Apresentamos a seguir uma entrevista com Maria Aparecida Silva Bento feita pela equipe do Salto para o Futuro da TVE no dia 18 de junho de 2010. Maria Aparecida Silva Bento é Doutora em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP. Diretora Executiva do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT).
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Imagem disponível em http://fiosdeluz-li.blogspot.com/2011/02/educacao-infantil-artes-visuais.html
Salto – O combate à desigualdade étnico-racial começa, obrigatoriamente, pela Educação Infantil?
Cida Bento – Começa pela Educação Infantil. Sempre houve um mito de que crianças pequenas não se discriminam, de que os professores não discriminam as crianças pequenas, enfim, nesse território sempre houve uma ideia de felicidade, de cordialidade, e na verdade não é assim. No sistema educacional como um todo, a área da Educação Infantil é uma das mais frágeis. Só recentemente essa área vem sendo melhor cuidada pelo Estado, mas ainda está muito aquém do que desejaríamos, em todos os sentidos. Em termos de formação de professores, de equipamentos, de materiais, é uma área que está aquém das nossas expectativas. E a questão específica das crianças é complicada. No CEERT, nós fizemos um levantamento de todas as principais teses de mestrado e de doutorado que tratavam das relações raciais na faixa de 0 a 6 anos, e descobrimos muitas situações de discriminação envolvendo crianças, envolvendo professor e criança, envolvendo crecheiras, envolvendo os profissionais de educação como um todo. É uma área em que temos que fazer uma interferência, porque ela é fundamental no desenvolvimento das crianças. Não só da criança negra, mas da crianças branca também. Nesse período se forma o pensamento racial, as crianças podem perceber as diferenças – "Por que o meu cabelo é assim? Por que a cor da minha pele é de um jeito e a da minha amiga é de outro?" – a maneira como se pode explicar, e muito mais do que explicar, ressignificar isso para as crianças negras e para as crianças brancas é fundamental para o futuro do país. Se uma criança negra se sente bem com o corpo dela, se sente bem com o cabelo dela, com o rosto dela, e uma criança branca, que também se sente bem com ela própria, respeita e aceita a criança negra, temos uma outra história sendo construída. Porque hoje há situações, relatadas em teses, em pesquisas, que a criança branca não quer segurar a mão da menina negra porque tem medo de que a cor negra passe para ela. Esse tipo de situação é o primeiro passo para o que vem lá na frente. Ele interfere na maneira como a criança negra se sente em relação a si própria, e em como a criança branca se sente com relação a ela própria e em relação à criança negra. Eu sempre digo que quando a criança branca não quer dar a mão à criança negra, ou a discrimina de alguma forma, o problema começou antes. Começou quando ela achou que aquela criança era inferior a ela. Ela já estabeleceu uma certa hierarquia, no sentido de que ela é uma criança mais bonita, mais competente, que ela é uma criança superior. Como construir uma outra história? Eu sempre penso que, na linha da psicologia, a identidade tem mil faces, mas há duas características que são frequentes, e aparecem em tudo: a relação que estabelecemos com o nosso corpo e a relação que estabelecemos com o nosso grupo, o grupo ao qual pertencemos. Então, sentir-se bem no seu corpo, com o seu cabelo, com a sua pele, estar bem resolvida com relação a isso e sentir-se bem com o grupo ao qual se pertence são aspectos fundamentais para ficar bem
Salto – Nos primeiros anos da infância se iniciam as primeiras relações com o corpo. De que maneira essa fase pode ser o começo da afirmação da diversidade?
Cida Bento – É importante poder admitir vários padrões, e ter em vista aquele discurso de que o Brasil é a terra da diversidade. A diversidade da Amazônia, a diversidade da fauna, da flora, nossa diversidade humana. Podemos ver que, quando o Brasil fala de si próprio para fora, ele usa a diversidade. Na verdade, podemos ver essa diversidade, podemos reconhecer que são bonitas, que são belas, que são padrões de beleza as crianças indígenas, as crianças negras, as crianças brancas, as crianças orientais. A diversidade é nesse sentido, de que podemos entender o país, em todos esses diferentes segmentos, todos eles tendo valor, todos eles sendo considerados importantes.
Salto – De que maneira a escola pode incorporar a família no processo de afirmação das diferenças?
