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PRODESE E ACRA



VIDA QUE SEGUE...Uma
das principais bases de inspiração do PRODESE foi a Associação Crianças Raízes
do Abaeté-Acra,espaço institucional onde concebemos composições de linguagens
lúdicas e estéticas criadas para manter seu cotidiano.A Acra foi uma iniciativa
institucional criada no bairro de Itapuã no município de Salvador na Bahia, e
referência nacional como “ponto de cultura” reconhecido pelo Ministério da
Cultura. Essa Associação durante oito anos,proporcionou a crianças e jovens
descendentes de africanos e africanas,espaços socioeducativos que legitimassem
o patrimônio civilizatório dos seus antepassados.
A Acra em parceria com o Prodese
fomentou várias iniciativas institucionais,a exemplo de publicações,eventos
nacionais e internacionais,participações exitosas em
editais,concursos,oficinas,festivais,etc vinculadas a presença africana em
Itapuã e sua expansão através das formas de sociabilidade criadas pelos
pescadores,lavadeiras e ganhadeiras,que mantiveram a riqueza do patrimônio
africano e seu contínuo na Bahia e Brasil.É através desses vínculos de
comunalidade africana, que a ACRA desenvolveu suas atividades abrindo
perspectivas de valores e linguagens para que as , crianças tenham orgulho de
ser e pertencer as suas comunalidades.
Gostaríamos de registrar o nosso
agradecimento profundo a Associação Crianças Raízes do Abaeté(Acra),na pessoa
do seu Diretor Presidente professor Narciso José do Patrocínio e toda a sua
equipe de educadores, pela oportunidade de vivenciarmos uma duradoura e valiosa
parceria durante o período de 2005 a 2012,culminando com premiações de destaque
nacional e a composição de várias iniciativas de linguagens, que influenciaram
sobremaneira a alegria de viver e ser, de crianças e jovens do bairro de
Itapuã em Salvador na Bahia,Brasil.


sábado, 13 de dezembro de 2014

FOGUEIRA DE PENSAMENTOS E EMOÇÕES



                                                  Final de tarde na Lagoa do Abaeté 
                                                    Foto de Maurício Luz

Na quarta-feira dia 10/12 aconteceu a Fogueira Filosófica na Casa da Música.



                                                         Local da Fogueira
                                               Foto Maurício Luz

 Acendida a fogueira, o diretor Amadeu Alves, abriu o Encontro falando sobre as atividades desenvolvidas pela Casa da Música e especialmente a Fogueira Filosófica que acontece uma vez por mês na área externa do entorno da lagoa.



                        Amadeu Alves diretor da Casa da Música faz uma introdução do projeto
 Fogueira Filosófica
    Foto Maurício Luz


Após a introdução sobre a atividade,Amadeu Alves  apresentou os palestrantes Marco Aurélio Luz e Narcimária Luz .



                                   Amadeu Alves faz a apresentação dos palestrantes
                                                    Foto Maurício Luz

 Marco Aurélio Luz que iniciou dando boa noite a uma plateia que contou com a presença de integrantes das Ganhadeiras de Itapuã e do Redes África.
Começou filosofando sobre a importância da domesticação do fogo para a constituição da civilização, e sobretudo, a sociabilidade que se forma em volta da fogueira o estar  junto pensando e meditando sobre o mistério da existência, criando a angústia existencial que será aplacada pelas elaborações que fundam a religião.


                           Marco Aurélio Luz desenvolve seu pensamento e suas narrativas
                                                         Foto Marcelo Luz

É nessa interação em torno da fogueira  que transbordam os valores de origem e ancestralidade. Para os nagô, a origem é a cidade sagrada de Ile Ifé, a cidade que se expande e que guarda a marca de Oduduwa orixá da criação do mundo.
A arquitetura urbana de Ile Ifé, possui uma forma espiralada. No centro o mercado, fonte de sociabilidade, onde converge e se dispersa a população do reino de Exu Oloojá, o Senhor do Mercado. Em frente, o  palácio do rei Oni Ifé, com seus Conselhos e demais instituições que zelam pela organização política da cidade. Depois, em sentido espiralado, veem as moradias das famílias e linhagens conotando por seu posicionamento sua antiguidade e poder.
O orixá que constitui o princípio da organização da ¨pólis¨, é Xangô que também controla o poder do fogo.
No momento  dessa  explanação,fogo da fogueira aumentou dando um belo movimento com a cor avermelhada  bem acentuada.O palestrante é surpreendido pela intensidade do fogo, e logo aparece  alguém jogando água acalmando  o fogo. Kawo Kabiesilé!



                                                   O fogo participa da narrativa
                                                   Foto Marcelo Luz

