quinta-feira, 31 de agosto de 2017
quarta-feira, 23 de agosto de 2017
HOMENAGENS A MESTRE DIDI NO FESTIVAL DE BADAGRY
Por Marco Aurélio Luz
No mês de agosto a cidade de Badagry na Nigéria, realiza um grandioso Festival que celebra a sua importância para a tradição cultural e preservação da memória histórica referente à diáspora.
Badagry
foi um porto
de embarque de africanos escravizados para as Américas, daí a sua importância histórica.
Foto disponível na internet
A memória do momento de transformação da população de prisioneiros em escravizados, se mantém preservando aspectos físicos do sítio e os instrumentos escravistas, e a atmosfera que envolveu essa viagem sem retorno.
O
Festival de Badagry reúne inúmeros eventos, a exemplo da apresentação de vários grupos
culturais; competição de barcos enfeitados;aparição dos Zangbeto espíritos ancestrais cobertos de palha da costa; competição de barcos enfeitados e torneio de futebol que disputam a taça do Oba o rei.
Grupo Cultural
Foto disponível na internet
Grupo Cultural
Foto disponível na internet
Aparição dos Zangbeto espíritos ancestrais cobertos de palha da costa.
Foto disponível na internet
Competição de barcos enfeitados.
Foto disponível na internet
O mais importante porém, são as homenagens aos líderes da diáspora que se destacaram no processo de libertação, de afirmação da identidade e reposição da civilização africana nas Américas. Em 2013 foi Marcus Garvey, em 2015 Toussaint L´Ouverture, em 2016 Olaudah Equiano e agora em 2017, Deoscoredes Maximiliano dos Santos, Mestre Didi.
Uma
delegação de lideranças religiosas do terreiro Ilê Asipá fundado por Mestre
Didi Asipá Alapini, está presente.
O Alagba nilé Asipá presente no Festival
A presença da linhagem Asipá no Brasil é um fato histórico fundamental para se entender a continuidade da tradição religiosa e cultural de origem nagô/yorubá. Desde a atuação marcante na fundação das primeiras casas de culto aos orixás, nas primeiras viagens e intercâmbios com a África, e na presença nos tradicionais cultos aos Egungun. Mestre Didi foi consagrado Alapini Ipekun Ojé, sacerdote supremo do culto aos Egungun. O Ilê Asipá concentra importante constelação de Egun Agba.
Em
1965 Mestre Didi acolheu em Salvador o poeta do movimento da Negritude Leon Damas,
que impressionado com o seu valor para a continuidade da civilização africana
na diáspora, reuniu esforços e conseguiu uma bolsa da UNESCO para ele na
Nigéria.
Mestre
Didi viajou em 1967 com sua esposa Juana E. Dos Santos. Com a participação de
Verger, aconteceu o encontro histórico com a família Asipá em Ketú. Ele narrou
o episódio desse elo transcendente em “Um Negro Baiano em Ketu”:
“O Rei, todos os seus ministros e as demais
pessoas que lá se encontravam na ocasião ficaram surpresos e me escutavam
emocionados, pois eles nunca tinham imaginado que, do outro lado do Oceano,
pudesse ainda existir pessoas como eu, capaz de cantar os cânticos tradicionais
que eram cantados pelos nossos antepassados.”
Mestre
Didi é sem dúvida um ponto de convergência de todos que participaram e
participam na reconstituição da tradição africana com suas linguagens, valores
e instituições nas Américas.
UM NEGRO BAIANO EM KETÚ
Por Deoscoredes M. dos Santos, Mestre Didi Axipá
Mestre Didi no Opa Oraniyan,
monumento em Ile Ifé em homenagem ao orixá que expandiu o povo nagô /yoruba
Ouvia sempre minha mãe e várias pessoas mais velhas descendentes de africanos dizerem que nós descenderíamos de uma das famílias reais do reino de Ketú. Porém, eu nunca dei importância e achava até ridículo comentar o assunto com outras pessoas. Eu pensava que tudo aquilo que ouvia com referência a minha família real e levando em consideração as dificuldades que os negros sempre tiveram para manter e preservar a tradição afro do Brasil e, principalmente da Bahia, fosse um pretexto para afirmar-se, fazendo o culto e a nossa religião afro-baiana mais respeitada no meio social. Até quando me foi concedida pela UNESCO uma bolsa, por intermédio do CEAO da UFBA, para fazer uma pesquisa comparada sobre arte sacra da África Ocidental no Brasil, na Nigéria, em Dahomey, atual república de Benin, durante um período de três meses.