Cida Bento – Nessa etapa da vida, a família deveria estar mais próxima da escola. É uma etapa em que a criança é muito pequena, há muita interação entre os pais e a escola. E uma das coisas que percebemos nas falas dos professores que desenvolveram experiências de trabalhar esse tema dentro da escola é que, quando eles trazem esse tema, a família se aproxima. É como se a família estivesse se sentindo acolhida pela escola. Quando ignoramos que existe essa questão, a família talvez se mantenha mais distante. Mas quando se pode tratar isso, a família se aproxima mais ainda. E aí a afirmação da diferença, a afirmação da diversidade acontece, porque temos mesmo diferentes histórias. E as diferentes histórias têm que aparecer em todos o sentidos. A família, o grupo ao qual a criança pertence, e no caso da criança negra, temos uma família negra, temos um segmento negro, e este segmento precisa ser ressignificado. Hoje ele ainda tem uma marca negativa. Nos meios de comunicação está mudando isso, mas ainda temos uma presença negra que é mal colocada. Ressignificar isso pode começar na Educação Infantil. Por exemplo: a criança pode ler e ver filmes sobre a Branca de Neve, mas pode ver e ler filmes sobre as lendas africanas, tanto a criança negra quanto a criança branca. Ambas têm que trazer essa dimensão positiva. Eu não discuto nunca a criança negra sozinha, porque as relações raciais são relações que envolvem crianças negras e brancas, temos que pensar o tempo inteiro nas duas. É importante uma criança branca incorporar positivamente a herança desse país. A herança desse país incorpora negros, indígenas... A criança branca tem que receber isso com positividade.A Educação Infantil pode fazer isso.
Salto–Porque é a herança dela, também.
Cida Bento – É a herança dela também. E a criança negra tem que receber positivamente tanto a sua herança negra, quanto a sua herança europeia, sua herança indígena. Isso tem que ser ressignificado positivamente para todos os segmentos. Eu sonho com um país assim, e acho que ele será assim. Eu sou extremamente otimista, estamos mudando, e podemos mudar muito mais. Gostaria que fosse assim, que entre as crianças não houvesse brigas devido às diferenças de raça, de etnia, de gênero... Isso vai ser fundamental para nós. É importante que a LDB, que é nossa Lei maior de educação, seja alterada por duas leis que obrigam o ensino da história da cultura da África, dos africanos e dos descendentes de africanos no Brasil, e a mesma coisa com relação à história da cultura indígena. Incorporar isto significa ajudar que todo o país compreenda melhor quem ele é. É quase dizer para o Brasil: "entenda quem é você". Esses três segmentos, todos eles com um rico cabedal, devem incorporar isso, e isso vai mexer com a autoestima de todos nós.
Salto – Algumas pesquisas apontam que o número de alunos negros na sala de aula do 8º e do 9º ano do Ensino Fundamental é proporcionalmente menor do que na Educação Infantil. Quais os fatores envolvidos na evasão escolar?
Cida Bento – Primeiro, a Educação Infantil é um ciclo em que temos o maior percentual de população negra, comparado a todos os outros ciclos. Um outro elemento importante, que Fúlvia Rosemberg trouxe, de uma maneira muito interessante, é que não podemos usar o termo evasão no caso da criança negra. Temos que usar "expulsão da criança negra do sistema escolar", porque se o sistema escolar é um positividade. A Educação Infantil pode fazer isso. sistema hostil, a criança não quer ficar. O que é um sistema hostil? É um sistema que não acolhe. Muitas vezes, em nossas lembranças, como pessoas negras, não conseguimos nos lembrar bem, mas era tão desconfortável aquela escola... Aquela escola me dava tantos sinais de que aquele não era um lugar para mim. Aquele não era o meu lugar. Como eu poderia ver? Talvez olhando um cestinho onde estão os brinquedos, eu só via bonecas brancas; onde estão os livrinhos, que têm lendas, e meu povo não está lá; olhando os murais, as professoras, e todas as imagens que aparecem, e eu não estou lá... E abrindo os livros, também não vejo famílias negras, e quando a professora fala com as crianças em geral, ela não me reconhece, e ela adora o cabelo da minha amiga e não sabe o que fazer com o meu cabelo. Então, para uma criança, é difícil fazer uma afirmação de identidade, simplesmente temos uma tendência a achar que o problema é conosco. E como é que a criança significa isso para ela? Esse não é um espaço em que eu deva estar. Essa não é a minha casa, não é o meu lugar. A evasão, é importante que seja vista também como uma expulsão que o sistema faz em todas as dimensões. É importante, por exemplo, lembrar que as crianças negras – e Fúlvia Rosemberg traz um estudo sobre isso também – estão nos espaços, estão nas periferias, estão nas escolas mais pobres, onde há os equipamentos mais sucateados, os professores com pior nível de qualificação, com menos chance de qualificação. Temos todo um sistema que, muitas vezes, expulsa a criança.
Salto – Numa publicação sua, você diz que "os meninos, sobretudo os negros, apresentam uma trajetória escolar com mais rupturas, e apresentam um tempo significativamente mais longo do que seus pares da mesma idade, para aprender a ler e a escrever". O que explica esse processo?