Marco Aurélio prossegue sua explanação, contando o itan a história do cavalo de Xangô, que gera toda uma injustiça para com Oxalá, causando o enfraquecimento do reino.Oreino de Xangô só  e que  ressurge após a reparação da injustiça cometida a Oxalá.
O conto alude que Xangô, orixá da justiça, tem o poder de dirigir os seres humanos, mas não pode esquecer de honrar Oxalá que  criou  todos os ara aiye, os habitantes desse mundo que  dependem do ar para viver.Os  ara aiyê  estão sob o alá de Oxalá, o grande pano branco representando o ar que nos encobre e envolve.
Ainda no sentido de ilustrar os valores de origem e ancestralidade, Marco Aurélio se referiu as homenagens  ao  Caboclo como o ancestral fundador do território, feitas pelos   afro-brasileiros.É assim que ele narra a história do povo Nambikwara, que conta como o fogo domesticado saiu da natureza e se incorporou a sociedade.
 O conto é assim: Um tio leva a criança à floresta para ir aprendendo e ajudando a caçar, mas a criança  desobedece  e é largada em um ninho de filhotes de arara.  A arara não gosta, e ele é acolhido pela onça. Na toca da onça, descobre a sogra assando a carne nas brasas de uma fogueira. Ele acaba se desentendendo com a sogra da onça e foge pela mata com um tição na mão até  adentrar pela aldeia. Os guerreiros admirados perguntam sobre o tição. Vão a toca da onça e transportam o fogo para a aldeia, passando as labaredas uns para os outros. A onça perde o fogo. A última brasa , o sapo cuspiu e apagou.
 O conto apresentado por Marco Aurélio trata da passagem "do cru para o cozido" como se referiu  Lévi-Strauss em um dos seus livros. O conto é também a ilustração da passagem da criança, identificada com os animais, para a fase adulta integrando-se e contribuindo com a comunidade aldeã.
Outra narrativa apresentada pelo palestrante,foi auto coreográfico "Odé e os Orixá do Mato" de autoria de Mestre Didi que fez parte do currículo pluricultural da experiencia educacional  Mini Comunidade Oba Biyi. Nele , o princípio da caça que garante a sustentabilidade da humanidade, é constituído pelas ações do caçador provedor. Mas o conto adverte que o caçador não pode exceder de seus poderes, sob pena de exaurir a natureza e gerar o fracasso de sua função social de fornecer alimento para a comunidade.
Odé o caçador mais admirado do povo nagô, um certo dia não encontra caça. Mais três dias se passam e nada. Resolve visitar o babalawô, o pai do mistério para lhe aconselhar e saber o que estava havendo. O babalawô recomenda que Odé faça uma oferenda prescrita e depois disso ele voltaria a caçar com facilidade. Porém ele se empolga e excede no abate de animais.Os  espíritos da floresta vê o abuso de Odé,e intervém  assustando-o e nessa situação ele abandona a atividade de caçador.
 Muitas músicas fazem parte do auto e a plateia acompanhou com palmas os ritmos de cada uma.



                                                    Ao calor da alegria e da emoção
                                                     Foto Maurício Luz

Outra narrativa apresentada por Marco Aurélio ,foi o  auto coreográfico A Fuga de Tio Ajayi também de autoria de Mestre Didi.Nessa narrativa demonstrou como os valores da religião e a fé, foram e são capazes no caminhar da história, de ajudar a superar as vicissitudes da escravidão e da perseguição e encontrar a  liberdade.
A narrativa é entremeada com músicas recriadas pelaTroça Carnavalesca Pae Buruko, afoxé criado por Mestre Didi em 1935. O ritmo ijexá animou a participação dos presentes com palmas e admiração.
Ao final o grito de luta: AJAIY Ô, AJAIY Ô, AJAIY Ô !!!
Para encerrar, Marco cantou com emoção uma música de sua autoria saudando títulos sacerdotais de Mestre Didi:
 Baba Mogba Oga Oni Xango, Alapini e Assogba.
Depois dos aplausos, Amadeu convidou a professora Narcimária para iniciar sua participação.
Depois do boa noite, começou referindo-se ao conceito de Odara que significa útil e belo simultaneamente para dizer que a conquista do fogo não se restringia a técnica, mas está envolvida pela beleza encantadora das chamas em movimento. Foi a beleza do ritmo do fole do ferreiro Ogum atiçando as chamas, que  encantou Oxum patrona da música. Então o fogo da fogueira proporciona um encontro de beleza e encantamento. Disse que a lagoa do Abaeté como outras áreas da cidade de grandes riquezas naturais, envolvidas em história,cultura e afeto vêm sofrendo ameaças de destruição pela onda de especulação e ganância,ficando tudo  reduzido ao valor do dinheiro.
Com essa introdução,Narcimária começou a narrar o conto de Mestre Didi, "O Filho de Oxalá que se Chamava Dinheiro".
Dinheiro prepotente e desafiador invade o palácio de Oxalá afrontando a todos dizendo-se poderoso e que traria Iku, Morte submetido a ele.



                                            Público atento as narrativas
                                             Foto Maurício Luz

Depois de algumas peripécias Dinheiro arrasta Morte enredado numa rêde para se exibir para Oxalá e demais entidades. Oxalá diante de tamanha petulância o expulsa dali dizendo que daquele dia em diante Dinheiro  sempre estaria acompanhado de Morte.
A mensagem da narrativa é que Dinheiro tem muitos poderes e também é muito perigoso gerando muitas guerras e disputas por conta da cobiça.