Assim, foi no dia 6 de janeiro de 1967 que embarcamos, eu e minha mulher
Juana Elbein dos Santos, Research Fellow do Institute for Study of Man the New
York, que também obteve uma bolsa na ocasião para colaborar na pesquisa. Chegamos
a Lagos no dia 7. Três dias depois viajamos para Ibadan onde, depois de nos
termos apresentado ao Prof. Hebert G. Armstrong, Diretor do Institute African
Studies da Universidade de Ibadan, armamos o nosso quartel general. No dia
seguinte, ou seja, no dia 11, nos encontramos com Pierre Verger. Com sua ajuda
e do seu pequeno carro Citroen de 2 cavalos, começamos a fazer viagens curtas
para manter os primeiros contatos. No dia 21, atravessamos a fronteira e
viajamos para Daomey, ficando hospedados em Porto Novo no hotel dos Deputés.
Partimos no dia 23, um dia depois do falecimento de minha mãe, acontecimento do
qual só vim a tomar conhecimento ao regressar para Ibadan, 11 dias depois.
Partimos para o reino do Ketú, acompanhado de um intérprete funcionário
da I.R.A.D. a fim de continuar nossas pesquisas e fazer uma visita ao Rei em
meu nome e em nome de todos os irmãos descendentes de Ketú residentes na Bahia.
Longe estava eu de imaginar que poderia encontrar alguma pessoa descendente
daquela família real de que tanto falavam. Por mais incrível que pareça, até
esse momento nenhum comentário tinha sido feito a respeito dessa possibilidade.
Na passagem por Cotonu, fomos a Nonoprik e compramos um bom vinho francês para
dar de presente ao Rei, procurando dessa maneira seguir os costumes
tradicionais e, em seguida, retomamos o caminho. O Citroenzinho guiado pelo seu
dono, Pierre Verger, avançava pela estrada a fora parecendo uma besta com os
freios tomados nos dentes, passando por vários povoados, espantando porquinhos,
cabritos e galinhas, descendo e subindo ladeiras empinadas, cheias de
curvas, de campos e lindas passagens.
Depois de muito tempo, começamos a percorrer um caminho de terras
vermelhas, a poeira tingindo de vermelho a paisagem, até chegar à entrada do
reinado de Ketú. Na cidade, depois de 4 horas e meia de viagem, paramos no
armazém de um simpático senhor por nome Exu, nome de um dos Orixás que,
erradamente, é sincretizado como o Diabo no Brasil, para fazer uma breve
refeição com sardinhas, pão e mocacola, um delicioso refrigerante feito à base
de café. Meia hora depois, chegamos ao palácio do Rei. Como eu me sentia bem!
Com todos e tudo o que eu via e ouvia, apesar de andar brigando com o meu
Yorubá, que devido a eu não estar habituado a falar cotidianamente, ainda não
podia seguir diretamente as conversações muito prolongadas. Além disso, os
dialetos Yorubá variam muito de um lugar para outro.
Pierre Verger, a quem todos conhecem em toda região por Babalawô Fatunbí
e que já conhecia o Rei, fez a nossa apresentação. Entreguei o presente. Logo o
rei mandou abrir a garrafa e servir a todos o presente, ficando ele, como é de
costume, para se servir por último. Conversa vai, conversa vem, eu disse ao Rei
que era descendente da terra de Ketú. Ele, muito espantado com o meu Nagô
Yorubá, mandou que eu desse prova do que tinha dito. E assim foi que cantei
algumas cantigas enaltecendo a terra, o Rei e a riqueza do seu povo.
O Rei, todos os seus ministros e as demais pessoas que lá se encontravam
na ocasião ficaram surpresos e me escutavam emocionados, pois eles nunca tinham
imaginado que, do outro lado do Oceano, pudesse ainda existir pessoas como eu,
capaz de cantar os cânticos tradicionais que eram cantados pelos nossos
antepassados.