Cida Bento – Eu estive numa banca de doutorado, muito recentemente, que foi muito forte para mim, que me chocou muito, porque Denise Ziviani trabalhou com meninos negros de Belo Horizonte, e ela trazia muitos dados de como os meninos negros despertam o medo, em geral, das educadoras, das pessoas que estão nas escolas. E ela dizia que quando temos uma sala, digamos, de meninos que estão em atraso, eram meninos negros, a grande maioria. E aí já tinham rompido, não queriam estudar, estavam profundamente agressivos. Ela traz um estudo bastante interessante de como o menino negro acaba lidando, com o passar do tempo, com a exclusão. Isso foi uma coisa que eu passei a prestar atenção. Sou de uma família de oito filhos – seis homens e duas mulheres – hoje, mais do que em qualquer outro tempo da minha vida, penso em como deve ter sido difícil para os meus irmãos. Porque, como interpretar, para você mesmo, por exemplo, por que a polícia está o tempo inteiro em cima de você? Você está com um amigo branco, e a polícia para você. A polícia desrespeita os meninos negros o tempo inteiro. Então, como lidar com uma sociedade que se atemoriza, que sente que você é perigoso? Como é que você responde a isso? Em diversos níveis, há muita dificuldade de o sistema acolher essa dimensão de ser menino negro, que é completamente diferente de ser menina negra. Nós, do movimento negro, temos muito essa questão das mulheres negras. Mas hoje, mais do que em qualquer outro tempo, eu presto atenção na história dos meninos negros. Porque eu tenho um filho, que é um jovem, e que vive sendo parado pela polícia, e é muito irritado com isso, e tem dificuldade com isso, e já tem dois processos contra a polícia. E eu vejo os jovens negros, no geral, viverem essa situação. Então, eu acho que a situação do jovem, do menino negro, é uma situação para se prestar uma atenção particular
Salto – Você chegou a citar a lei que prevê a obrigatoriedade do ensino de história da África nas escolas públicas. De que maneira os profissionais envolvidos especificamente na Educação Infantil podem trabalhar esse conteúdo?
Cida Bento – O CEERT tem um grande acervo de experiências de promoção da igualdade racial em sala de aula, desenvolvido por educadores e professores. E temos coisas muito interessantes. É impressionante como os professores são criativos. E mais impressionante ainda é que cerca da metade das professoras – porque a esmagadora maioria são mulheres – são mulheres brancas. Eu acho isso fantástico. Mulheres brancas, professoras, estão preocupadas em fazer isso. E fazem isso como? Brincando com dramatização, com bonecos, com desenhos, com música. Nós tivemos uma experiência numa creche em Heliópolis, que foi fantástica. Primeiro, tentamos mudar o ambiente da escola, vimos como eles estavam: como faltavam bonecas, brinquedos, livros na biblioteca. E depois fizemos uma experiência que foi interessante, que foi a dança afro com as meninas negras e brancas. Um tempo depois, as meninas brancas não queriam deixar de usar os birotinhos (amarrações de cabelo), porque nós fizemos os birotinhos na cabeça das meninas negras, e as brancas também quiseram. E depois elas quiseram ficar com os birotinhos, adoraram a roupa, que era um traje de um dos países da África. Foi muito bom percebermos não só o impacto nas meninas negras, que ficaram todas orgulhosas da sua herança, da sua característica cultural, como para as meninas brancas. Acho que a implementação da lei traz essa dimensão: trazer a história dos africanos, e não só na cultura, na história, na geografia, na matemática... Da maneira que pudermos incluir, é bom. E ressignificar isso para as crianças, isso é muito interessante. Tem uma questão também, por exemplo, estive no Egito, e é impressionante a riqueza simbólica da cultura egípcia. É uma maravilha. E eu fico pensando: por que as crianças negras e brancas brasileiras não têm essa dimensão, esse orgulho? Não é só uma das civilizações mais antigas, que inspiraram todas as outras, masorgulho. O Brasil, com mais da metade da população descendente de negros, ele deveria incorporar positivamente essa dimensão e a Lei n. 10.639 e a Lei n. 11.645 são possibilidades que podemos trazer. Assim como trazer a cultura indígena. A riqueza simbólica, concreta, a outra perspectiva de sociedade que pode vir junto.
Salto – Na sua avaliação, o que configura uma educação que se preocupa de fato com a diversidade e, consequentemente, com a construção de uma sociedade mais justa e mais igualitária?
Cida Bento – Uma educação que respeite, aqui, por exemplo, no Brasil, toda uma legislação que já temos para isso. Temos na Constituição, na LDB, todo um arcabouço legal falando do pleno desenvolvimento de todas as crianças. Uma educação que respeita isso é uma educação que vai trazer esse tema para a formação dos professores, para os livros didáticos, para os brinquedos, para a gestão, para todas as dimensões que existem. É uma educação que vai estar dentro do professor branco e negro, de modo que ele não silencie quando observar situação de discriminação entre as crianças. Um professor que não foge do desafio que é tratar esse tema hoje no Brasil. Um desafio que tanto o professor negro quanto o professor branco têm que assumir, tentar aprender, e aí interferir, quando perceberem que uma criança está se estressando com outra criança por questões ligadas às relações raciais e étnicas. Acho que uma sociedade democrática, uma sociedade cidadã, ela cria toda essa estrutura, não só na mídia, mas na educação, que permite que todas as diferenças, todas as possibilidades culturais se expressem positivamente.
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