Embora uma das
características estruturantes da tradição africana seja o culto aos ancestrais,
cuja origem se perde na noite dos tempos, não deixa de ser significativo que a
sociedade oficial , através da prefeitura ,
outorgue ao Mestre Didi , um sacerdote – artista , Alapini e Assogbá , supremo
sacerdote do culto aos ancestrais masculinos , os Baba Egun , e também sacerdote supremo do orixá do panteão
da terra , Obaluaiyê , a responsabilidade da elaboração do cetro que homenageia
a ancestralidade africana responsável pelo legado civilizatório que marca
profundamente nossa identidade.
No Brasil , o culto aos
ancestres africanos possui diversas
matrizes litúrgicas e rituais adaptadas
a nossa terra e que constituem um dos pilares da tradição , que vai das congadas aos cultos de Baba Egun , passando
pela genuinidade dos Caboclos, Preto- Velhos , e dos Inkices , Bakuros , Voduns
, etc constituindo a cultura
predominante que alimenta a alma e a espiritualidade brasileira.Os cultos aos ancestres ora
se referem a linhagens fundadoras de reinos e cidades e mantenedoras da
continuidade dos valores civilizatórios , transmitindo seu precioso legado as
novas gerações , baluartes na defesa e manutenção de sua identidade própria ,
ora se referem as origens da própria humanidade , transcendendo a temporalidade
histórica para elaborar o mistério da gênese nos momentos mais profundos da
liturgia.Na primeira referência , a
temporalidade histórica tem como ponto inicial as origens africanas e sua
ancoragem nas Américas e passa pelo período recente de lutas de libertação e
resistências à escravidão européia, enfim , contra o sistema colonial mercantil
escravista ,para alcançar os diais atuais, em que a tradição preservada ,
alimenta a comunalidade e a sociabilidade africano-brasileira, que se desdobra
, perpassando de forma diversa a totalidade do tecido social componente da
identidade nacional.
Localizado de forma a ter
como fundo a linha do horizonte infinito do oceano em direção a África , ambas
situações estão contempladas na simbologia da historicidade expressa no Opô
Baba N’Lawa . É que a nossa ancestralidade é homenageada não só pela riquíssima
herança cultural trazida pelos africanos para as Américas, mas também porque a
origem da humanidade , do homo sapiens
tal qual somos, está na própria África.
Emergindo do solo , a lança projetada em direção a
atmosfera , celebra a continuidade da tradição que por sua vez garante a
continuidade da humanidade. Sentinela dos valores da tradição garantidora da
circulação de axé, da força vital , os ancestres são depositários e guardiões
da sabedoria capaz de proporcionar a expansão do existir.Os ancestres portanto ,
são a fonte de onde flui a continuidade
da tradição. Na tradição nagô são sempre invocados e homenageados em todos os
ritos precedendo ou iniciando a liturgia que mobiliza as relações entre o aiyê,
esse mundo , e o orun, o além.
Assim como na cosmogonia nagô , os orixá, forças da
natureza que governam o universo são classificados por princípios femininos e
masculinos, também os ancestres têm ritualmente essa qualificação.No Opô Baba N’Lawa , os dois princípios e poderes estão contemplados.
Além da lança de forma fálica e com a
representação em bronze de sua textura de feixe de taliscas de mariwo
caracterizando o poder da ancestralidade masculina, o interior da terra
ventre fecundado, de onde emerge o Opô
caracteriza o poder da ancestralidade feminina. Os dois passarinhos em ambos os
lados da peça por sua vez representam o poder de progenitura, resultante do
movimento e da interação entre os princípios.
Mestre Didi e a escultura Opa Exin
Foto: disponível na internet
Na forma original das recriações de Mestre Didi , a
textura de suas esculturas segue os elementos simbólicos dos orixá do panteão
da terra especificamente o Xaxará e o Ibiri. Assim, as taliscas de palmeira
mariwo, os búzios , couro , contas e cores , fazem parte das obras recriadas.
Na presente peça, foi constituída uma réplica em bronze, material capaz de
melhor resistir as intempéries da exposição em praça pública. Todavia convém
sublinhar que o bronze retorna a arcaica técnica de cêra perdida ,
característica do acervo das famosas
esculturas do patrimônio cultural de Ilê Ifé , a cidade sagrada dos yorubá.