                                 Narcimária Luz desenvolve as narrativas e interpretações
                                                    Foto Maurício Luz

O outro conto também de Mestre Didi, ela dedicou as crianças presentes.Foi o conto do "Macaco e a Onça" do tempo imaginal em que os animais falavam. 
Naquele tempo, o macaco andava abusando todo mundo causando muito alarido na floresta. Então Ossãiyn o conhecedor dos princípios da vegetação, dos mistérios das folhas mandou chamá-lo e aconselhou-o a parar com aquele comportamento e praticar uma boa ação, pois não estava conseguindo se concentrar nos preparos medicinais e de reforço espiritual.
O macaco se controlando constrangido aceitou a proposta e, logo viu uma oportunidade. A onça caiu numa armadilha de um fosso e há dias não conseguia sair. O macaco resolveu ajudá-la lançando o rabo para ela agarrar e subir. A onça muito agradeceu uma vez salva, mas não largava do rabo do macaco que pedia para soltá-lo. A onça pedia mais uma ajuda para que matasse a fome dela. O macaco então fez o maior alarido chamando a atenção de tudo que é bicho da floresta. Diante da situação resolveram pedir ao cágado que vinha ainda chegando para dar uma sábia decisão. Ele então pediu ao macaco que apresentasse as suas razões e em seguida pediu o aplauso de todos. Depois foi a vez da onça,que  quando foi também aplaudir soltou o rabo do macaco. Nesse instante ,tudo que é bicho se evadiu com o macaco. Restou o cágado que sofreu com a raiva da onça que de tanta patada ficou com o casco quebrado contando depois com a paciente colaboração das formigas que colou pedaço por pedaço do seu casco.
A mensagem do conto de Mestre Didi é que:"nunca pagam um bem com outro bem,e quando se fizer um  bem não se deve esperar recompensa e sim confiar na providência divina".
Muitas vezes que se faz um bem a alguém não se deve esperar por um reconhecimento de gratidão, acontece assim nas nossas vidas.
Após essa narrativa, Narcimária  propôs uma ¨brincadeira¨, distribuindo tiras com provérbios entre os presentes solicitando que quem quisesse fosse ao microfone interpretá-lo.



                                        Narcimária propõe a caixa de provérbios
                                                  Foto Maurício Luz

Foi uma forma de ilustrar um outro modo de transmitir ensinamentos presente na vida cotidiana dos africanos e entre nós.


                                                 
 Leitura e interpretação de provérbios
                                                          Foto Marcelo Luz

Depois de muitos se divertirem ela encerrou a apresentação recebendo muitos aplausos.


                                    Outro candidato a leitura e interpretação de provérbios
                                                         Foto Marcelo Luz

Amadeu após as explanações dos palestrantes abriu um espaço para troca de ideias com a plateia.Uma das perguntas dirigida a Narcimária, foi  sobre a localização do histórico quilombo Buraco do Tatu de Itapuã. Ela respondeu que mais importante que o território cartográfico dos arquivos de polícia que orientam os historiadores acadêmicos, é perceber a territorialização que atravessa o tempo e o espaço, e nos chega agora como um legado de uma luta pela liberdade.
Encerrada o momento de perguntas,Amadeu apresentou as atrações musicais com os grupos Redes África  e Ganhadeiras de Itapuã. 


                                                         Grupo Redes África 
                                                Foto Marcelo Luz

Muita beleza e encantamento envolveu a apresentação que foi entremeada por outras participações de récitas de poesia com  Everton, Lauro  e Laurindo Dourado e  Valdir da Escola Unidos de Itapuã compositor  de um samba enredo em homenagem aos orixás que regem a Lagoa do Abaeté.


                                                               Ganhadeiras de Itapuã 
                                                        Foto Marcelo Luz

Então Amadeu pediu a Narcimária e a Marco que fizessem suas conclusões finais.
Narcimária falou da emoção de estar ali naquele momento vivenciando ternas lembranças de sua infância e juventude em Itapuã,inclusive quando morava em frente a Lagoa. Estava então muito gratificada e agradecia a atenção de todos e saudou o momento proporcionado pela Casa da Música dizendo:ODARA PUPO!
Marco Aurélio enalteceu o legado de Mestre Didi Alapini, supremo sacerdote do culto aos ancestrais Baba Egun, e pediu para cantar um samba enredo de sua autoria em homenageando o Alapini encerrando sua participação.
Amadeu  e Joélia coordenadora da Redes África,solicitaram a todos os presentes que os acompanhassem a um descampado próximo a Casa da Música,pedindo a todos que dessem as mãos formando uma grande roda. Foi então que Joélia  entoa uma canção celebrando as emoções e saberes compartilhados durante a noite. Amadeu  e Joélia pediram que Narcimária e Marco fossem para o centro da roda e lá eles dançaram ao sabor do canto que circulava na roda emocionando-os.
 Ao final ainda envoltos em muita emoção presente entre todos na roda, houve grande confraternização com abraços, agradecimentos e votos de proteção espiritual.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

A VOZ, E A VEZ DO MORRO

Por Narcimária Correia do Patrocínio Luz


É ao sabor do ritmo e cadência do samba adornado pela polirritmia percussiva da orquestra africano-brasileira que destaco aqui, de modo muito especial, a “Voz do Morro”, composição de Zé Kéti (1952). Outros sambas importantes que nos motivam a pensar o Brasil: “O Morro não tem Vez” (1963) de Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim; “Opinião” (1964) de Zé Keti; “Alvorada” (1968) de Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho.
São sambas que se tornaram legendas na história do Brasil por várias razões:  a primeira por contar os modos de insurgência das populações negras e sua competência para fundar territorialidades que recusam o recalque à sua alteridade civilizatória; a segunda pela poesia que nos emociona e nos leva a dramatizar por meio da dança e da ginga as situações que carregam a pulsão de sociabilidade africano-brasileira.
O samba apresenta narrativas, desdobramentos das células comunitárias, responsáveis pela origem das cidades, a arquitetura compondo em seu traçado urbano elos de ancestralidade, cosmogonias, hierarquias e instituições.



