Achamos
por bem republicarmos trechos de uma entrevista, a propósito das iniciativas de
um vereador em Salvador, que tenta se promover através de campanha e
anteprojeto que ataca as tradições religiosas de matriz africana,através de intervenção à liturgia das oferendas. Vale ressaltar, que essa entrevista foi publicada
neste blog em 31/10/2010,alcançando mais de 2.000 visualizações demonstrando a relevância do tema.
Entrevista
concedida pelo Professor Marco Aurélio Luz (M.A.) a Márcio Nery de
Almeida (M.N.).
MN-
Eu agora vou tocar num ponto que considero delicado. Delicado porque já vi muitos
posicionamentos contra e a favor, não sei se de correntes mais “progressistas”
ou das que mantêm genuinamente a tradição africana, que é o sacrifício de
animais. Qual é a opinião do senhor a respeito disso?
MA-Na
tradição para o animal ser sacrificado, tem que ter condições muito específicas
dentro da liturgia. Ele se apresenta como uma compreensão, uma elaboração de
circulação de axé, no que se refere à restituição. Uma pessoa, ou uma
comunidade está atravessando determinado problema e precisa reforçar o seu
orixá. Há na natureza substâncias que, utilizadas liturgicamente, resultam em
acionar axé, promover força de existência.
Quando
se oferece um animal a um orixá, a um ancestral quer-se reforçar o axé desse
orixá ou desse ancestral. Refere-se ao orixá de uma pessoa, ou um orixá ligado
a uma comunidade que uma vez reforçado, vai também reforçar a comunidade. Por
isso as entidades compartilham essa integração de axé das oferendas com as
pessoas. As pessoas comem determinadas partes. Então, há uma comunhão entre as
forças da natureza e aquelas pessoas. Agora, para isso, não é preciso ser uma
quantidade enorme de animal, mesmo porque não são só animais que compõem as
oferendas, são folhas, vegetais e outros elementos, substâncias que entram, que
vão ser transformados em alimento pela culinária litúrgica, é uma culinária de
símbolos, que expressa a visão de mundo, vai ser repartida entre os fiéis,
convidados, sacerdotisas e sacerdotes, é uma confraternização.
AKUKO
Escultura que adorna coluna do Ilê Igbalé no Ilê Axipá
ABO
Escultura que adorna coluna no Igbalé no Ilê Axipá
MN-
Não é só matar por matar o animal...
MA-
Não, não, muito longe disso!...Não...muito pelo contrário! Vai ser uma
elaboração muito grande em relação à vida, porque ali você está elaborando o
viver e o morrer, uma elaboração muito delicada, muito sutil, muito vivenciada.
Ali você não tem o frango do super mercado de que você come um pedaço de perna
e come como se nem tivesse um frango ou uma galinha ali. A idéia de galinha
está muito longe encoberta pela coxinha... Muito diferente da tradição
religiosa, você tem o animal inteiro, com quem você entra em contato... . Você
vai viver a dramaticidade natural da situação do viver e do morrer e, por isso
são poucos animais. É uma certa hipocrisia a crítica a esse ato porque nessa
sociedade industrial é que o animal é reduzido simplesmente a um animal seriado
para morrer e que vai ser engordado de acordo com a necessidade do mercado
econômico que exige produção em massa. Vão ser dados a eles alhos e bugalhos
para ele alcançar rapidamente determinado peso.
Até
coisas que comprometem a saúde humana de quem consome, são dadas a esses
animais, e os deformam. Eles têm uma vida completamente voltada para isso. São
presos ou confinados, vivem uma vida como carne. Eles não vivem uma vida de
animal. Eles não têm uma identificação de animal. A eles é projetada uma
identificação de carne, um produto de uma cadeia de produção. Não se cria o
animal como animal, aquilo é criado como a produção de um bem unicamente para
dar lucro, que vai favorecer uma atividade econômica. Então é uma hipocrisia se
colocar a favor dessa sociedade que faz isso e lança no mercado diariamente uma
enorme quantidade, porque são mortos industrialmente e chegam para o consumidor
sem nenhum aspecto daquele bicho que foi e você nem se lembra do que ele é ou
que deixa de ser.
Então,
todas as referências de uma vida social que esteja ligada a isso estão
esmaecidas ou apagadas, é simplesmente uma atividade de ir ao super mercado e
consumir, assim como você compra uma pêra você compra um animal e tudo mais que
é oferecido é tudo produto. Assim como se consome chiclete se consome um
animal. Está tudo ali reduzido a condição de produto para o consumo. Não há
nada ali que faça pensar na condição da vida animal. Ao contrário da situação
da oferenda em que a pessoa que está oferecendo se identifica com aquele
animal, fala com ele dá recados e elabora a restituição que integra a dinâmica
do ciclo vital, a circulação de axé. Na comunidade terreiro inclusive não é
permitido maltratar ou matar qualquer animal. Embora como vimos no início da entrevista
a função do caçador do predador acompanha a natureza humana, algo
característico da espécie, há diferentes contextos...Agora o que não podemos é
aceitar a hipocrisia das críticas vindas do preconceito...
Ejo
Escultura de Marco Aurélio Luz
Para
conhecer a entrevista na íntegra consultem postagens antigas do blog e o
SEMENTES Caderno de Pesquisa,Vol. 3,nº5/6 de 2002 pela Editora da UNEB.
Constituição
da Bahia
CAPÍTULO XV
Da Cultura
Art. 275 -É
dever do Estado preservar e garantir a integridade, a respeitabilidade e a
permanência dos valores da religião afro-brasileira e especialmente:
I - inventariar, restaurar e proteger os
documentos, obras e outros bens de valor artístico e cultural, os
monumentos, mananciais, flora e sítios arqueológicos vinculados à religião
afro-brasileira, cuja identificação caberá aos terreiros e à Federação do Culto
Afro-Brasileiro;
II - proibir aos órgãos encarregados da
promoção turística, vinculados ao Estado, a exposição, exploração comercial,
veiculação, titulação ou procedimento prejudicial aos símbolos, expressões,
músicas, danças, instrumentos, adereços, vestuário e culinária, estritamente
vinculados à religião afro-brasileira;
III- assegurar a participação
proporcional de representantes da religião afro-brasileira, ao lado da
representação das demais religiões, em comissões, conselhos e órgãos que
venham a ser criados, bem como em eventos e promoções de caráter
religioso;
IV - promover a adequação dos programas
de ensino das disciplinas de geografia, história, comunicação e expressão,
estudos sociais e educação artística à realidade histórica afro-brasileira, nos
estabelecimentos estaduais de 1º, 2º e 3º graus.