Quando terminei de cantar, o Rei, bastante emocionado, passou a mostrar a
coroa que estava usando e traduzindo uma das cantigas nos disse que não era
aquela coroa a que a cantiga se referia e sim a outra com a qual são
consagrados os Reis.
Existia a maior alegria no recinto e todos me admiravam com muito carinho
e uma certa ternura se lhes estampava nas faces.
Enquanto isso, a minha mulher se lembrou do caso da família real e me
perguntou por que eu não recitava o Orilé de minha família, o que eu chamo de
brasão oral. Não dei atenção a pergunta. Ela e Verger, porém, insistiram tanto,
que fui forçado a recitar o Orikí, mesmo porque o Rei observou quando Juana
falou em francês para Verger e ficou muito interessado.
Tive que dizer as seguintes palavras em Nagô: Asipá Borogum Elesé Kan Gon
Goo. Quando terminei, só vimos o Rei de repente exclamar, Ah! Asipá! E
levantando-se da cadeira onde estava sentado apontou para um dos lados do
palácio, dizendo: sua família mora ali.
Todos nós ficamos parados, era uma coisa inacreditável. Em seguida, o Rei
chamou uma pessoa das mais velhas, a Iya Nana, e nos mandou levar à casa dos
Asipá.
Quando chegamos ao lugar, descobrimos que era todo um bairro, em vez de
uma casa. Fomos levados à casa principal. Por ser um dia de semana, a maior
parte dos homens estava trabalhando na roça da família denominada Kosikú (não
há morte). Mesmo assim, fui apresentado a todos os que estavam presentes e,
quando recitei o Orikí, foi uma alegria geral, todos bateram palmas, vieram
apertar minhas mãos, queriam estabelecer conversações comigo e eu estava tão
emocionado que não entendia e não sabia de nada.
Mestre Didi com a família Asipa em Ketú.
Fotografia propriedade do acervo de D.M. dos Santos
Só via alegria, alegria no semblante de todos que se acercavam para me cumprimentar. Logo nos levaram ao Ojubó Ode, lugar de adoração a Oxóssi, nos mostrando onde estava o Axé da casa e foram chamar uma das pessoas mais velhas pertencentes à família, a fim de nos fornecer as informações precisas.
Mestre Didi no Ojubo Osoosi da família Asipa em Ketú.
Foto acervo M.A.Luz e na internet.
Assim foi que ficamos sabendo de que tudo que minha mãe Senhora e as pessoas mais velhas falavam na Bahia, era verdade. Independente de minha linguagem real, a nossa família foi uma das sete principais famílias que fundaram o Reino de Ketú.
Mestre Didi com a família Asipa em Ketú.
Fotografia propriedade do acervo de D.M. dos Santos
Só via alegria, alegria no semblante de todos que se acercavam para me cumprimentar. Logo nos levaram ao Ojubó Ode, lugar de adoração a Oxóssi, nos mostrando onde estava o Axé da casa e foram chamar uma das pessoas mais velhas pertencentes à família, a fim de nos fornecer as informações precisas.
Mestre Didi no Ojubo Osoosi da família Asipa em Ketú.
Foto acervo M.A.Luz e na internet.
Assim foi que ficamos sabendo de que tudo que minha mãe Senhora e as pessoas mais velhas falavam na Bahia, era verdade. Independente de minha linguagem real, a nossa família foi uma das sete principais famílias que fundaram o Reino de Ketú.
Deoscoredes Maximiliano dos Santos,Mestre Didi é herdeiro do Axé de Xangô, da
tradicional família Asipá da Bahia, Assogbá Sumo Sacerdote do culto do Orixá
Obaluaiyê, Balé Xangô, Babá Mobá Oni Xangô, Alapini, sumo sacerdote do culto de
adoração aos Ancestrais, Egun.
