Galinha d'angola,uma das referências simbólicas da ancestralidade africano-brasileira
Concluimos essa semana, a entrevista concedida pelo Professor Marco Aurélio Luz(M.A.) a Márcio Nery de Almeida(M.N.).Para conhecer a entrevista na íntegra consultar o SEMENTES Caderno de Pesquisa,Vol. 3,nº5/6 de 2002 pela Editora da UNEB.
Boa leitura!
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MN- Eu agora vou tocar num ponto que considero delicado. Delicado porque já vi muitos posicionamentos contra e a favor, não sei se de correntes mais “progressistas” ou das que mantêm genuinamente a tradição africana, que é o sacrifício de animais. Qual é a opinião do senhor a respeito disso?
MA-Na tradição para o animal ser sacrificado, tem que ter condições muito específicas dentro da liturgia. Ele se apresenta como uma compreensão, uma elaboração de circulação de axé, no que se refere à restituição. Uma pessoa, ou uma comunidade está atravessando determinado problema e precisa reforçar o seu orixá. Há na natureza substâncias que, utilizadas liturgicamente, resultam em acionar axé, promover força de existência.
A conquém ou galinha d`angola é uma ave de profunda significação litúrgica.Pano da Costa do Marfim.Acervo de Narcimária Luz,foto Marco Aurélio Luz Quando se oferece um animal a um orixá, a um ancestral quer-se reforçar o axé desse orixá ou desse ancestral. Refere-se ao orixá de uma pessoa, ou um orixá ligado a uma comunidade que uma vez reforçado, vai também reforçar a comunidade. Por isso as entidades compartilham essa integração de axé das oferendas com as pessoas. As pessoas comem determinadas partes. Então, há uma comunhão entre as forças da natureza e aquelas pessoas. Agora, para isso, não é preciso ser uma quantidade enorme de animal, mesmo porque não são só animais que compõem as oferendas, são folhas, vegetais e outros elementos, substâncias que entram, que vão ser transformados em alimento pela culinária litúrgica, é uma culinária de símbolos, que expressa a visão de mundo, vai ser repartida entre os fiéis, convidados, sacerdotisas e sacerdotes, é uma confraternização.
MN- Não é só matar por matar o animal...
MA- Não, não, muito longe disso!...Não...muito pelo contrário! Vai ser uma elaboração muito grande em relação à vida, porque ali você está elaborando o viver e o morrer, uma elaboração muito delicada, muito sutil, muito vivenciada. Ali você não tem o frango do super mercado de que você come um pedaço de perna e come como se nem tivesse um frango ou uma galinha ali. A idéia de galinha está muito longe encoberta pela coxinha... Muito diferente da tradição religiosa, você tem o animal inteiro, com quem você entra em contato... . Você vai viver a dramaticidade natural da situação do viver e do
morrer e, por isso são poucos animais. É uma certa hipocrisia a crítica a esse ato porque nessa sociedade industrial é que o animal é reduzido simplesmente a um animal seriado para morrer e que vai ser engordado de acordo com a necessidade do mercado econômico que exige produção em massa. Vão ser dados a eles alhos e bugalhos para ele alcançar rapidamente determinado peso. Até coisas que comprometem a saúde humana de quem consome, são dadas a esses animais, e os deformam. Eles têm uma vida completamente voltada para isso. São presos ou confinados, vivem uma vida como carne. Eles não vivem uma vida de animal. Eles não têm uma identificação de animal. A eles é projetada uma identificação de carne, um produto de uma cadeia de produção. Não se cria o animal como animal, aquilo é criado como a produção de um bem unicamente para dar lucro, que vai favorecer uma atividade econômica. Então é uma hipocrisia se colocar a favor dessa sociedade que faz isso e lança no mercado diariamente uma enorme quantidade, porque são mortos industrialmente e chegam para o consumidor sem nenhum aspecto daquele bicho que foi e você nem se lembra do que ele é ou que deixa de ser. Então, todas as referências de uma vida social que esteja ligada a isso estão esmaecidas ou apagadas, é simplesmente uma atividade de ir ao super mercado e consumir, assim como você compra uma pêra você compra um animal e tudo mais que é oferecido é tudo produto. Assim como se consome chiclete se consome um animal. Está tudo ali reduzido a condição de produto para o consumo. Não há nada ali que faça pensar na condição da vida animal. Ao contrário da situação da oferenda em que a pessoa que está oferecendo se identifica com aquele animal, fala com ele dá recados e elabora a restituição que integra a dinâmica do ciclo vital, a circulação de axé. Na comunidade terreiro inclusive não é permitido maltratar ou matar qualquer animal. Embora como vimos no início da entrevista a função do caçador do predador acompanha a natureza humana, algo característico da espécie, há diferentes contextos...Agora o que não podemos é aceitar a hipocrisia das críticas vindas do preconceito...
GALO, pintura de Chico da Silva, acervo e foto de M A Luz MN-Para encerrar a nossa conversa, eu vou tocar noutro ponto polêmico e que é uma coisa que eu também concordo: aqui na Bahia é muito difundido que Iansã é Santa Bárbara, quando a gente bem sabe que Iansã não é Santa Bárbara, que Iansã é um princípio é uma outra elaboração. No entanto, aqui a gente observa, excetuando as comunidades terreiros ou litúrgicas, as pessoas que consideram que consideram Iansã como Santa Bárbara têm isso tão arraigado dentro delas que já não mais conseguem dissociar uma coisa da outra. Por um lado eu considero válido para a pessoa, para o devoto que assim acha, mas por outro lado considero prejudicial dentro do contexto cultural. O que o senhor acha?
