por Narcimária Luz
Os africanos e seus descendentes
na perspectiva do mercantilismo escravista estão reduzidas a abordagem da
escravidão, seus ciclos econômicos e as ¨rotas de escravo¨, onde a população
africana aparece “[...] ao nível
econômico, é apenas considerado força de trabalho a ser explorada, ´máquina
econômica´; [...] a nível jurídico-político, é classificada como semovente, isto
é, equiparados a bois, cavalos, etc., portanto sem nenhum direito, [...] ao
nível ideológico, há um tremendo esforço para desculturalizá-la e representa-la
como boçal, rude, primitiva e atendendo aos demais níveis: animal” (LUZ,
1983, p.67).
Aqui vale a pena parar para fazer
alguns comentários urgentes sobre a representação do africano no contexto
colonial. Se não vejamos: a história impressa e difundida pela Razão de Estado e
as chefarias, através dos séculos, não poupam as crianças e jovens
africano-brasileiros, submetendo-os ao discurso que representa os seus
antepassados via pretensa identidade jurídica de escravos. Acreditamos que
nosso mosaico se dedica a anunciar para essas gerações de descendência africana
saibam que seus antepassados,nunca assumiram a identidade de escravos!
A ideologia oficial
etnocêntrico-evolucionista institucionalizada no âmbito escolar, sugere as crianças,
adolescentes e jovens que a população africana no contexto escravista
incorporou a passividade, ignorância, desleixo, conformismo...
Para esses descendentes de
africanos o constrangimento, dor e angústia afloram nos capítulos e /ou sessões
que tratam da escravidão. Aliás o único espaço permitido oficialmente para a
África e sua presença no brasil.
Os africanos e seus descendentes
nessa abordagem escravista, lugar comum e equivocado do currículo escolar, aparecem
como incapazes de insurgência, iniciativas políticas vigorosas e que deveriam
ter destaque especial na escola.
Desde o século XVI os africanos
fomentam insurgências face às políticas de genocídio e embranquecimento, tentando
com afinco estabelecer condições para afirmar o seu direito ‘a existência e
expandir o seu patrimônio civilizatório nas Américas. A riqueza e complexidade
dessas insurgências estão censuradas na escola.
Vale a pena destacar alguns fatos
histórico-políticos que magnificam a presença africana nas Américas, a exemplo
dos valores quilombolas que estabelecem a independência do Haiti, derrotando o
exército de Napoleão.
Dessalines líder da independência do Haiti. Imagem disponível na internet.
Comemoração da vitória da luta de independência do Haiti. Imagem disponível na internet.
No contexto da independência do
Haiti é interessante o registro de que “[...] os negros festejaram a vitória, os quilombos constituindo a sociedade nacional.
Os valores da sociedade africana se enraizavam e se expandiam nas Américas, na Afro-América.
Nesse contexto, a terra possui uma dimensão sagrada. Na cosmogonia negro-africana,
o ciclo da vida, o ritmo do universo está ligados à fertilidade da terra, à
fertilidade dos grãos, no mistério do renascimento, da restituição e da gestação.
A floresta, inesgotável fonte de vida, e a terra trabalhada, que proporciona
abundantes e múltiplas colheitas, proporcionando o alimento, não estão
dissociadas do culto aos ancestrais e aos voduns. A terra contém o mistério do além:
é para ela que caminhamos e seremos restituídos, completando nossos destinos.”
(LUZ, 2002, P.39)
Retomada da memória do Quilombo dos Palmares.Subida da Serra da Barriga. Mãe Hilda Gitolu e Abdias Nascimento, Passarinho e outros. Imagem disponível na internet.
Comemoração recente no Parque do Quilombo dos Palmares. Imagem disponível na internet.
