ojubo Osoosi da família Asipa em Ketú.
Foto acervo M.A.Luz e na internet.

Assim foi que ficamos sabendo de que tudo que minha mãe Senhora e as pessoas mais velhas falavam na Bahia, era verdade. Independente de minha linguagem real, a nossa família foi uma das sete principais famílias que fundaram o Reino de Ketú.





Deoscoredes Maximiliano dos Santos,Mestre Didi é herdeiro do Axé de Xangô, da tradicional família Asipá da Bahia, Assogbá Sumo Sacerdote do culto do Orixá Obaluaiyê, Balé Xangô, Babá Mobá Oni Xangô, Alapini, sumo sacerdote do culto de adoração aos Ancestrais, Egun.
A importância de Mestre Didi, como é conhecido, se expressa na abertura de canais para as inter-relações das comunidades negras com a sociedade global. Escritor e escultor, um dos expoentes da cultura afro-brasileira, é o inspirador e impulsionador da Sociedade de Estudos da Cultura Negra  no Brasil – SECNEB, do setor afro-baiano do Museu de Arte Moderna da Bahia, do projeto da educação pluricultural – Mini Comunidade Oba-Biyi do Instituto Nacional da Tradição e Cultura Afro-Brasileira – INTECAB e de outras instituições de atividades voltadas para a reflexão e expansão dos valores afro-brasileiros.
Os filmes Egungun, Orixá Ninu Ilé e Iya-mi Agbá foram realizados com a sua assessoria direta. Reformulador, nas artes contemporâneas, das técnicas tradicionais africanas, realiza exposições regulares no Brasil, África Ocidental, Estados Unidos, Europa e, em uma sala especial no Centro Georges Pompidou, em Paris, 1989, durante a Exposição Internacional “Magiciens de la Terre”. A última, na Feira do Livro em Frankfurt em 1994 e na Pinacoteca de São Paulo.
Publicou os livros Contos Negros da Bahia, Contos Nagô, Contos Crioulos da Bahia, a monografia História de um Terreiro Nagô, e diversos ensaios em parceria com Juana Elbein dos Santos; com Lenio Braga, o livro-objeto Porque Oxalá Usa Ekodidé, Autor das peças teatrais Ode o Caçador do Mato, O Presente de Xangô, Boa Menina, A Fuga de Tio Ajaí; com Adão Pinheiro, publicou  História da Criação do Mundo, em parceria com Juana Elbein dos Santos, Orlando Sena, o auto mítico Ajaká. Sendo um Sacerdote, Mestre Didi posiciona suas atividades e sua liderança no sentido da continuidade histórica, reforçando e enriquecendo a identidade cultural de seu povo.

Nota:Artigo publicado no SEMENTES Caderno de Pesquisa, Ética da Coexistência, vol. 5, nº 7 jan/dez 2004






quarta-feira, 16 de agosto de 2017

AYAN POÉTICA INTERTEXTUAL


Por Inaicyra Falcão dos Santos


Ayán é a entidade sagrada do tambor Bata consagrado a Xangô.
Foto: disponível na internet

INTRODUÇÃO

O argumento que pretendo desenvolver neste estudo, é que, para se pensar na tradição africano-brasileira, como forma verdadeiramente expressiva na criação artística, torna-se necessário levar em consideração, os valores da cultura em questão. Considerando-a como agente de integração que pode estabelecer uma coerência, uma organicidade entre a tradição de um povo, e o conhecimento da arte teorizado, possibilitando o enriquecimento da nossa cultura.



Tambores Bata do terreiro de Pai Adão de Recife ressurgem no Congresso da Tradição dos Orixá na Bahia.
Foto: Acervo M. A. Luz

Trata-se da busca na criação artística, e consequentemente a origem de uma proposta pluricultural na dança-arte-educação brasileira, através da história do indivíduo e da mitologia. Examinando também nesta experiência, a possibilidade de uma base de expressão, dentro de uma perspectiva histórica, religiosa, artística e intuitiva.


Foi fundamental compreender o processo, esta busca de espaço, a fim de torná-lo mais significativo aos artistas e educadores brasileiros, os quais se comunicam com a sociedade, no decurso de uma identidade cultural, ou aqueles que buscam uma educação pluricultural.