     Cartola integra a  Ala de Frente da Mangueira 


“Alvorada lá no morro/ Que beleza/ Ninguém chora/ Não há tristeza/ Ninguém sente dissabor/ O sol colorindo é tão lindo/ É tão lindo/ E a natureza sorrindo/ Tingindo, tingindo” (Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Belo).
É preciso chamar a atenção do leitor para a necessidade de transcender o discurso geográfico, mensurável e estático que, esquadrinhando os espaços, diz o que é, e deve ser o “morro”. O morro aqui é uma metáfora! Em cena estão todas as territorialidades no Brasil imantadas pelo patrimônio de valores e linguagens africano-brasileiras.



                                             Pintura de Heitor dos Prazeres

“Podem me prender/ Podem me bater/ Podem, até deixar-me sem comer/ Que eu não mudo de opinião/ Daqui do morro/ Eu não saio, não.” ( Zé Kéti)
 De um lado a geografia e o traçado urbano eminentemente africano-brasileiro com suas instituições e hierarquias; de outro o asfalto (parafraseando Marco Aurélio Luz) com a sua a geografia civilizatória racista e seu traçado urbano asséptico produtivista, voltado para a acumulação de capital.



                                                                   Zé Keti, Cidadão Samba

 “A vida não é só isso que se vê, é um pouco mais/Que os olhos não conseguem perceber, e as mãos não ousam tocar, que os pés recusam pisar/Sei lá não sei, sei lá não sei não/ Não sei se toda beleza de que lhes falo sai tão-somente do meu coração/Em Mangueira a poesia num sobe e desce constante, anda descalço ensinando um modo novo de a gente viver, de cantar, de sonhar, de vencer/ Sei lá não sei, sei lá não sei não, a Mangueira é tão grande que nem tem explicação.” ( Hermínio Belo de Carvalho e Paulinho da Viola)



                                                               Paulinho da Viola

Todos os sambas que destaquei falam das tensões e conflitos entre a singularidade africano-brasileira e as políticas genocidas e de abandono que desencadeiam uma dinâmica da violência que vem ceifando a vida de milhares de homens, mulheres, crianças e jovens.
“Escravo no mundo em que estou/ Escravo no reino em que sou/ Mas acorrentado ninguém pode amar/ Mas acorrentado ninguém pode amar/ Chora, mas chora rindo / Porque é valente/ E nunca se deixa quebrar/ Ah, ama, o morro ama/ Um amor aflito, um amor bonito/ Que pede outra história.” ( Carlos Lyra)
Apesar de todas essas agressões cotidianas, não esqueçamos a imponência e altivez do povo negro que não abre mão do direito de ser e viver suas instituições como as “pequenas Áfricas” no Rio de Janeiro, como se referiu Heitor dos Prazeres às comunalidades sob a liderança feminina das baianas como Tia Ciata.



                                                                Heitor dos Prazeres
“Eu sou o samba/ A voz do morro sou eu mesmo sim senhor/ Quero mostrar ao mundo que tenho valor/ Eu sou o rei do terreiro/ Eu sou o samba/ Sou eu quem levo a alegria/ Para milhões de corações brasileiros/ Salve o samba, queremos samba/ Quem está pedindo é a voz do povo de um país/ Salve o samba, queremos samba/ Essa melodia de um Brasil feliz.” ( Zé Kéti)
O que isso significa? A institucionalização de políticas públicas que contemplem direitos coletivos capazes de estabelecer espaços institucionais de combate ao racismo e suas engrenagens ideológicas, que tendem a tragar a vida e submeter as populações negras a situações marcadas por muita dor e humilhação.



Então, cantemos a “voz do morro” num coro uníssono, fazendo repercutir entre gerações o respeito aos valores das comunalidades africano brasileiras e o direito de ser e viver suas instituições.
“O morro não tem vez/ E o que ele fez já foi demais/ Mas olhem bem vocês/ Quando derem vez ao morro/ Toda a cidade vai cantar/ Samba pede passagem/ Morro quer se mostrar/ Abram alas pro morro/ Tamborim vai falar/ É um, é dois, é três/ É cem, é mil!”(Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim)

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Narcimária Luz é  Doutora em Educação e Coordenadora do Programa Descolonização e Educação-PRODESE
Fotos disponíveis na internet