A importância de Mestre Didi, como é conhecido, se
expressa na abertura de canais para as inter-relações das comunidades negras
com a sociedade global. Escritor e escultor, um dos expoentes da cultura
afro-brasileira, é o inspirador e impulsionador da Sociedade de Estudos da
Cultura Negra no Brasil – SECNEB, do
setor afro-baiano do Museu de Arte Moderna da Bahia, do projeto da educação
pluricultural – Mini Comunidade Oba-Biyi do Instituto Nacional da Tradição e
Cultura Afro-Brasileira – INTECAB e de outras instituições de atividades
voltadas para a reflexão e expansão dos valores afro-brasileiros.
Os filmes Egungun, Orixá Ninu Ilé e Iya-mi Agbá
foram realizados com a sua assessoria direta. Reformulador, nas artes
contemporâneas, das técnicas tradicionais africanas, realiza exposições
regulares no Brasil, África Ocidental, Estados Unidos, Europa e, em uma sala
especial no Centro Georges Pompidou, em Paris, 1989, durante a Exposição
Internacional “Magiciens de la Terre”. A última, na Feira do Livro em Frankfurt
em 1994 e na Pinacoteca de São Paulo.
Publicou os livros Contos Negros da Bahia,
Contos Nagô, Contos Crioulos da Bahia, a monografia História de um Terreiro Nagô, e
diversos ensaios em parceria com Juana Elbein dos Santos; com Lenio Braga, o
livro-objeto Porque Oxalá Usa Ekodidé, Autor das peças teatrais Ode o
Caçador do Mato, O Presente de Xangô, Boa Menina, A Fuga
de Tio Ajaí; com Adão Pinheiro, publicou
História da Criação do Mundo, em parceria com Juana Elbein dos
Santos, Orlando Sena, o auto mítico Ajaká. Sendo um Sacerdote, Mestre
Didi posiciona suas atividades e sua liderança no sentido da continuidade
histórica, reforçando e enriquecendo a identidade cultural de seu povo.
Nota:Artigo publicado no SEMENTES Caderno de Pesquisa, Ética da Coexistência, vol. 5, nº 7 jan/dez 2004
quarta-feira, 16 de agosto de 2017
AYAN POÉTICA INTERTEXTUAL
Por Inaicyra Falcão dos Santos
Ayán é a entidade sagrada do tambor Bata consagrado a Xangô.
Foto: disponível na internet
INTRODUÇÃO
O argumento que pretendo desenvolver neste estudo, é que, para se pensar na tradição africano-brasileira, como forma verdadeiramente expressiva na criação artística, torna-se necessário levar em consideração, os valores da cultura em questão. Considerando-a como agente de integração que pode estabelecer uma coerência, uma organicidade entre a tradição de um povo, e o conhecimento da arte teorizado, possibilitando o enriquecimento da nossa cultura.
O argumento que pretendo desenvolver neste estudo, é que, para se pensar na tradição africano-brasileira, como forma verdadeiramente expressiva na criação artística, torna-se necessário levar em consideração, os valores da cultura em questão. Considerando-a como agente de integração que pode estabelecer uma coerência, uma organicidade entre a tradição de um povo, e o conhecimento da arte teorizado, possibilitando o enriquecimento da nossa cultura.
Tambores Bata do terreiro de Pai Adão de Recife ressurgem no Congresso da Tradição dos Orixá na Bahia.
Foto: Acervo M. A. Luz
Trata-se da busca na criação artística, e consequentemente a
origem de uma proposta pluricultural na dança-arte-educação brasileira, através
da história do indivíduo e da mitologia. Examinando também nesta experiência, a
possibilidade de uma base de expressão, dentro de uma perspectiva histórica,
religiosa, artística e intuitiva.
Foi fundamental compreender o processo, esta busca de
espaço, a fim de torná-lo mais significativo aos artistas e educadores
brasileiros, os quais se comunicam com a sociedade, no decurso de uma
identidade cultural, ou aqueles que buscam uma educação pluricultural.
Ojé e Alabe do Ilê Axipa ensinam noções de ritmos percussivos na experiência Atabaque Entre as Folhas.