No Brasil Palmares refletiu de
modo extraordinário as estratégias de afirmação socioexistencial africana no
contexto do mercantilismo escravista abrigando uma imensa ”[...] população para a época, de mais de 30 mil habitantes, espalhados
por diversas comunidades que absorveram africanos de distintas origens, aborígines
de diversas aldeias e brancos de variadas nações européias. [...] A afirmação
palmarina contrariava a estrutura social colonial baseada na guerra terrorista
de apreensão e tráfico de seres humanos, a exploração do trabalho forçado sob tortura
(característica do regime europeu da escravidão), a destruição de florestas
para estratégias bélicas de desocultar o inimigo, e para grandes plantações de monocultura,
cujos produtos eram enviados para as metrópoles coloniais a baixo custo, onde
as aspirações à acumulação incessante de capital serviam para se alcançar o
poder e a glória. [...] Palmares difundiu-se no Brasil em um sem-número de
quilombos que garantiram a afirmação socioexistencial do povo negro e seus
valores civilizatórios. Muito antes assim da chamada abolição da escravatura, proclamada
a Lei Áurea, os negros já eram livres” (LUZ, 2002, P.28)
Outra perspectiva perversa é a
historiografia eivada da leitura marxista, que procura Outra perspectiva
perversa é a historiografia eivada da leitura marxista, que procura afirmar que: [...] os escravos não tinham consciência
de classe sofriam e reagiam à sua miséria, mas não tinham consciência de classe
porque não estava integrados à produção-era uma propriedade de seu senhor. A
escravidão deturpou e inibiu a consciência crítica do escravo,que passou a agir
e a ser estritamente o que era:escravo,massacrado física e psicologicamente
pelos padrões das classes dominantes.”(CHIAVENATO,Júlio José.p.144)
O autor não entende que o
africano jamais abdicou de sua identidade original e não aceitou a identidade e
a consciência de classe de escravo, e lutou de todos as formas para manter viva
as suas instituições mantendo sua alteridade civilizatória.
“A insuficiência do instrumento marxista também se
caracteriza pela dificuldade de aceitação da alteridade, e nesse ponto o
evolucionismo burguês com sua idéia de riqueza e de progresso foi absorvida
pela ideologia "proletária"; o socialismo materialista como o capitalismo,
e o comunismo, são englobados na categoria de "evolução" ou de
"etapa superior" da organização social. A dificuldade na percepção da
alteridade, a repressão à admissão do outro embutida na mecânica
"marxista", baseada no conceito de luta de classes como "motor
da história", fica evidente neste texto de MARX, (1966, p. 651):
‘Um negro é um
negro; não é senão em certas condições que ele se torna escravo. Esta máquina,
por exemplo, é uma máquina de fiar algodão. É somente em determinadas condições
que ela se torna capital. Fora dessas condições, ela é tão pouco capital como o
ouro por si mesmo seria moeda, do mesmo modo que o açúcar não é o preço do
açúcar... O capital é uma relação de produção. É uma relação de produção histórica.
’
Ora, se por um lado o texto se caracteriza por
qualificar as relações de produção historicamente determinadas como a base do
valor, por outro ele caracteriza, através da tautologia, "um negro é um
negro" o recalque à alteridade, pois que resta ao negro, nesse discurso, o
mesmo destino das outras coisas, isto é, máquina e açúcar, que fora das
relações capitalistas escravistas seriam máquinas e açúcar, simplesmente.
Essa tautologia, um negro é um negro, encobre a
identidade negra que se alicerça e se estrutura
através dos valores e da linguagem de um processo civilizatório milenar, muito
anterior ao escravismo do século XVI. .(LUZ, 1995,80)
E mais,
“No discurso marxista, esse espaço provocado por esse
recalcamento vai ser preenchido por um deslocamento de outra cena que mascarará
o real processo de acumulação primitiva capitalista de um lado e a alteridade
civilizatória negra de outro”.
É nesta cena que atuarão, muitas vezes, como forma de
recalcamento, o conceito de mais-valia aplicado às relações
burguesia/proletariado, acentuadas como sendo à base de constituição ou
exploração capitalista, e o de consciência de classe aliado ao de alienação,
muitas vezes para justificar o "verdadeiro homem do mundo novo
socialista", desalienado e assumindo essa consciência de classe.