Ojé e Alabe do Ilê Axipa ensinam noções de ritmos percussivos na experiência Atabaque Entre as Folhas.
Foto: Acervo M. A. Luz

"Transformar a educação atual, defendendo uma educação para todos, que respeite a diversidade, as minorias étnicas, a pluralidade de doutrinas, os direitos humanos, eliminando estereótipos, ampliando o horizonte de conhecimentos e de visões de mundo." (GADOTTI, 1993, p.1)

Pondero, entre outros atributos, a performance como vivência pessoal, aquela que tem me proporcionado a consciência corporal do meu ser, e a histórica do que sou. Foi sempre na tradição africano-brasileira que busquei inspiração, informação, tanto no aspecto profissional quanto na filosofia de vida. Esta expressão estabeleceu a origem da hipótese de criação, de uma expressão artística no cenário da dança-educação brasileira.



Doutora Inaicyra Falcão dos Santos
Foto: disponível na internet

Percebo a importância da contribuição, e ao mesmo tempo, o desafio e complexidade de fazer-me compreendida, como uma artista-educadora, nos parâmetros do universo acadêmico. O aspecto fundamental seria, ter todo o processo consciente e informado. Foi necessário para elaborar e divulgar o trabalho, conhecer, investigar a realidade do universo ao qual tinha experienciado. Nesta aventura criativa, procurei respeitar os espaços, ou seja, refletindo sobre a função do dançar nos rituais dos terreiros de orixás, e sobre o que seja dançar, nas composições coreográficas teatrais. Discernindo a vivência intuitivo-criativa da vivência religiosa neste universo. Embora nos dois contextos as suas compreensões sejam realizadas pelo seu próprio conteúdo, na arte, a criação e na religião a razão do mito. Todavia, na criação, o artista une-se à ciência através da sua capacidade intelectual, abstrai da forma real um novo conceito estético-simbólico, dominando seu instrumento através da técnica, experiências acumuladas, emoção, sensibilidade e profunda consciência do seu ser. Enquanto que no contexto religioso, os mitos transmitem os valores, os princípios, as crenças, os ritos reforçam, moldam a vida da comunidade, onde a função da arte é de presentificar a força da natureza ou a de um ancestral. O mito é compreendido, na atividade ritual na tradição Yorubá, para reconstruir a vida no terreiro, arrebanhando um sistema de valores míticos e que influenciam os pensamentos, a natureza e a forma da cultura africano-brasileira.


O vínculo com o tema escolhido, um dos mitos de origem do tambor bàtá, poderia parafrasear Joseph Campbell, fui capturada por este, e então o que ele pode fazer por mim de fato! (CAMPBELL, 1992, p. 3)

PASSOS DA CRIAÇÃO POÉTICA

"... O artista se vê, naturalmente a sem quaisquer dúvidas como algo mais que um narrador ou intérprete: acima de tudo, ele é um indivíduo que decidiu formular para os outros, com absoluta sinceridade, sua verdade sobre o mundo..." (TARKOVSKI, 1990, p. 119)



Maestro Neguinho do Samba criador do Samba Reggae
Foto disponível na internet

Embora, que no sentido de tornar claro o discurso, estou expondo o processo como forma direta, mas é impossível afirmar os momentos específicos nos quais muitas idéias iam surgindo enriquecendo a experiência e os momentos que outras eram removidas por falta de consistência do argumento corporal e intelectual. Ou seja, houve, toda uma "ginga" um "negaceio", "vai-mas-não-vai". Um jogo de cintura, para dar origem à "esperteza" do trabalho.


Primeiro Passo: Saturação

Para se pensar na criação cênica dessa matéria cultural, procurei assimilar de forma teórica e prática, o modo que os fenômenos se configuravam, ou seja, as relações dentro do conteúdo significativo do universo bàtá. Procurando trabalhar o sentido prático da vivência como protagonista da ação.



Grupo da tradição yoruba Batá-Lèbé.
Foto: disponível na internet

O bàtá é dança dramática religiosa, pertencente a um dos numerosos e mais antigos grupos étnicos do sudoeste da Nigéria, no continente Africano. Os Yorubás possuem movimentos vigorosos, espasmódicos, percussivos, vibratórios produzindo sensações de tensão e suspense, representa no seu aspecto mítico o relâmpago, o trovão, natureza simbólica do orixá Xangô.


Na cidade de Oyó, Nigéria; é onde se encntra seu grande templo, mas ele é cultuado em todo o estado Yorubá, no Brasil, Cuba e em outros países das Américas.