Foto: Acervo M. A. Luz
"Transformar a educação atual, defendendo uma educação
para todos, que respeite a diversidade, as minorias étnicas, a pluralidade de
doutrinas, os direitos humanos, eliminando estereótipos, ampliando o horizonte
de conhecimentos e de visões de mundo." (GADOTTI, 1993, p.1)
Pondero, entre outros atributos, a performance como vivência
pessoal, aquela que tem me proporcionado a consciência corporal do meu ser, e a
histórica do que sou. Foi sempre na tradição africano-brasileira que busquei
inspiração, informação, tanto no aspecto profissional quanto na filosofia de
vida. Esta expressão estabeleceu a origem da hipótese de criação, de uma
expressão artística no cenário da dança-educação brasileira.
Doutora Inaicyra Falcão dos Santos
Foto: disponível na internet
Percebo a importância da contribuição, e ao mesmo tempo, o
desafio e complexidade de fazer-me compreendida, como uma artista-educadora,
nos parâmetros do universo acadêmico. O aspecto fundamental seria, ter todo o
processo consciente e informado. Foi necessário para elaborar e divulgar o trabalho,
conhecer, investigar a realidade do universo ao qual tinha experienciado. Nesta
aventura criativa, procurei respeitar os espaços, ou seja, refletindo sobre a
função do dançar nos rituais dos terreiros de orixás, e sobre o que seja
dançar, nas composições coreográficas teatrais. Discernindo a vivência
intuitivo-criativa da vivência religiosa neste universo. Embora nos dois
contextos as suas compreensões sejam realizadas pelo seu próprio conteúdo, na
arte, a criação e na religião a razão do mito. Todavia, na criação, o artista
une-se à ciência através da sua capacidade intelectual, abstrai da forma real
um novo conceito estético-simbólico, dominando seu instrumento através da
técnica, experiências acumuladas, emoção, sensibilidade e profunda consciência do
seu ser. Enquanto que no contexto religioso, os mitos transmitem os valores, os
princípios, as crenças, os ritos reforçam, moldam a vida da comunidade, onde a
função da arte é de presentificar a força da natureza ou a de um ancestral. O
mito é compreendido, na atividade ritual na tradição Yorubá, para reconstruir a
vida no terreiro, arrebanhando um sistema de valores míticos e que influenciam
os pensamentos, a natureza e a forma da cultura africano-brasileira.
O vínculo com o tema escolhido, um dos mitos de origem do
tambor bàtá, poderia parafrasear Joseph Campbell, fui capturada por este, e
então o que ele pode fazer por mim de fato! (CAMPBELL, 1992, p. 3)
PASSOS DA CRIAÇÃO POÉTICA
"... O artista se vê, naturalmente a sem quaisquer
dúvidas como algo mais que um narrador ou intérprete: acima de tudo, ele é um
indivíduo que decidiu formular para os outros, com absoluta sinceridade, sua
verdade sobre o mundo..." (TARKOVSKI, 1990, p. 119)
Maestro Neguinho do Samba criador do Samba Reggae
Foto disponível na internet
Embora, que no sentido de tornar claro o discurso, estou
expondo o processo como forma direta, mas é impossível afirmar os momentos
específicos nos quais muitas idéias iam surgindo enriquecendo a experiência e
os momentos que outras eram removidas por falta de consistência do argumento
corporal e intelectual. Ou seja, houve, toda uma "ginga" um
"negaceio", "vai-mas-não-vai". Um jogo de cintura, para dar
origem à "esperteza" do trabalho.
Primeiro Passo: Saturação
Para se pensar na criação cênica dessa matéria cultural,
procurei assimilar de forma teórica e prática, o modo que os fenômenos se
configuravam, ou seja, as relações dentro do conteúdo significativo do universo
bàtá. Procurando trabalhar o sentido prático da vivência como protagonista da
ação.
Grupo da tradição yoruba Batá-Lèbé.
Foto: disponível na internet
O bàtá é dança dramática religiosa, pertencente a um dos
numerosos e mais antigos grupos étnicos do sudoeste da Nigéria, no continente
Africano. Os Yorubás possuem movimentos vigorosos, espasmódicos, percussivos,
vibratórios produzindo sensações de tensão e suspense, representa no seu
aspecto mítico o relâmpago, o trovão, natureza simbólica do orixá Xangô.
Na cidade de Oyó, Nigéria; é onde se encntra seu grande
templo, mas ele é cultuado em todo o estado Yorubá, no Brasil, Cuba e em outros
países das Américas.