segunda-feira, 10 de novembro de 2014

A POPULAÇÃO AFRICANA E SEUS DESCENDENTES: A INCLUSÃO DO TEMA NO SISTEMA DE ENSINO



                                                                                     por Narcimária Luz

Os africanos e seus descendentes na perspectiva do mercantilismo escravista estão reduzidas a abordagem da escravidão, seus ciclos econômicos e as ¨rotas de escravo¨, onde a população africana aparece “[...] ao nível econômico, é apenas considerado força de trabalho a ser explorada, ´máquina econômica´; [...] a nível jurídico-político, é classificada como semovente, isto é, equiparados a bois, cavalos, etc., portanto sem nenhum direito, [...] ao nível ideológico, há um tremendo esforço para desculturalizá-la e representa-la como boçal, rude, primitiva e atendendo aos demais níveis: animal” (LUZ, 1983, p.67).
Aqui vale a pena parar para fazer alguns comentários urgentes sobre a representação do africano no contexto colonial. Se não vejamos: a história impressa e difundida pela Razão de Estado e as chefarias, através dos séculos, não poupam as crianças e jovens africano-brasileiros, submetendo-os ao discurso que representa os seus antepassados via pretensa identidade jurídica de escravos. Acreditamos que nosso mosaico se dedica a anunciar para essas gerações de descendência africana saibam que seus antepassados,nunca assumiram a identidade de escravos!
A ideologia oficial etnocêntrico-evolucionista institucionalizada no âmbito escolar, sugere as crianças, adolescentes e jovens que a população africana no contexto escravista incorporou a passividade, ignorância, desleixo, conformismo...
Para esses descendentes de africanos o constrangimento, dor e angústia afloram nos capítulos e /ou sessões que tratam da escravidão. Aliás o único espaço permitido oficialmente para a África e sua presença no brasil.
Os africanos e seus descendentes nessa abordagem escravista, lugar comum e equivocado do currículo escolar, aparecem como incapazes de insurgência, iniciativas políticas vigorosas e que deveriam ter destaque especial na escola.
Desde o século XVI os africanos fomentam insurgências face às políticas de genocídio e embranquecimento, tentando com afinco estabelecer condições para afirmar o seu direito ‘a existência e expandir o seu patrimônio civilizatório nas Américas. A riqueza e complexidade dessas insurgências estão censuradas na escola.
Vale a pena destacar alguns fatos histórico-políticos que magnificam a presença africana nas Américas, a exemplo dos valores quilombolas que estabelecem a independência do Haiti, derrotando o exército de Napoleão.



Dessalines líder da independência do Haiti. Imagem disponível na internet.




Comemoração da vitória da luta de independência do Haiti. Imagem disponível na internet.

No contexto da independência do Haiti é interessante o registro de que “[...] os negros festejaram a vitória, os quilombos constituindo a sociedade nacional. Os valores da sociedade africana se enraizavam e se expandiam nas Américas, na Afro-América. Nesse contexto, a terra possui uma dimensão sagrada. Na cosmogonia negro-africana, o ciclo da vida, o ritmo do universo está ligados à fertilidade da terra, à fertilidade dos grãos, no mistério do renascimento, da restituição e da gestação. A floresta, inesgotável fonte de vida, e a terra trabalhada, que proporciona abundantes e múltiplas colheitas, proporcionando o alimento, não estão dissociadas do culto aos ancestrais e aos voduns. A terra contém o mistério do além: é para ela que caminhamos e seremos restituídos, completando nossos destinos.” (LUZ, 2002, P.39)




Retomada da memória do Quilombo dos Palmares.Subida da Serra da Barriga. Mãe Hilda Gitolu e Abdias Nascimento, Passarinho e outros. Imagem disponível na internet.



Comemoração recente no Parque do Quilombo dos Palmares. Imagem disponível na internet.


No Brasil Palmares refletiu de modo extraordinário as estratégias de afirmação socioexistencial africana no contexto do mercantilismo escravista abrigando uma imensa ”[...] população para a época, de mais de 30 mil habitantes, espalhados por diversas comunidades que absorveram africanos de distintas origens, aborígines de diversas aldeias e brancos de variadas nações européias. [...] A afirmação palmarina contrariava a estrutura social colonial baseada na guerra terrorista de apreensão e tráfico de seres humanos, a exploração do trabalho forçado sob tortura (característica do regime europeu da escravidão), a destruição de florestas para estratégias bélicas de desocultar o inimigo, e para grandes plantações de monocultura, cujos produtos eram enviados para as metrópoles coloniais a baixo custo, onde as aspirações à acumulação incessante de capital serviam para se alcançar o poder e a glória. [...] Palmares difundiu-se no Brasil em um sem-número de quilombos que garantiram a afirmação socioexistencial do povo negro e seus valores civilizatórios. Muito antes assim da chamada abolição da escravatura, proclamada a Lei Áurea, os negros já eram livres” (LUZ, 2002, P.28)

Outra perspectiva perversa é a historiografia eivada da leitura marxista, que procura Outra perspectiva perversa é a historiografia eivada da leitura marxista, que procura afirmar que: [...] os escravos não tinham consciência de classe sofriam e reagiam à sua miséria, mas não tinham consciência de classe porque não estava integrados à produção-era uma propriedade de seu senhor. A escravidão deturpou e inibiu a consciência crítica do escravo,que passou a agir e a ser estritamente o que era:escravo,massacrado física e psicologicamente pelos padrões das classes dominantes.”(CHIAVENATO,Júlio José.p.144)
O autor não entende que o africano jamais abdicou de sua identidade original e não aceitou a identidade e a consciência de classe de escravo, e lutou de todos as formas para manter viva as suas instituições mantendo sua alteridade civilizatória.

“A insuficiência do instrumento marxista também se caracteriza pela dificuldade de aceitação da alteridade, e nesse ponto o evolucionismo burguês com sua idéia de riqueza e de progresso foi absorvida pela ideologia "proletária"; o socialismo materialista como o capitalismo, e o comunismo, são englobados na categoria de "evolução" ou de "etapa superior" da organização social. A dificuldade na percepção da alteridade, a repressão à admissão do outro embutida na mecânica "marxista", baseada no conceito de luta de classes como "motor da história", fica evidente neste texto de MARX, (1966, p. 651):
 ‘Um negro é um negro; não é senão em certas condições que ele se torna escravo. Esta máquina, por exemplo, é uma máquina de fiar algodão. É somente em determinadas condições que ela se torna capital. Fora dessas condições, ela é tão pouco capital como o ouro por si mesmo seria moeda, do mesmo modo que o açúcar não é o preço do açúcar... O capital é uma relação de produção. É uma relação de produção histórica. ’
Ora, se por um lado o texto se caracteriza por qualificar as relações de produção historicamente determinadas como a base do valor, por outro ele caracteriza, através da tautologia, "um negro é um negro" o recalque à alteridade, pois que resta ao negro, nesse discurso, o mesmo destino das outras coisas, isto é, máquina e açúcar, que fora das relações capitalistas escravistas seriam máquinas e açúcar, simplesmente.
Essa tautologia, um negro é um negro, encobre a identidade negra que se alicerça e se estrutura através dos valores e da linguagem de um processo civilizatório milenar, muito anterior ao escravismo do século XVI. .(LUZ, 1995,80)