Opa Exin ati Eiye Meji. Cetro representando a ancestralidade que assegura descendência, expansão e continuidade.Reprodução da escultura de Mestre Didi no Pelourinho 1983.Criação de Óscar Ramos.
foto: M.A. Luz
Em 1974 , participando do Iº
Seminário sobre o Nordeste: Preservação do Patrimônio Histórico e
Artístico , realizado em Salvador, Juana Elbein dos Santos realizou a
comunicação Conscientização do Patrimônio Negro-Brasileiro
, chamando a atenção para o fato de que a ausência de quaisquer políticas de
preservação , se constituía num desdobramento do
recalcamento de projeções coloniais escravistas. Alertava para pontos cruciais que pouco a pouco , no
decorrer das últimas décadas alguns ,
foram devidamente contemplados como:
Inventário de peças museáveis da arte negro-brasileira;
Inventário e as homenagens aos quilombos , do passado e do presente;
Desobstrução da fachada do Ilê Iyá – Nassô , prejudicada pela presença ostensiva de um posto de gasolina;
Exposição em local adequado e/ou devolução de material sacro confiscado pela polícia e exibido de forma deplorável em museus da academia de polícia ou afins.
Enfim ,
vários outros aspectos significativos de nosso patrimônio cultural foram
apontados ,e que agora, com o Opô Baba N’Lawa, se vai assumindo também
uma nova postura do poder público , reconhecendo a diversidade sócio-cultural
como característica componente da riqueza de nossa identidade própria.
A escolha da homenagem à
ancestralidade não poderia estar melhor representada do que por uma escultura
de Mestre Didi. Ele que além de ser considerado um dos mais insignes
representantes da arte contemporânea , que recria uma linguagem estética a
partir de sua profunda experiência de sacerdote-artista , é descendente de uma
das mais tradicionais linhagens componentes do antigo império nagô-yorubá, a
família Asipá; referência de ancoragem e continuidade ininterrupta do processo
civilizatório negro –africano.
A importância do cetro ,
obelisco em homenagem a ancestralidade é de um efeito estético análogo ao oriki
, poema de louvação à memória da Iyá Oba Tosi , uma das fundadoras da tradição
nagô na Bahia e as mães ancestrais, invocado em
determinadas ações litúrgicas. Diz o poema em um de seus versos:
A de o!
|
Chegamos e estamos aqui!
|
|
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Kosi mi fara e awa re!
|
Nada há no mundo que possa
contra mim, aqui estamos!
|
Kosi mi fara e awa re!
|
Nada há no mundo que possa
contra mim, aqui estamos!
|
Awa kasa i fara e la i be si
bo.
|
Nunca deixaremos de ofertar e
rogar em nossos altares por nossa gente.
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Idan toba fara a ng a lo lo
dan.
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Podem usar o poder que quiserem.
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Kosi mi fara e awa re!
|
Nada há no mundo que nos
atinja, aqui estamos!
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Kosi mi fara alejo.
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Nada há que possa contra mim,
nem mesmo os estrangeiros.
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Ara wara kosi mi fara!
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Todos unidos num mesmo corpo,
nada há no mundo que possa contra mim!
|
Na pequena enseada do Rio
Vermelho barcos e canoas ancoradas compõem o cenário das relações da humanidade
com o reino de Olokun e Iemanjá. Uma canoa com pescadores singra o mar em
direção a praia , onde no amanhã serão embarcadas as oferendas aos orixá, para
que o mundo não se acabe...
Notas:
1. Cf. SANTOS, Juana E. Conscientização
do Patrimônio Negro-Brasileiro, in SÁRÉPEGBÉ.
Salvador: Sociedade de Estudos da
Cultura Negra no Brasil- SECNEB, p.21- 23, 1995 .
2. SANTOS, Deóscoredes M. Homenagem
a Asipá Oba Tosi ati Iya Mi Agba. (mimeografado Salvador,1983) in LUZ,
Narcimária do Patrocínio. ABEBE a Criação de Novos valores na Educação.
Salvador: Edições SECNEB,2000 ps. 137-139.