A dança bàtá, é a representação corporal do ritmo produzido
pela orquestra composta dos tambores bàtá que a nomeia.
Folabo Ajayí comenta sobre o bàtá na Nigéria.
"Bàtá é rápido, dança energética raramente interpretada
por mulheres. É caracterizada por movimentos bem marcados, definidos, rápidos,
torções e de intrincados passos... A forma dessa dança está relacionada à dança
de possessão que acontece durante o ritual de Xangô e do ritual Egungun. É
essencialmente uma forma de dança do norte da região Yorubá. As revisões do
alarinjó, grupo teatral, geralmente dançam o bàtá como forma de representação
através de temas satíricos." (AJAYI, 1989, p.2)
Tiras de pano abala que compõem as vestes sagradas dos Egungun
Foto: disponível na internet
A dança é revelada precisamente através da expressão do
ritmo produzido pelos tambores bàtá, no contexto nigeriano, e pelos atabaques
no contexto brasileiro.
Segundo Passo: Incubação
"O subconsciente é o depósito de tudo que você aprendeu
e experimentou na vida... O relaxamento é a chave do funcionamento do
subconsciente." (PETERSON, 1991, p.22)
Nesta perspectiva, a idéia principal surgiu no transformar o
conto mítico em poema. O poder da palavra na constituição do sistema nagô
mostra que:
"A palavra proferida tem um poder de ação. A
transmissão simbólica, a mensagem, se realiza conjuntamente com gestos, com
movimentos corporais, a palavra é vivida, pronunciada, está carregada com
modulações, com emoção, com a história pessoal, o poder e a experiência de quem
profere." (SANTOS, 1976, p.12)
Estas palavras na cultura Yorubá, e por extensão, na
afro-brasileira estão nos mitos, nos contos, nos "Orikís" (poemas
originados do sistema divinatório oracular do Ifá, que por sua vez se combinam
em sub-conjuntos dos Odu). Nos festivais dos orixás; os mitos são revividos
através da experiência religiosa. O orixá homenageado, é evocado, e com sua
presença ele vive no presente o tempo primordial, na época em que o evento teve
lugar pela primeira vez. Mircea Eliade argumenta que se pode falar: "...
no tempo do mito, e o tempo prodigioso "sagrado", em que algo novo,
de forte e de significativo se manifestou plenamente, e reviver esse tempo,
reintegrá-lo ... é reaprender sua lição criadora." (ELÍADE, 1972, p.22)
Terceiro Passo: Iluminação
Surgiu assim a personagem Ayán, princípio de vida do tambor
bàtá, que trouxe de forma intrínseca os elementos corporais, rítmicos, vocais e
visuais.
Ayán
Princípio vibrante
Divaga
Iyó-orun, ewó-orun.
Nascente, poente
Vida e morte,
Meditação intermitente
Crente
Odu traçado
Destino amarrado
Entranhas emaranhadas
Degusta afazeres, lazeres
Verte amores, desamores
Atenta
Orixirixi
Expelindo desejos latentes
Emerge a dinâmica
Exú
Interage, intercede
Ayán
Expande pele espessa
Repercute, curtida
Nutrida batida
Ayán
Espasmódica
Impetuosa, intensa
Breve e seca
Ayán
Transcende, transfigurada
No fundamento
simbólico
Do fogo.
Quarto Passo: Verificação
"É perfeitamente lógico que a verificação venha no
final do processo criativo, pois aplicá-la antes causaria uma interrupção no
fluxo de idéias." (PETERSON, 1991, p.26)
Era imperativo para a realização deste trabalho, a união da
teoria e da prática. Que este refletisse aspecto fundamental da pesquisa, na
performance artística como um meio de comunicação-expressão.
Obtidas as informações do vocabulário pesquisado, da
identificação daqueles movimentos e gestos pertinentes, ou seja, aqueles que
recorriam com maior freqüência nas danças produzidas pelo ritmo bàtá. A
organização sistemática desses dados, visava a possibilidade da reflexão
permanente. Vai, portanto, resultar na elaboração de uma linguagem específica,
dentro de um conteúdo ainda não figurado concretamente pelo corpo,
encontrando-se oculto, esperando justamente a realização.