E mais,

“No discurso marxista, esse espaço provocado por esse recalcamento vai ser preenchido por um deslocamento de outra cena que mascarará o real processo de acumulação primitiva capitalista de um lado e a alteridade civilizatória negra de outro”.
É nesta cena que atuarão, muitas vezes, como forma de recalcamento, o conceito de mais-valia aplicado às relações burguesia/proletariado, acentuadas como sendo à base de constituição ou exploração capitalista, e o de consciência de classe aliado ao de alienação, muitas vezes para justificar o "verdadeiro homem do mundo novo socialista", desalienado e assumindo essa consciência de classe.
A noção de classe passa a operar então como elemento de representação recalcada da verdadeira ordem de exploração e operação mundial, que é, na verdade, a do mundo branco sobre os não brancos, ou ainda dos valores do continente europeu sobre os valores das outras civilizações do globo; que pode então ser percebida mais do que simples exploração, um etnocídio”. (LUZ, 1995,80)


Aqui vale a pena lembrar o universo de sabedoria palenques ou quilombolas da guerra dos dez anos pela independência de Cuba, protagonizada por africanos sob a liderança de Antônio Maceo.




Antonio Maceo líder das lutas de independência de Cuba. Imagem disponível na internet.


“[...] Para Maceo, a luta da independência e o fim da escravidão eram uma coisa só. Essa luta era conseqüência natural dos esforços de libertação dos palenques, que desgastaram os espanhóis durante todo o período colonial. Uma luta heróica em que sobressaíam os chefes palenques Cobas, Augustin ou Gallo; Moa Tiguabos e outros que o povo negro cubano guarda na sua história. [...] Os palenques ocupavam significativa área liberta nas montanhas da ilha e ameaçavam banir os espanhóis, como acontecera no Haiti. O exército de Maceo, apoiado pelos palenques, acabava com a escravidão nas áreas em que vencia os espanhóis. esse desdobramento da luta anticolonialista dos palenques empurrou a burguesia (inclusive a pequena burguesia) a ingressar no processo de independência.” (LUZ, 2002, P.43)

 Seguindo as mesmas referências de estratégias dos palenques no século XIX, utilizando as montanhas da ilha, em 1959 a revolução cubana sob a liderança de Fidel Castro os camponeses que formavam a base de apoio da guerrilha consegue retirar do poder o ditador Batista.
Vale a pena incluir nessa perspectiva sobre Cuba o comentário de Wole Soyinka nigeriano, Prêmio Nobel de Literatura:
“[...] Ogum por sua parte se torna não só o deus da guerra, mas o deus da revolução no contexto mais contemporâneo-e isto não se dá meramente na África, mas nas Américas, para onde seu culto se espalhou. Como os suportes católicos romanos do regime de batista em Cuba descobriram demasiadamente tarde, deviam ter-se preocupado menos com Karl Marx e mais com Ogum...” (LUZ, 2002, P.45)




Espada do orixá Ogun no Daomey, foto de Pierre Verger. Disponível em fernandodeogum.blogspot.com.br 

Continuando a nossa reflexão ainda temos que considerar uma outra abordagem apresentada a partir da bacia semântica neocolonial e imperialista que alimenta o discurso midiático que se estende à escola. A ênfase desse discurso sobre a África é a miséria absoluta,completamente destruída,imersa a barbárie e o pior de tudo,é  que atribuem aos povos africanos a responsabilidade pela anomia que os aflige.
Cabe aqui uma ilustração que identificamos num livro de ensino Fundamental, 3ª série. Nele a noção de axé, princípio dinamizador fundamental à cosmogonia e linguagem litúrgica do povo nagô, está submetida à banalização, exotismo e total esvaziamento do universo simbólico do contínuo civilizatório africano nas Américas.
A ênfase do conteúdo que introduz um dos capítulos com o título: ”Axé Bahia!”. A autora trata de forma metonímica e na perspectiva colonial a  Bahia,através da analítica da finitude do mapa geográfico(clima,relevo,vegetação,fronteiras,hidrografia);sugere que as crianças investiguem sobre os brasões,armas,bandeira,hino,símbolos do município de Salvador e da Bahia; escreva um livro ilustrado sobre Joana Angélica,Maria Quitéria,Ana Nery,castro Alves e Ruy Barbosa;por fim,sugere que os alunos façam um projeto denominado “Bahia a terra mágica do axé”.



As Ganhadeiras de Itapuã se apresentam no Festival Awon Eso do PRODESE, Programa de Descolonização e Educação. Foto PRODESE




Grupo Abolição promove roda de capoeira na ACRA Associação Crianças Raízes do Abaeté. Foto ACRA.
 Percebam que não está sendo considerado o conhecimento da episteme africano-brasileira para abordar a territorialidade Bahia, e transcender o discurso produtivista e consumista que insiste no projeto da Bahia” moderna” mediada pela ordem e progresso imperialista. Os símbolos enaltecidos correspondem a ética e estética do patrimônio ibérico-colonial.Entre as personalidades em destaque não estão incluídas as lideranças exponenciais das comunalidades de base africana na Bahia.
A Bahia vista como “mágica” reflete as projeções do exotismo e divertimento turístico, produto vendido principalmente para o exterior de forma abusiva, caricaturando completamente o nosso solo de origem.
Para as crianças de comunalidades africano-brasileiras, encontrar o princípio de axé no âmbito da escola, e vê-lo banalizado e de forma desrespeitosa é uma agressão!
Nas comunalidades africano-brasileiras a religião atravessa toda a dinâmica de organização social, e nesse âmbito a noção nagô de axé estabelece. 



