ITAPUÃ ÁFRICA VIVA!
Em entrevista exclusiva a Associação Crianças Raízes do Abaeté, a professora Narcimária Correia do Patrocínio Luz comenta aspectos da sua pesquisa que realizou sobre o bairro de Itapuã e a importância de conhecermos e valorizarmos a história do lugar onde vivemos. Narcimária é Professora Titular Plena do Departamento de Educação Campus I da Universidade do Estado da Bahia-UNEB; Doutora em Educação; pesquisadora no campo da Educação, Comunicação e Comunalidade Africano-Brasileira; coordenadora no Diretório dos Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPq do PRODESE- Programa Descolonização e Educação, grupo de pesquisa que vem se destacando pelas iniciativas junto às comunidades tradicionais da Bahia.
ACRA: Como surgiu a idéia de realizar a pesquisa sobre Itapuã?
DRA. NARCIMÁRIA: Itapuã tornou-se referência fundamental para meus estudos, porque encontrei nessa territorialidade um repertório de vínculos de sociabilidade que me permitiu a aproximação com aspectos que ao longo de vinte anos vinha me dedicando a estudar, a saber: a força da civilização africana na constituição da identidade profunda de muitas territorialidades na Bahia. Daí a nossa opção em estabelecer nosso estudo na territorialidade de Itapuã, Salvador Bahia. Tenho uma relação visceral com Itapuã porque toda a minha infância e juventude esteve envolvida com os valores e linguagens desse magnífico lugar. Recebemos também um convite especial da Associação Crianças Raízes do Abaeté para compor uma equipe que se dedicasse a desenvolver iniciativas sócio-educacionais visando a implantação de condições infra-estruturais que legitimassem os valores comunais do bairro de Itapuã, e através dessas iniciativas, promovesse o desenvolvimento físico-emocional da população infanto-juvenil, base das projeções de futuro dessa territorialidade. É assim que nasce a nossa arqueologia sócio-histórica e cultural sobre Itapuã, que apresenta para as crianças e jovens a riqueza do patrimônio civilizatório dos povos tupinambás e africanos base da identidade cultural do lugar.
ACRA: O que constitui esse patrimônio civilizatório em Itapuã?
DRA. NARCIMÁRIA: Um olhar panorâmico vai nos ajudar a começar a aproximação com a abordagem da pesquisa, se não vejamos: Somália, Nigéria, Mali, Sirilanka, Egito, Costado Marfim, Tailândia, Líbano, Haiti, Cuba, Jamaica, Guianas, Austrália, Colômbia, Peru, Venezuela, Caribe, África do Sul, Bolívia, Brasil, México, Angola, Romênia, Yuguslávia, Camarões, Paraguai, Panamá, Índia, Congo, Peru, Chile, Argentina, Tailândia, Líbano, Zimbabwe...
Mas o que aproxima esses povos da iniciativa da pesquisa sobre Itapuã? Uma observação fundamental: muitas iniciativas similares a nossa iniciativa vêm sendo fomentadas no seio de muitos povos através de movimentos sociais vigorosos, voltados para erguer espaços institucionais que promovam políticas de educação, saúde, alternativas de modos de produção que favoreçam a qualidade de vida enfim, ações que abram perspectivas de futuro e continuidade do patrimônio civilizatório característicos dessas nações. Vamos pousar nossa atenção sobre um dos graves problemas que vêm afligindo todos os povos do planeta: as relações de prolongação neocolonial capitalista que impõem valores existenciais que tendem a recalcar as expressões civilizatórias de muitas comunalidades tradicionais.
A conseqüência tem sido o acirramento de tensões e conflitos que geram violências de toda ordem, guerras, fome, perdas territoriais, destruição da natureza, pobreza crônica, mortalidade infantil, institucionalização de políticas genocidas, muita desigualdade social mapeia o planeta. Contemporaneamente distintas comunalidades tradicionais de vários países, têm tomado para si a iniciativa de aplacar as angústias que têm comprometido o direito à existência das suas crianças e jovens, gerações que representam o futuro dos povos. Essas organizações sociais, muitas delas em intercâmbio com a nossa pesquisa que enfatiza os valores da territorialidade Itapuã, têm procurado abrir horizontes de questionamentos, interrogações e proposições seminais para uma educação que realmente contemple os distintos contextos culturais que caracterizam as suas populações.