Assim, procurei construir com base concreta no ritmo, nas
suas implicações no corpo, no espaço, na qualidade dos movimentos, nos gestos,
nas palavras. Fazendo com que a influência desses, ocorressem nos planos
objetivo e subjetivo.
Durante os exercícios de laboratório, o conhecimento
adquirido tornava-se verdadeiro, incorporado a minha pessoa, a percepção se
transfigurava. Fui adquirindo consciência, e aos poucos, ia formando um
vocabulário com movimentos que se repetiam com freqüência nas improvisações.
Estes movimentos, então, vão ser experienciados com variações estruturais
diferentes, na elaboração da configuração cênica.
A linguagem cenográfica, espaço, tempo, música, ritmo,
figurino, interagindo dialeticamente. Na originalidade, da apreensão de síntese
da forma, decodificando a experiência vivenciada incorporada, em uma
experiência artística, num processo de justaposição, deixando sempre um espaço,
para o voluntário.
Portanto, a realidade temática estava no exterior, mas a sua
realização transformava no meu subjetivo, no inconsciente, e voltava à
superfície concretizando o espaço interior.
"A linguagem narrativa segmenta um evento em partes e
vai roteirizando no tempo a compleição do todo. Desse modo, temos ações
seguidas de outras, cujas ligações obedecem à ordem proposta pelo tempo."
(PLAZA, 1987, p.137) O argumento do texto, expressão estética, fundamentou-se
numa narrativa sucessiva, no qual as ações entre os versos decorrem no tempo,
coordenados de forma direta, cada acontecimento resulta do precedente.
CONCLUSÃO
O referencial prático-teórico-metodológico, traduziu uma
poética intertextual com uma idéia de significação de movimentos corporais, de
imagens, de ritmos, de palavras e de elementos cênicos. Tendo como referência
pragmática, a releitura icônica significativa do tambor bàtá, através do método
da tradução intertextual, com a variação semântica de transcrição, com o
investimento estético, com um olhar criativo e renovador. A montagem cênica
pretendeu mostrar sobretudo, a personalidade de Ayán. Teve como suporte
enfático-melódico o bàtá, ritmo produzido nos terreiros nagô na cidade de
Salvador (Brasil), enquanto que o vocabulário corporal teve a qualidade estilística
do bàtá-corporal da cidade de Oyó (Nigéria).
Desta forma, originou-se um idioleto experimental,
semântico, narrativo, cinestésico, transcrito e subjetivo, uma proposta também
didática no cenário contemporâneo da arte/educação brasileira.
***********
Ensaio publicado no livro Pluralidade Cultural e Educação.LUZ,Narcimária(ORG.)Secretaria da Educação e Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil -SECNEB, Salvador, 1996.
*******
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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Theatre in Nigeria. Great Britain: Pitman Press for Nigeria Magazine, 1981, p.
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BIOBAKU,
S.O. Sources of Yoruba History. Oxford: Clarendon Press, 1973.
CAMPBELL,
Joseph. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athenas, 1992.
________________.
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(Ed.) Sandra T. Barnes, Indiana University Press, 1987, Cap. 9, 89-102.
DURAND, Gilbert. A imaginação Simbólica. São Paulo: Cultrix,
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ELÍADE, Mircea. Mito e Realidade, São Paulo: Perspectiva,
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GADOTTI, Moacir. História das Idéias Pedagógicas. São Paulo:
Ática, 1993.
JOHNSON,
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Perspectiva, 1987.
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Petrópolis: Vozes, 1976.
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Vozes, 1986.
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1988.
TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins
Fontes, 1990.
terça-feira, 8 de agosto de 2017
sábado, 5 de agosto de 2017
quarta-feira, 2 de agosto de 2017
GRUPO CORPO ESTREIA ESPETÁCULO INSPIRADO EM EXU
Por
Beta Germano
Conhecido
pelos balés cheios de requebrados, o grupo mineiro se apresenta com elementos
da música e da cultura brasileira.