MA-Isso aí são duas coisas: uma é a situação individual das pessoas que têm suas vidas e eu não vou entrar no mérito de aconselhar “faça isso ou aquilo”. Não é o caso. Mas em relação a um posicionamento estratégico de resguardar a continuidade da tradição, a gente vem lutando por esclarecer, de levar a um conhecimento maior sobre o que é uma religião e o que é a outra religião, e marcamos que hoje em dia, apesar do preconceito de muita gente atrasada, é possível viver a liberdade de culto e se ter religiões diferentes existindo num mesmo contexto como o brasileiro. Não precisamos mais estar colocando a imagem de santo perto do peji, um altar perto do peji, isso só prá dizer: “Somos católicos”... . Há alguns anos, fez-se o senso aqui na Bahia e o IBGE perguntou a uma veneranda Iyalorixá que era considerada a principal, qual era a religião dela. Ela falou: “Eu sou católica!” Todo mundo se dizia católico... Ainda mais ela que viveu todo o transcurso da perseguição policial, que viu terreiros invadidos, levarem instrumentos sagrados, perseguirem e prenderem pessoas, baterem em sacerdotisas e sacerdotes, impedirem o culto, criticarem na imprensa, nas universidades, Dizerem que era coisa do demônio, dizer que era coisa que não prestava, e que era um atraso e tudo mais, e você saber que aquilo na verdade era um legado de seus ancestrais que tanto sofreram para trazer essa riqueza da tradição até nós, até aquela comunidade e tantas mais e ela ter aquela responsabilidade , aquela obrigação, de manter , fazia-se qualquer coisa no sentido de preservar a religião. Então se esse terreiro é dedicado a Oxossi, quer que eu bote aqui alguma coisa do católico que faça referência a Oxossi? Eu boto aqui um São Jorge na entrada e, se vierem, eu digo que sou católico, que estou aqui cultuando da minha forma, mas não vou deixar que ninguém de fora se aproxime lá de dentro, onde está o chamado quarto do orixá, mas aqui na frente que é uma parte pública mostro para quem chegar que está aqui, que sou católico e eu não vou renegar isso, tenho batismo, vou à missas e levo as iyawo, e se um dia acontecer de chegada a hora, para se r enterrado, que um padre venha. Mas isso tudo foram formas da comunidade conseguir ir caçando um jeito de viver. Mas isso ficou arraigado como disse, nesses comportamentos e em determinados espaços públicos em que a comunidade não podia encontrar-se só podia através do catolicismo. Então a comunidade: “... Vamos à festa de Nossa Senhora da Conceição, à festa de Santa Barbara, à festa de S. Cosme e Damião, como é que eu vou? Vamos nos reunir todos juntos e fazer uma consagração, então todos juntos podem compartilhar dessa sociabilidade, de um encontro, de uma referência de Identidade de sua comunidade. Vamos aos encontros da terça-feira da Benção de S. Francisco no Terreiro de Jesus, tem samba, tem bloco afro...
MN- Utilizando outro referencial...
MA-Ter um espaço e um tempo em que fosse possível você se reunir. Precisava botar um disfarce.
MN- Estratégias que hoje em dia a gente vê que não tem tanta necessidade...
MA- Tem sido uma luta, mas não tem tanta necessidade e é isso que estamos agora tentando fazer, afirmar a auto-estima, o orgulho de uma tradição brasileira de ter o direito de poder existir sem disfarces dessa ordem por conta de uma repressão.
Agora é preciso que se diga as associações simbólicas não foram feitas ao acaso e o vetor das aproximações é sempre da simbologia africana. è evidente que se faz a associação de Iyansan com Santa Bárbara é porque é uma santa cuja imagem é de uma jovem guerreira vestida de vermelho e com uma espada. Aproxima-se então de atributos do orixá. São Jorge, cuja imagem é de um cavaleiro montado a cavalo caçando uma fera. São atributos que recaem em Oxossi. Em algumas regiões do Brasil é associado à Ogun por ser um guerreiro com armadura e com instrumentos de metal...
MN- Não foi uma coisa arbitrária...
MA- Não foi. São Jerônimo está associado a Xangô. Sua imagem é do santo vestido de vermelho sentado numa pedra, com um leão ao lado, um livro de leis na mão. Então Xangô que é o princípio que regula a sociedade, é rei, legislador, apoiado numa pedra, Xangô Jakutá, o lançador de pedras e o leão símbolo da realeza...O Senhor do Bonfim associado a Oxalá. Assim como Jesus padecendo na cruz, as histórias da tradição contam que Oxalá teimando em visitar Nanan no reino de Xangô, foi confundido, esteve preso e passou necessidade, apanhou, até que se fizesse a justiça e fosse reparado. A igreja branca fica no alto de uma colina.
Enfim, você vê que isso são associações simbólicas que vão não ao sentido de descaracterizar Iyansan para Santa Bárbara, mas no sentido de através da imagem de Santa Bárbara preservar a simbologia de Iyansan.
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Pelo conjunto de aspectos abordados nessa entrevista e sua importância no contexto do direito à alteridade civilizatória,destacamos a seguir, um capítulo da Constituição da Bahia dedicado a Cultura e Educação.