A dança bàtá, é a representação corporal do ritmo produzido pela orquestra composta dos tambores bàtá que a nomeia.

Folabo Ajayí comenta sobre o bàtá na Nigéria.

"Bàtá é rápido, dança energética raramente interpretada por mulheres. É caracterizada por movimentos bem marcados, definidos, rápidos, torções e de intrincados passos... A forma dessa dança está relacionada à dança de possessão que acontece durante o ritual de Xangô e do ritual Egungun. É essencialmente uma forma de dança do norte da região Yorubá. As revisões do alarinjó, grupo teatral, geralmente dançam o bàtá como forma de representação através de temas satíricos." (AJAYI, 1989, p.2)



Tiras de pano abala que compõem as vestes sagradas dos Egungun
Foto: disponível na internet

A dança é revelada precisamente através da expressão do ritmo produzido pelos tambores bàtá, no contexto nigeriano, e pelos atabaques no contexto brasileiro.


Segundo Passo: Incubação

"O subconsciente é o depósito de tudo que você aprendeu e experimentou na vida... O relaxamento é a chave do funcionamento do subconsciente." (PETERSON, 1991, p.22)

Nesta perspectiva, a idéia principal surgiu no transformar o conto mítico em poema. O poder da palavra na constituição do sistema nagô mostra que:

"A palavra proferida tem um poder de ação. A transmissão simbólica, a mensagem, se realiza conjuntamente com gestos, com movimentos corporais, a palavra é vivida, pronunciada, está carregada com modulações, com emoção, com a história pessoal, o poder e a experiência de quem profere." (SANTOS, 1976, p.12)

Estas palavras na cultura Yorubá, e por extensão, na afro-brasileira estão nos mitos, nos contos, nos "Orikís" (poemas originados do sistema divinatório oracular do Ifá, que por sua vez se combinam em sub-conjuntos dos Odu). Nos festivais dos orixás; os mitos são revividos através da experiência religiosa. O orixá homenageado, é evocado, e com sua presença ele vive no presente o tempo primordial, na época em que o evento teve lugar pela primeira vez. Mircea Eliade argumenta que se pode falar: "... no tempo do mito, e o tempo prodigioso "sagrado", em que algo novo, de forte e de significativo se manifestou plenamente, e reviver esse tempo, reintegrá-lo ... é reaprender sua lição criadora." (ELÍADE, 1972, p.22)

Terceiro Passo: Iluminação

Surgiu assim a personagem Ayán, princípio de vida do tambor bàtá, que trouxe de forma intrínseca os elementos corporais, rítmicos, vocais e visuais.

Ayán

Princípio vibrante

Divaga

Iyó-orun, ewó-orun.

Nascente, poente

Vida e morte,

Meditação intermitente

Crente

Odu traçado

Destino amarrado

Entranhas emaranhadas

Degusta afazeres, lazeres

Verte amores, desamores

Atenta

Orixirixi

Expelindo desejos latentes

Emerge a dinâmica

Exú

Interage, intercede

Ayán

Expande pele espessa

Repercute, curtida

Nutrida batida

Ayán

Espasmódica

Impetuosa, intensa

Breve e seca

Ayán

Transcende, transfigurada

No fundamento

simbólico

Do fogo.

Quarto Passo: Verificação

"É perfeitamente lógico que a verificação venha no final do processo criativo, pois aplicá-la antes causaria uma interrupção no fluxo de idéias." (PETERSON, 1991, p.26)

Era imperativo para a realização deste trabalho, a união da teoria e da prática. Que este refletisse aspecto fundamental da pesquisa, na performance artística como um meio de comunicação-expressão.

Obtidas as informações do vocabulário pesquisado, da identificação daqueles movimentos e gestos pertinentes, ou seja, aqueles que recorriam com maior freqüência nas danças produzidas pelo ritmo bàtá. A organização sistemática desses dados, visava a possibilidade da reflexão permanente. Vai, portanto, resultar na elaboração de uma linguagem específica, dentro de um conteúdo ainda não figurado concretamente pelo corpo, encontrando-se oculto, esperando justamente a realização.

Assim, procurei construir com base concreta no ritmo, nas suas implicações no corpo, no espaço, na qualidade dos movimentos, nos gestos, nas palavras. Fazendo com que a influência desses, ocorressem nos planos objetivo e subjetivo.