Saltos
com o corpo solto sem medo do impacto no chão. Ele não trava o movimento. Ao
contrário: volta ainda mais belo e sedutor. Os pés marcam as batidas dos
tambores. Pas de deux e fouettés dão lugar a remelexos de quadril, ombros e
pélvis. São gestos aparentemente simples e repetidos, formando desenhos no
palco e efeitos especiais. Nas vozes de Elza Soares e Juçara Marçal, do grupo
Metá Metá, uma pista: “Parece até que o som do seu cajado ensina o nosso pé...
Mas se não vem no amor ou vem do alto, só gente a gente é. Quem pisou no chão,
quem pisou no céu, quem pisou no caos”. Se o Grupo Corpo criou, em 42 anos, um
vocabulário coreográfico único, cheio de inflexões e reflexões notadamente
brasilianas, e a certeza comum, ao final de cada espetáculo, de que os
bailarinos ganham ar divino no palco, já estava mais do que na hora de compor
um balé dedicado às entidades da umbanda e do candomblé.
Senhor
da energia da transformação e da dinâmica, Exu é quem melhor entende as
questões mundanas, colocando-se como intermediário entre os homens e os
espíritos, e é protagonista de Gira, balé que estreia este mês. Não podia ser
diferente. Uma das figuras mais sensuais das religiões afrodescendentes, ele
encarna nos corpos vigorosos e nos requebrados dos bailarinos.
A
ideia é celebrá-lo e eliminar a fama demonizada que a entidade ganhou na
cultura brasileira. “Um dos nomes de Exu é Bará, que quer dizer ‘rei do Corpo’.
Para os iorubás [um dos maiores grupos étnico-linguísticos da África
Ocidental], Exu é a força dinâmica que move os corpos, é o senhor do caos e do
que ele tem de potente e inovador”, explica Kiko Dinucci, outro integrante do Metá
Metá, que compôs as músicas e contou com a participação de Elza Soares nas
gravações.
Há
novidades na construção deste espetáculo. Os bailarinos nunca saem de cena:
entre um número e outro, eles sentam em cadeiras negras e se cobrem com um véu
do mesmo tom. “Eles ficam em volta de um quadrado iluminado até serem chamados
para participar da festa.
Me inspirei nas atitudes das entidades, mas é
importante dizer que não queremos recriar um terreiro no palco”, afirma o
coreógrafo Rodrigo Pederneiras. Assim, a gira – ritual de incorporação e
conexão com a outra dimensão – só pode acontecer no centro iluminado.
A
outra inovação acontece nos corpos dos integrantes. A arquiteta e figurinista
Freusa Zechmeister colocou todos de saia e torso nu. Apesar de já ter usado
saia nos meninos em Sem Mim e ter vestido macacões semelhantes para eles e elas
em Triz, Freusa afirma que agora quer eliminar qualquer resquício de gênero.
“Gostaria de abolir qualquer identidade – não quero, por exemplo, cabelos
diferentes interferindo no movimento ou revelando quem é cada bailarino. Vou
eliminar a distinção entre homens e mulheres, pois no terreiro todos são
tratados da mesma forma.”
A
maquiagem vermelha nos pescoços garante a dramaticidade do cenário e da
iluminação assinados por Paulo Pederneiras. A cor, somada ao preto dos tules,
vale lembrar, compõe os tons que representam Exu. Se a ocupação do espaço por
Rodrigo e Paulo impressionam, é interessante notar a participação de Freusa. A
roupa e os corpos dos dançarinos são como objetos, elementos decisivos para a
arquitetura do espetáculo e, por isso, ela procura desenhar uma “indumentária
permissora”. “As saias vão dar continuidade e ampliar os movimentos que o
Rodrigo criou”, diz.
No
terreiro, o ritmo acelerado do atabaque e a dança levam à transcendência. Desta
vez, parece que os jogos de cintura e marcações de pé, que já tanto nos
conectou a esses bailarinos endeusados, vão finalmente nos conectar com outra
dimensão e nos ligar a um Brasil em transe.
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Artigo
publicado em Casa Vogue em 02/08/2017.Disponível em http://casavogue.globo.com/LazerCultura/noticia/2017/08/grupo-corpo-estreia-espetaculo-inspirado-em-exu.html.
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