ACRA: Como você desenvolveu essa arqueologia sócio-histórica de Itapuã?
DRA. NARCIMÁRIA: Visitamos a exposição comemorativa dos 90 anos de Abdias Nascimento e identificamos um ideograma cuja força semântica nos emocionou muito. O ideograma que abria a exposição é o sankofa e nele está contida a seguinte perspectiva: ”Nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou para trás... Aprender com o passado para construir o futuro.”
Foi esse exercício de elaboração profundo que fizemos. Procuramos escutar com o coração o que há de mais precioso e milenar em Itapuã. Sabe o que é? A pedra que ronca. A arqueologia sócio-histórica que realizamos nos remete ao mito fundador de Itapuã, que é a pedra que ronca, realçando de modo valioso a presença inaugural da comunalidade tupinambá e sua continuidade e relação mítica com os povos africanos. Os princípios inaugurais de Itapuã estão completamente envoltos pela temporalidade dos povos indígenas e dos povos africanos, que se presentificam organizando e estruturando comunalidades que se aprumam na infinitude do universo simbólico que constitui os mistérios do mar. Itapuã na língua tupi-guarani: ita significa pedra e puã significa choro, gemido. Há também outra interpretação que diz ser Itapuã em tupi, um rochedo que se ergue, a pedra que ergue a cabeça redonda acima das águas na margem do oceano. Vimos então que a abordagem do estudo para se consolidar deveria acolher as perspectivas de elaborações que enfatizam o princípio inaugural que é a “pedra que ronca”, referência apresentada e legítima também para muitos moradores antigos. Os filhos e filhas de Itapuã como são conhecidos os moradores antigos que nasceram e cresceram ali, sabem e sentem que fazem parte dessa extensão de valores contidos nesse princípio mítico, que é Itapuã a pedra, aliás, toda a comunalidade se identifica com esse imaginário milenar que carrega um significado simbólico profundo que alimenta e dá pulsão a comunalidade africano-brasileira. Itapuã a “pedra que ronca” e “gemi” atravessando os tempos, se insurgindo insistindo no direito a existência. O ronco e/ou gemido de Itapuã são metáforas que carregam o as projeções socioexistenciais dos povos que foram agredidos pelas relações coloniais e de expansão do capitalismo industrial.
ACRA: Você afirma nos seus estudos que Itapuã é uma África viva. Por quê?
DRA. NARCIMÁRIA: Com certeza. Itapuã abriga uma rica tradição cultural africana, podemos afirmar que é uma das mais expressivas do mundo, de onde se desdobram linguagens e formas de comunicação própria da comunalidade africano-brasileira, de suma importância na estruturação e legitimação dos valores sócio-existenciais da sua população. Assim, tivemos que lidar com a radicalidade das questões que floresciam na arqueologia sócio-histórica impregnada pelo universo simbólico afro-brasileiro, dando forma às narrativas de mitos, provérbios, música polirrítmica de base percussiva, danças, dramatizações, repertório culinário, conhecimento milenar sobre a complexidade de vida que atravessa as dunas, o mar, a lagoa, as instituições e suas hierarquias comunitárias, organização territorial, repertório de cantigas e histórias dos pescadores, ganhadeiras, lavadeiras que acumulam narrativas valiosas sobre os princípios fundadores da territorialidade, classificação dos peixes no mar de Itapuã; tecnologia da confecção de redes, o uso de canoas, saveiros e jangadas, a arquitetura e estética urbana africano-brasileira; a culinária tradicional africana, a celebração referente à visão sagrada de mundo expressa na entrega de oferendas à Yemanjá no mar e outros espaços míticos como a Lagoa do Abaeté, enfim o mistério do viver e as estratégias de continuidade da tradição herança dos antepassados.
ACRA: De todo o universo explorado sobre Itapuã o que mais lhe emociona?