Exposição de esculturas de Marco Aurélio Luz em evento do PRODESE. Foto PRODESE



Apresentação do auto coreográfico A Chuva dos Poderes de Mestre Didi na Mini Comunidade Oba Biyi.  Foto M. A. Luz

“[...] uma relação de constante tensão dialética entre esse mundo e o além, entre o aiyê e o orun, conforme a conceituação nagô”.
A comunicação entre esses dois mundos se dá através de uma concepção vitalista do mundo, que se caracteriza pelo conceito de axé para os nagôs ou muntu para os congo. Axé é um conceito que exprime a idéia de forças circulantes capazes de engendrar a criação e a expansão da vida. O ciclo vital caracteriza o ritmo do universo por sucessivos processos de renascimentos.
Ritualmente, o ciclo vital culmina com as cerimônias de axexé. Axexé é origem das origens, e é quando se celebra a passagem de um ara-aiyê ser humano habitante do aiyê para o orum Esta passagem caracteriza uma elaboração de morte que compreende o conceito de restituição. "Vai-se para dar lugar a outros", diz o ditado. Uma vez restituídas de axé as forças que regem o universo são capazes de engendrar novos nascimentos e expandir a criação. ”(LUZ,1995,ps34 e35)

Que educadores são esses? Até quando nossos filhos ficarão submetidos a professores destituídos de uma compreensão dos povos cujas civilizações fundam nossa territorialidade?
Aqui cabe a lembrança da música de Gilberto Gil e Gegê, Tempo Rei que serve como um alerta aos currículos instituídos a partir da bacia semântica “greco-romana” e sua influência na constituição do ocidente: “...de um momento para o outro poderá não mais fundar nem gregos nem baianos: (grifos nossos).
Certa vez realizei um estudo envolvendo futuras pedagogas baianas visando identificar se ao longo de sua formação, haviam elaborado um discurso próprio ancorado à territorialidade baiana.
Apesar de suspeitarmos de antemão da não existência de uma elaboração teórico-metodológica original enriquecida pelo ethos envolvente, ficamos perplexos ao constatarmos que os futuros pedagogos sabiam repetir de forma metonímica sem nenhuma emoção, teorias e jargões técnicos da territorialidade euro americana; e nada, nada mesmo sabiam dizer ou expressar, sobre a nossa realidade de base africana. E o pior, não tinham adquirido competências para extrair da territorialidade baiana, elementos pedagógicos necessários ao fortalecimento da identidade infanto-juvenil da nossa população.







Imagens do evento do PRODESE

Acreditamos que essa é a tendência histórico-política dos cursos de formação de educadores, principalmente pelo impacto contemporâneo da herança colonial que ainda estabelece os valores do currículo na formação de educadores.


















terça-feira, 28 de outubro de 2014

O MUTANTE EGÍPCIO Remember the Time, TV de Cor

         
Por Marco Aurélio Luz


Em artigo anterior publicado na “A Tarde Cultural”, realizamos algumas reflexões sobre o clip de Michael Jackson, Black or White. Naquela ocasião chamamos a atenção sobre duas partes da narrativa, a primeira que se referia a diversidade humana, compreendendo as diferenças culturais e suas formas de comunicação, a segunda que indicava que para se perceber essa multiplicidade de alteridades era preciso quebrar as vidraças da redoma do paradigma do Estado ou sistema social da modernidade uno, unívoco e unidimensional, positivista, consumista e totalizante.
            Essa segunda parte, uma ousada coreografia, foi posteriormente censurada pela TV.
            Mas depois do quebra-quebra não surge a anomia, a desordem ou o caos. Ao contrário emerge com o clip Remember the time, o novo com a projeção dionisíaca da temporalidade pós-moderna, apontando para valores antiquíssimos das civilizações humanas, alimentando a força imaginal constituinte de novas utopias.
            Uma das características da pós-modernidade é a emergência da afirmação da diversidade humana e da pluralidade cultural, mesmo que essa emergência venha acompanhada de reações como ocorre com alguns movimentos intransigentes como por exemplo na França e na Alemanha.
            Portanto esse novo, já foi aludido pelo clip Black or White nas imagens das crianças brancas que metaforicamente pontuam a nova esperança de um possível verdadeiro ecumenismo.
Em Remember the Time também elas estão lá, ao lado de Michael Jackson assistindo as filmagens.