A noção de classe passa a operar então como elemento de
representação recalcada da verdadeira ordem de exploração e operação mundial,
que é, na verdade, a do mundo branco sobre os não brancos, ou ainda dos valores
do continente europeu sobre os valores das outras civilizações do globo; que
pode então ser percebida mais do que simples exploração, um etnocídio”. (LUZ, 1995,80)
Aqui vale a pena lembrar o
universo de sabedoria palenques ou quilombolas da guerra dos dez anos pela
independência de Cuba, protagonizada por africanos sob a liderança de Antônio
Maceo.
Antonio Maceo líder das lutas de independência de Cuba. Imagem disponível na internet.
“[...] Para Maceo, a luta da independência e o fim da escravidão eram uma
coisa só. Essa luta era conseqüência natural dos esforços de libertação dos palenques,
que desgastaram os espanhóis durante todo o período colonial. Uma luta heróica
em que sobressaíam os chefes palenques Cobas, Augustin ou Gallo; Moa Tiguabos e
outros que o povo negro cubano guarda na sua história. [...] Os palenques
ocupavam significativa área liberta nas montanhas da ilha e ameaçavam banir os espanhóis,
como acontecera no Haiti. O exército de Maceo, apoiado pelos palenques, acabava
com a escravidão nas áreas em que vencia os espanhóis. esse desdobramento da
luta anticolonialista dos palenques empurrou a burguesia (inclusive a pequena burguesia)
a ingressar no processo de independência.” (LUZ, 2002, P.43)
Seguindo as mesmas referências de estratégias
dos palenques no século XIX, utilizando as montanhas da ilha, em 1959 a revolução cubana sob
a liderança de Fidel Castro os camponeses que formavam a base de apoio da
guerrilha consegue retirar do poder o ditador Batista.
Vale a pena incluir nessa
perspectiva sobre Cuba o comentário de Wole Soyinka nigeriano, Prêmio Nobel de
Literatura:
“[...] Ogum por sua parte se torna não só o deus da guerra, mas o deus da
revolução no contexto mais contemporâneo-e isto não se dá meramente na África, mas
nas Américas, para onde seu culto se espalhou. Como os suportes católicos
romanos do regime de batista em Cuba descobriram demasiadamente tarde, deviam ter-se
preocupado menos com Karl Marx e mais com Ogum...” (LUZ, 2002, P.45)
Espada do orixá Ogun no Daomey, foto de Pierre Verger. Disponível em fernandodeogum.blogspot.com.br
Continuando a nossa reflexão
ainda temos que considerar uma outra abordagem apresentada a partir da bacia
semântica neocolonial e imperialista que alimenta o discurso midiático que se
estende à escola. A ênfase desse discurso sobre a África é a miséria
absoluta,completamente destruída,imersa a barbárie e o pior de tudo,é que atribuem aos povos africanos a
responsabilidade pela anomia que os aflige.
Cabe aqui uma ilustração que identificamos
num livro de ensino Fundamental, 3ª série. Nele a noção de axé, princípio
dinamizador fundamental à cosmogonia e linguagem litúrgica do povo nagô, está
submetida à banalização, exotismo e total esvaziamento do universo simbólico do
contínuo civilizatório africano nas Américas.
A ênfase do conteúdo que introduz
um dos capítulos com o título: ”Axé Bahia!”. A autora trata de forma metonímica
e na perspectiva colonial a
Bahia,através da analítica da finitude do mapa
geográfico(clima,relevo,vegetação,fronteiras,hidrografia);sugere que as
crianças investiguem sobre os brasões,armas,bandeira,hino,símbolos do município
de Salvador e da Bahia; escreva um livro ilustrado sobre Joana Angélica,Maria
Quitéria,Ana Nery,castro Alves e Ruy Barbosa;por fim,sugere que os alunos façam
um projeto denominado “Bahia a terra mágica do axé”.