DRA. NARCIMÁRIA: A infinitude da existência que o mar carrega. O mar é um espaço sagrado, imponente, pleno de mistérios, do imponderável. É preciso respeitá-lo e a relação com ele se faz através de linguagens míticas que ritualizadas apelam para as forças cósmicas que o constitui. Os princípios de ancestralidade que inauguraram a territorialidade de Itapuã, a exemplo da “pedra que ronca” e “gemi”, caracteriza o repertório mítico dos tupinambás que habitaram Itapuã e os africanos que herdam o mesmo princípio inaugural da pedra atualizando-o até os nossos dias. Nesse universo simbólico entram as oferendas para Yemanjá e Oxum princípios das águas, de suma importância para prover o êxito dos ciclos da pesca que sustentam o a expansão comunal. As oferendas para Yemanjá e Oxum princípios fundamentais à dinâmica comunal que envolve a pesca protagoniza o mapeamento. O Mar e seu entrelaçamento com a correnteza dos rios repercutem na organização societal de Itapuã, e nessa dinâmica mítica envolvendo as forças cósmicas, a lagoa do Abaeté torna-se uma referência-chave no viver cotidiano dos descendentes de africanos. É nesse cenário sagrado de Itapuã para os africano-brasileiros que são reverenciadas as Mães-d’água quer no mar ou em Abaeté.
ACRA: Fale-nos do impacto dos valores urbano-industriais contemporâneos em Itapuã.
DRA. NARCIMÁRIA: O impacto contemporâneo dos valores urbano-industriais que atravessam o universo sócio-existencial característico de Itapuã, também constituiu um dos desafios da pesquisa, a exemplo da pretensa “americanização urbanística” refletida na construção, da Estrada Velha do Aeroporto, Avenida Otávio Mangabeira, a rede de avenidas que se abrem a partir delas, e outras iniciativas da Razão de Estado que impuseram valores que interferiram de modo perverso no viver cotidiano dessa população africano-brasileira. As estratégias de resistência estabelecidas pela população, visando manter e legitimar seus valores socioexistenciais, e as perspectivas de futuro para as gerações sucessoras herdeiras desse patrimônio africano-brasileiro, denominado Itapuã, são também foco da nossa análise.
ACRA: Que aspectos das políticas de educação adotadas no Brasil e a repercussão em Itapuã você aborda.
DRA. NARCIMÁRIA: Abordamos aspectos sobre Educação, destacando referências do século XIX através da Escola Normal e seus desdobramentos; a Casa de Mestre, que chega a Itapuã no início do século XX; a implantação em Itapuã do ensino público de massa a partir dos anos cinqüenta e o impacto dessas políticas de Educação ensejadas para o Brasil e sua repercussão em Itapuã. Nesse caminhar desenvolvemos reflexões que identificam no contexto das políticas de Educação adotadas no Brasil e na Bahia, os projetos que marcam as alianças feitas pela elite dirigente da ditadura militar com os Estados Unidos, a exemplo do acordo MEC-USAID.
ACRA: Que tipo de contribuição a sua pesquisa tem dado ao ACRA?
DRA. NARCIMÁRIA: Nossa presença na ACRA tem sido realizar esforços para prover crianças e jovens de uma ambiência socioeducativa que fortaleça suas identidades culturais, permita-lhes o acesso a serviços de saúde, educação extensiva às famílias, estabelecendo um pólo irradiador de ações na área de Educação que tendem a aplacar, a anomia que historicamente atravessa o viver cotidiano da população.
As principais metas da nossa participação no CRA, além de legitimar aspectos fundamentais à compreensão de Itapuã, também se dedica a lidar com: o espaço-tempo que inauguraram o bairro através da presença indígena e africana; os vínculos de sociabilidade através da pesca referência original do modo de produção coletiva; a dimensão ético-estética da capoeira desdobramento da tradição africana e sua importância na estruturação das identidades de crianças e jovens; o impacto contemporâneo dos valores urbano-industriais que atravessam o viver cotidiano de Itapuã, bem como as perspectivas de futuro para as gerações sucessoras herdeiras desse patrimônio territorial denominado Itapuã.