Durante os exercícios de laboratório, o conhecimento adquirido tornava-se verdadeiro, incorporado a minha pessoa, a percepção se transfigurava. Fui adquirindo consciência, e aos poucos, ia formando um vocabulário com movimentos que se repetiam com freqüência nas improvisações. Estes movimentos, então, vão ser experienciados com variações estruturais diferentes, na elaboração da configuração cênica.

A linguagem cenográfica, espaço, tempo, música, ritmo, figurino, interagindo dialeticamente. Na originalidade, da apreensão de síntese da forma, decodificando a experiência vivenciada incorporada, em uma experiência artística, num processo de justaposição, deixando sempre um espaço, para o voluntário.

Portanto, a realidade temática estava no exterior, mas a sua realização transformava no meu subjetivo, no inconsciente, e voltava à superfície concretizando o espaço interior.

"A linguagem narrativa segmenta um evento em partes e vai roteirizando no tempo a compleição do todo. Desse modo, temos ações seguidas de outras, cujas ligações obedecem à ordem proposta pelo tempo." (PLAZA, 1987, p.137) O argumento do texto, expressão estética, fundamentou-se numa narrativa sucessiva, no qual as ações entre os versos decorrem no tempo, coordenados de forma direta, cada acontecimento resulta do precedente.

CONCLUSÃO

O referencial prático-teórico-metodológico, traduziu uma poética intertextual com uma idéia de significação de movimentos corporais, de imagens, de ritmos, de palavras e de elementos cênicos. Tendo como referência pragmática, a releitura icônica significativa do tambor bàtá, através do método da tradução intertextual, com a variação semântica de transcrição, com o investimento estético, com um olhar criativo e renovador. A montagem cênica pretendeu mostrar sobretudo, a personalidade de Ayán. Teve como suporte enfático-melódico o bàtá, ritmo produzido nos terreiros nagô na cidade de Salvador (Brasil), enquanto que o vocabulário corporal teve a qualidade estilística do bàtá-corporal da cidade de Oyó (Nigéria).

Desta forma, originou-se um idioleto experimental, semântico, narrativo, cinestésico, transcrito e subjetivo, uma proposta também didática no cenário contemporâneo da arte/educação brasileira.

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Ensaio publicado no livro Pluralidade Cultural e Educação.LUZ,Narcimária(ORG.)Secretaria da Educação e Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil -SECNEB, Salvador, 1996. 

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ADEDEJI, Joel A. The Traditional Yoruba Travelling Theatre. In: Yemi Ogunbiyi, Drama and Theatre in Nigeria. Great Britain: Pitman Press for Nigeria Magazine, 1981, p. 221-247.
BIOBAKU, S.O. Sources of Yoruba History. Oxford: Clarendon Press, 1973.

CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athenas, 1992.

________________. The Expression of Myth in Dance. In: Dance Research Annual 15, N.Y., (Ed.) CORD, 1983. Part I, p.9-15.

DREWAL, Margaret P. Dancing for Ogun in Yorubaland and in Brazil. In: Africa’s Ogun. (Ed.) Sandra T. Barnes, Indiana University Press, 1987, Cap. 9, 89-102.

DURAND, Gilbert. A imaginação Simbólica. São Paulo: Cultrix, 1988.

ELÍADE, Mircea. Mito e Realidade, São Paulo: Perspectiva, 1972.

GADOTTI, Moacir. História das Idéias Pedagógicas. São Paulo: Ática, 1993.

JOHNSON, Samuel. The History of the Yoruba. Lagos: C.M.S. (Nigéria) Bookshops, 1960.

OMOFOLABO, Ajayi S. Aesthetics of Yoruba Recreational Dances as Exemplified in the Oge Dance. Dance Research Journal, USA, v.21, n.2, p.1-8, Fall 1989.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Petrópolis: Vozes, 1993.

PETERSON, Wilferd A. A Arte do Pensamento Criativo. São Paulo: Best Seller, 1991.

PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987.

SANTOS, Deóscoredes M. dos. Contos Crioulos da Bahia. Petrópolis: Vozes, 1976.

SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a Morte. Petrópolis: Vozes, 1986.

SANTOS, Deóscoredes M. dos. A Cultura Nagô no Brasil, Memória e Continuidade, Revista USP, São Paulo, n. 18, p.41-51, Junho/Julho/Agosto, 1993.

SNYDERS, Georges. A Alegria na Escola. São Paulo: Manole, 1988.

TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1990.















quarta-feira, 2 de agosto de 2017

GRUPO CORPO ESTREIA ESPETÁCULO INSPIRADO EM EXU



Por Beta Germano

Conhecido pelos balés cheios de requebrados, o grupo mineiro se apresenta com elementos da música e da cultura brasileira.
Saltos com o corpo solto sem medo do impacto no chão. Ele não trava o movimento. Ao contrário: volta ainda mais belo e sedutor. Os pés marcam as batidas dos tambores. Pas de deux e fouettés dão lugar a remelexos de quadril, ombros e pélvis. São gestos aparentemente simples e repetidos, formando desenhos no palco e efeitos especiais. Nas vozes de Elza Soares e Juçara Marçal, do grupo Metá Metá, uma pista: “Parece até que o som do seu cajado ensina o nosso pé... Mas se não vem no amor ou vem do alto, só gente a gente é. Quem pisou no chão, quem pisou no céu, quem pisou no caos”. Se o Grupo Corpo criou, em 42 anos, um vocabulário coreográfico único, cheio de inflexões e reflexões notadamente brasilianas, e a certeza comum, ao final de cada espetáculo, de que os bailarinos ganham ar divino no palco, já estava mais do que na hora de compor um balé dedicado às entidades da umbanda e do candomblé.


Senhor da energia da transformação e da dinâmica, Exu é quem melhor entende as questões mundanas, colocando-se como intermediário entre os homens e os espíritos, e é protagonista de Gira, balé que estreia este mês. Não podia ser diferente. Uma das figuras mais sensuais das religiões afrodescendentes, ele encarna nos corpos vigorosos e nos requebrados dos bailarinos.
 A ideia é celebrá-lo e eliminar a fama demonizada que a entidade ganhou na cultura brasileira. “Um dos nomes de Exu é Bará, que quer dizer ‘rei do Corpo’. Para os iorubás [um dos maiores grupos étnico-linguísticos da África Ocidental], Exu é a força dinâmica que move os corpos, é o senhor do caos e do que ele tem de potente e inovador”, explica Kiko Dinucci, outro integrante do Metá Metá, que compôs as músicas e contou com a participação de Elza Soares nas gravações.
Há novidades na construção deste espetáculo. Os bailarinos nunca saem de cena: entre um número e outro, eles sentam em cadeiras negras e se cobrem com um véu do mesmo tom. “Eles ficam em volta de um quadrado iluminado até serem chamados para participar da festa. 


Me inspirei nas atitudes das entidades, mas é importante dizer que não queremos recriar um terreiro no palco”, afirma o coreógrafo Rodrigo Pederneiras. Assim, a gira – ritual de incorporação e conexão com a outra dimensão – só pode acontecer no centro iluminado.
A outra inovação acontece nos corpos dos integrantes. A arquiteta e figurinista Freusa Zechmeister colocou todos de saia e torso nu. Apesar de já ter usado saia nos meninos em Sem Mim e ter vestido macacões semelhantes para eles e elas em Triz, Freusa afirma que agora quer eliminar qualquer resquício de gênero. “Gostaria de abolir qualquer identidade – não quero, por exemplo, cabelos diferentes interferindo no movimento ou revelando quem é cada bailarino. Vou eliminar a distinção entre homens e mulheres, pois no terreiro todos são tratados da mesma forma.”
A maquiagem vermelha nos pescoços garante a dramaticidade do cenário e da iluminação assinados por Paulo Pederneiras. A cor, somada ao preto dos tules, vale lembrar, compõe os tons que representam Exu. Se a ocupação do espaço por Rodrigo e Paulo impressionam, é interessante notar a participação de Freusa. A roupa e os corpos dos dançarinos são como objetos, elementos decisivos para a arquitetura do espetáculo e, por isso, ela procura desenhar uma “indumentária permissora”. “As saias vão dar continuidade e ampliar os movimentos que o Rodrigo criou”, diz.
No terreiro, o ritmo acelerado do atabaque e a dança levam à transcendência. Desta vez, parece que os jogos de cintura e marcações de pé, que já tanto nos conectou a esses bailarinos endeusados, vão finalmente nos conectar com outra dimensão e nos ligar a um Brasil em transe.
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Artigo publicado em Casa Vogue em 02/08/2017.Disponível em  http://casavogue.globo.com/LazerCultura/noticia/2017/08/grupo-corpo-estreia-espetaculo-inspirado-em-exu.html.