As Ganhadeiras de Itapuã se apresentam no Festival Awon Eso do PRODESE, Programa de Descolonização e Educação. Foto PRODESE
Grupo Abolição promove roda de capoeira na ACRA Associação Crianças Raízes do Abaeté. Foto ACRA.
Percebam que não está sendo considerado o
conhecimento da episteme africano-brasileira para abordar a territorialidade
Bahia, e transcender o discurso produtivista e consumista que insiste no
projeto da Bahia” moderna” mediada pela ordem e progresso imperialista. Os
símbolos enaltecidos correspondem a ética e estética do patrimônio
ibérico-colonial.Entre as personalidades em destaque não estão incluídas as
lideranças exponenciais das comunalidades de base africana na Bahia.
A Bahia vista como “mágica”
reflete as projeções do exotismo e divertimento turístico, produto vendido
principalmente para o exterior de forma abusiva, caricaturando completamente o
nosso solo de origem.
Para as crianças de comunalidades
africano-brasileiras, encontrar o princípio de axé no âmbito da escola, e vê-lo
banalizado e de forma desrespeitosa é uma agressão!
Nas
comunalidades africano-brasileiras a religião atravessa toda a dinâmica de organização
social, e nesse âmbito a noção nagô de axé estabelece.
Exposição de esculturas de Marco Aurélio Luz em evento do PRODESE. Foto PRODESE
Apresentação do auto coreográfico A Chuva dos Poderes de Mestre Didi na Mini Comunidade Oba Biyi. Foto M. A. Luz
“[...]
uma relação de constante tensão dialética entre esse mundo e o além, entre o
aiyê e o orun, conforme a conceituação nagô”.
A
comunicação entre esses dois mundos se dá através de uma concepção vitalista do
mundo, que se caracteriza pelo conceito de axé para os nagôs ou muntu para os
congo. Axé é um conceito que exprime a idéia de forças circulantes capazes de
engendrar a criação e a expansão da vida. O ciclo vital caracteriza o ritmo do
universo por sucessivos processos de renascimentos.
Ritualmente,
o ciclo vital culmina com as cerimônias de axexé. Axexé é origem das origens, e
é quando se celebra a passagem de um ara-aiyê ser humano habitante do aiyê para
o orum Esta passagem caracteriza uma elaboração de morte que compreende o
conceito de restituição. "Vai-se para dar lugar a outros", diz o
ditado. Uma vez restituídas de axé as forças que regem o universo são capazes
de engendrar novos nascimentos e expandir a criação. ”(LUZ,1995,ps34 e35)
Que educadores são esses? Até
quando nossos filhos ficarão submetidos a professores destituídos de uma
compreensão dos povos cujas civilizações fundam nossa territorialidade?
Aqui cabe a lembrança da música
de Gilberto Gil e Gegê, Tempo Rei que
serve como um alerta aos currículos instituídos a partir da bacia semântica
“greco-romana” e sua influência na constituição do ocidente: “...de um momento para o outro poderá não
mais fundar nem gregos nem baianos: (grifos nossos).
Certa vez realizei um estudo
envolvendo futuras pedagogas baianas visando identificar se ao longo de sua
formação, haviam elaborado um discurso próprio ancorado à territorialidade
baiana.
Apesar de suspeitarmos de antemão
da não existência de uma elaboração teórico-metodológica original enriquecida
pelo ethos envolvente, ficamos
perplexos ao constatarmos que os futuros pedagogos sabiam repetir de forma
metonímica sem nenhuma emoção, teorias e jargões técnicos da territorialidade euro
americana; e nada, nada mesmo sabiam dizer ou expressar, sobre a nossa realidade
de base africana. E o pior, não tinham adquirido competências para extrair da
territorialidade baiana, elementos pedagógicos necessários ao fortalecimento da
identidade infanto-juvenil da nossa população.
Imagens do evento do PRODESE
Acreditamos que essa é a
tendência histórico-política dos cursos de formação de educadores,
principalmente pelo impacto contemporâneo da herança colonial que ainda
estabelece os valores do currículo na formação de educadores.