sexta-feira, 10 de março de 2017

OPÔ BABA N`LAWA e Homenagem ao Mestre Didi

Por Marco Aurélio Luz


Placa comemorativa ofertada pela prefeitura de Salvador ao Ilê Asipá em homenagem ao  centenário de Mestre Didi

Na abertura do carnaval de 2017  a  Prefeitura homenageia o Centenário de Mestre Didi. Na placa comemorativa do centenário do Mestre Didi, a imagem da escultura Opo Baba Nla.
Na véspera do dia de entrega das oferendas da colônia de pescadores do Rio Vermelho `a Yemanjá, num local bem próximo num outeiro sobre o mar , descortinando todo horizonte de luzes e cores que a vista alcança e se perde em direção ao continente africano, foi inaugurado o Opô Baba  N’Lawa.
No momento solene , com a presença das autoridades governamentais, de autoridades da  tradição e do povo em geral , Mestre Didi e o  prefeito de salvador , acompanhados das respectivas senhoras, descerraram a placa comemorativa da inauguração.
O Opô Baba N’Lawa é um cetro em homenagem a nossa ancestralidade africano-brasileira , um marco histórico , a maneira negro-africana como o Opa Oraniyan dos yorubá, ou os famosos obeliscos egípcios.



Opo Baba N`Lawa no Rio Vermelho
Foto: M A. Luz

Embora uma das características estruturantes da tradição africana seja o culto aos ancestrais, cuja origem se perde na noite dos tempos, não deixa de ser significativo que a sociedade oficial , através da prefeitura , outorgue ao Mestre Didi , um sacerdote – artista , Alapini e Assogbá , supremo sacerdote do culto aos ancestrais masculinos , os Baba Egun , e  também sacerdote supremo do orixá do panteão da terra , Obaluaiyê , a responsabilidade da elaboração do cetro que homenageia a ancestralidade africana responsável pelo legado civilizatório que marca profundamente nossa identidade.
No Brasil , o culto aos ancestres africanos  possui diversas matrizes  litúrgicas e rituais adaptadas a nossa terra e que constituem um dos pilares da tradição , que vai das  congadas aos cultos de Baba Egun , passando pela genuinidade dos Caboclos, Preto- Velhos , e dos Inkices , Bakuros , Voduns , etc  constituindo a cultura predominante que alimenta a alma e a espiritualidade brasileira.Os cultos aos ancestres ora se referem a linhagens fundadoras de reinos e cidades e mantenedoras da continuidade dos valores civilizatórios , transmitindo seu precioso legado as novas gerações , baluartes na defesa e manutenção de sua identidade própria , ora se referem as origens da própria humanidade , transcendendo a temporalidade histórica para elaborar o mistério da gênese nos momentos mais profundos da liturgia.Na primeira referência , a temporalidade histórica tem como ponto inicial as origens africanas e sua ancoragem nas Américas e passa pelo período recente de lutas de libertação e resistências à escravidão européia, enfim , contra o sistema colonial mercantil escravista ,para alcançar os diais atuais, em que a tradição preservada , alimenta a comunalidade e a sociabilidade africano-brasileira, que se desdobra , perpassando de forma diversa a totalidade do tecido social componente da identidade nacional.
Localizado de forma a ter como fundo a linha do horizonte infinito do oceano em direção a África , ambas situações estão contempladas na simbologia da historicidade expressa no Opô Baba N’Lawa . É que a nossa ancestralidade é homenageada não só pela riquíssima herança cultural trazida pelos africanos para as Américas, mas também porque a origem da humanidade , do homo sapiens tal qual somos, está na própria África.
Emergindo do solo , a lança projetada em direção a atmosfera , celebra a continuidade da tradição que por sua vez garante a continuidade da humanidade. Sentinela dos valores da tradição garantidora da circulação de axé, da força vital , os ancestres são depositários e guardiões da sabedoria capaz de proporcionar a expansão do existir.Os ancestres portanto , são  a fonte de onde flui a continuidade da tradição. Na tradição nagô são sempre invocados e homenageados em todos os ritos precedendo ou iniciando a liturgia que mobiliza as relações entre o aiyê, esse mundo , e o orun, o além.
Assim como na cosmogonia nagô , os orixá, forças da natureza que governam o universo são classificados por princípios femininos e masculinos, também os ancestres têm ritualmente  essa qualificação.No Opô Baba N’Lawa , os dois princípios e poderes estão contemplados. Além da lança de forma fálica e com  a representação em bronze de sua textura de feixe de taliscas de mariwo caracterizando o poder da ancestralidade masculina, o interior da terra ventre  fecundado, de onde emerge o Opô caracteriza o poder da ancestralidade feminina. Os dois passarinhos em ambos os lados da peça por sua vez representam o poder de progenitura, resultante do movimento e da interação entre os princípios.