Egito Antigo
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Imagem disponível em michael_jackson_remember_the_time_1-9247
            
O novo é portanto a crença num mundo mutante, mas ao mesmo tempo de valores imperecíveis corno pode se decodificar da presença do gato e o ouro, matiz dourado que transluz na encenação e abre a narrativa do clip.
            O ouro neste contexto não é símbolo de riqueza entesourada traduzido em contabilidades monetárias, mas, por ser metal nobre, imperecível tange a simbolização da dimensão inexplicável da eternidade do existir, gema de ouro.
            Luminicencias douradas marcam essa coreografia que conta uma estória do Egito faraônico. Um faraó que querendo agradar sua esposa entediada oferece-lhe a apresentação de algumas atrações espetaculares para que se divirta. Todavia ele perde o controle quando um personagem misterioso e sedutor desperta nela a paixão. Com seus soldados ele persegue o personagem que acuado some no invisível.
            Poderíamos perguntar, conforme se faz com as fábulas de Esopo, qual a moral da estória?
            E responderíamos primeiramente realçando o fato de todos os atores-personagens serem negros. Isto porque durante anos de colonialismo, o Egito faraônico foi representado, de forma deformada, embranquecido..., especialmente há alguns anos atrás pela indústria do cinema de Hollywood.
            Num tempo, que ainda se prolonga, em que as ideologias racistas e positivistas procuravam apresentar os povos não-brancos como inferiores através de sofisticadas teorias, o Egito faraônico, berço das civilizações, causava um impacto que precisava ser silenciado.
       


Imagem disponível em egito_antigo httpmisteriosantigos.50webs.com
  



Egito Antigo

 Imagem disponível em black20 pharaohhttp://kamugere.wordpress.com/


Imagem disponível em http://africanhistory-histoireafricaine.com/

Entretanto, os movimentos de libertação do colonialismo e do imperialismo trouxeram em seu contexto intelectuais como Cheikh Anta Diop do Senegal, que dedicou-se em seus trabalhos em resgatar a veracidade étnica negra do Egito faraônico, constituído no baixo Egito e num tempo muito anterior as presenças de povos semíticos e indo-europeus e cuja formação étnica era totalmente distinta da atual população mestiça árabe-muçulmana que caracteriza o país na atualidade. 



Imagem disponível em http://diop-docteur-HC http://www.sangonet.com/



   Cabe acrescentar, que Diop e outros intelectuais provocaram significativa revisão das influências do Egito faraônico em diversos continentes, não só na África, na Ásia e na Europa, mas também na América, comprovando relações entre a civilização Egípcia e a dos Maia, Azteca e Inca, ocorridas há milênios.


Egito Antigo

 Imagem disponível em http://19419833e7a045a7705e1110.Lhttp://www.redeangola.info/

Portanto é nesse Egito negro faraônico resgatado que se desenvolve a dramatização da narrativa de Remember the Time.

Egito Antigo
Imagem disponível em http://ppretaegorda.blogspot.com.br


Além disso porém, a narrativa possui um significado transcendental.
 É que diante das atrações espetaculares, a rainha não se comove nem com a destreza do malabarista, nem com o poder mágico do engolidor de fogo. Ela se encanta porém com o personagem entidade, que semeia grãos, some e reaparece com nova forma. Aquele que é capaz de abranger com sua ação os planos do visível é do invisível. O que tangencia o mistério da gênese e portanto da ancestralidade.
            Sabemos que em geral na África e nas Américas negras, os papéis sociais masculinos e femininos são diferenciados, todavia complementares. Enquanto os homens estão mais voltados para a organização social comunitária, as mulheres estão voltadas para gerir o equilíbrio e a harmonia cósmica uma vez tendo o poder sagrado de lidar com ás forças da natureza.
            O poder feminino está ligado ao processo de gestação, a capacidade de transformação do corpo da mulher, promovendo o desenvolvimento de um novo ser e que a aproxima com as representações dos mistérios do interior da terra. O mistério da sucessão de linhagens, o eterno ciclo de nascimento e morte, envolve o desejo desperto de um poder feminino representado na narrativa por um beijo do personagem etéreo na rainha, com as pirâmides, que guardam os sárcófagos faraônicos, na paisagem do horizonte da janela.
            Pirâmides que representam a força de uma civilização alicerçada no culto aos ancestrais veneráveis, corrente ininterrupta de vida e morte que garantem o estarmos hoje aqui e agora... Na África e nas Américas negra, o culto aos ancestrais tem a mesma pujança na constituição das alianças comunitárias.
            Todavia esse desejo e poder despertado na rainha preocupa o faraó, e como o lúdico não está separado do sagrado, segue-se na narrativa a perseguição, o esconde-esconde, até que o personagem misterioso é cercado pelos guardiões do palácio e então some num redemoinho de pó de ouro; estava aqui, não está mais, visível/invisível, estará sempre...
            Esta elaboração de aspectos transcendentais da existência, como indicou Muniz Sodré no livro Samba o Dono do Corpo está representado na música negra pela síncopa, a presença da ausência, o vazio, a batida que falta; presente, ausente, presente num tempo mais forte.
            Englobar dimensões múltiplas da existência, ou do existir, o visível e o invisível é característica da cultura negra, elaborações de conhecimentos envoltos numa dimensão estética. Odara, é um conceito nagô onde o útil e o belo constituem-se de forma única, bom e bonito é uma coisa só. Essa dimensão estética do saber recorre a diversos códigos complementares que apóiam e expressam a narrativa. Dança, canto, música, dramatização, vestuário, coreografia, cenário, etc. se unem na harmonia da linguagem negra, e é o que Michael Jackson realiza na TV.
            Assim como o negro americano já fizera com os instrumentos brancos criando o jazz inicia-se um processo de Tv de cor, pós-moderna.

Notas
* Publicado no Caderno Cultural do Jornal A Tarde, 1992.
 Publicado no livro;  http://www.cairu.br/biblioteca/arquivos/Diversidade_Cultural/Cultura_negra_tempos_pos_modernos.pdf