Mestre Didi e a escultura Opa Exin
Foto: disponível na internet

Na forma original das recriações de Mestre Didi , a textura de suas esculturas segue os elementos simbólicos dos orixá do panteão da terra especificamente o Xaxará e o Ibiri. Assim, as taliscas de palmeira mariwo, os búzios , couro , contas e cores , fazem parte das obras recriadas. Na presente peça, foi constituída uma réplica em bronze, material capaz de melhor resistir as intempéries da exposição em praça pública. Todavia convém sublinhar que o bronze retorna a arcaica técnica de cêra perdida , característica  do acervo das famosas esculturas do patrimônio cultural de Ilê Ifé , a cidade sagrada dos yorubá.



Opa Exin ati Eiye Meji. Cetro representando a ancestralidade que assegura descendência, expansão e continuidade.Reprodução da escultura de Mestre Didi no Pelourinho 1983.Criação de Óscar Ramos.
foto: M.A. Luz
Em 1974 , participando do Iº Seminário sobre o Nordeste: Preservação do Patrimônio Histórico e Artístico , realizado em Salvador, Juana Elbein dos Santos realizou a comunicação Conscientização do Patrimônio Negro-Brasileiro , chamando a atenção para o fato de que a ausência de quaisquer políticas de preservação , se constituía num desdobramento do recalcamento de projeções coloniais escravistas. Alertava para  pontos cruciais que pouco a pouco , no decorrer das últimas décadas alguns  , foram devidamente contemplados como:

  1. Inventário de peças museáveis da arte negro-brasileira;
  2. Inventário e as homenagens aos quilombos , do passado e do presente;
  3. Desobstrução da fachada do Ilê Iyá – Nassô , prejudicada pela presença ostensiva de um posto de gasolina;
  4. Exposição em local adequado e/ou devolução de material sacro confiscado pela polícia e exibido de forma deplorável em museus da academia de polícia ou afins.
Enfim , vários outros aspectos significativos de nosso patrimônio cultural foram apontados  ,e que agora, com o Opô Baba N’Lawa, se vai assumindo também uma nova postura do poder público , reconhecendo a diversidade sócio-cultural como característica componente da riqueza de nossa identidade própria.
A escolha da homenagem à ancestralidade não poderia estar melhor representada do que por uma escultura de Mestre Didi. Ele que além de ser considerado um dos mais insignes representantes da arte contemporânea , que recria uma linguagem estética a partir de sua profunda experiência de sacerdote-artista , é descendente de uma das mais tradicionais linhagens componentes do antigo império nagô-yorubá, a família Asipá; referência de ancoragem e continuidade ininterrupta do processo civilizatório negro –africano.
A importância do cetro , obelisco em homenagem a ancestralidade é de um efeito estético análogo ao oriki , poema de louvação à memória da Iyá Oba Tosi , uma das fundadoras da tradição nagô  na Bahia  e as mães ancestrais, invocado em determinadas ações litúrgicas. Diz o poema em um de seus versos:

 A de o!
 Chegamos e estamos aqui!


 Kosi mi fara e awa re!
 Nada há no mundo que possa contra mim, aqui estamos!
 Kosi mi fara e awa re!
 Nada há no mundo que possa contra mim, aqui estamos!
 Awa kasa i fara e la i be si bo.
 Nunca deixaremos de ofertar e rogar em nossos altares por nossa gente.
 Idan toba fara a ng a lo lo dan.
 Podem usar o poder que quiserem.
 Kosi mi fara e awa re!
 Nada há no mundo que nos atinja, aqui estamos!


 Kosi mi fara alejo.
 Nada há que possa contra mim, nem mesmo os estrangeiros.
 Ara wara kosi mi fara!
 Todos unidos num mesmo corpo, nada há no mundo que possa contra mim!


Na pequena enseada do Rio Vermelho barcos e canoas ancoradas compõem o cenário das relações da humanidade com o reino de Olokun e Iemanjá. Uma canoa com pescadores singra o mar em direção a praia , onde no amanhã serão embarcadas as oferendas aos orixá, para que o mundo não se acabe...

Notas:


 1. Cf. SANTOS, Juana E. Conscientização do Patrimônio Negro-Brasileiro, in SÁRÉPEGBÉ. Salvador:  Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil- SECNEB, p.21- 23, 1995 .

2. SANTOS, Deóscoredes M. Homenagem a Asipá Oba Tosi ati Iya Mi Agba. (mimeografado Salvador,1983) in LUZ, Narcimária do Patrocínio. ABEBE a Criação de Novos valores na Educação. Salvador: Edições SECNEB,2000 ps. 137-139.