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PRODESE E ACRA



VIDA QUE SEGUE...Uma
das principais bases de inspiração do PRODESE foi a Associação Crianças Raízes
do Abaeté-Acra,espaço institucional onde concebemos composições de linguagens
lúdicas e estéticas criadas para manter seu cotidiano.A Acra foi uma iniciativa
institucional criada no bairro de Itapuã no município de Salvador na Bahia, e
referência nacional como “ponto de cultura” reconhecido pelo Ministério da
Cultura. Essa Associação durante oito anos,proporcionou a crianças e jovens
descendentes de africanos e africanas,espaços socioeducativos que legitimassem
o patrimônio civilizatório dos seus antepassados.
A Acra em parceria com o Prodese
fomentou várias iniciativas institucionais,a exemplo de publicações,eventos
nacionais e internacionais,participações exitosas em
editais,concursos,oficinas,festivais,etc vinculadas a presença africana em
Itapuã e sua expansão através das formas de sociabilidade criadas pelos
pescadores,lavadeiras e ganhadeiras,que mantiveram a riqueza do patrimônio
africano e seu contínuo na Bahia e Brasil.É através desses vínculos de
comunalidade africana, que a ACRA desenvolveu suas atividades abrindo
perspectivas de valores e linguagens para que as , crianças tenham orgulho de
ser e pertencer as suas comunalidades.
Gostaríamos de registrar o nosso
agradecimento profundo a Associação Crianças Raízes do Abaeté(Acra),na pessoa
do seu Diretor Presidente professor Narciso José do Patrocínio e toda a sua
equipe de educadores, pela oportunidade de vivenciarmos uma duradoura e valiosa
parceria durante o período de 2005 a 2012,culminando com premiações de destaque
nacional e a composição de várias iniciativas de linguagens, que influenciaram
sobremaneira a alegria de viver e ser, de crianças e jovens do bairro de
Itapuã em Salvador na Bahia,Brasil.


domingo, 14 de agosto de 2011

NARCISSUS,NARCISO...ENTRE A FLOR,O SONHO E A REALIDADE

Por Narcimária C. P. Luz


Narciso ou narcissus é uma flor de seis pétalas brancas,que  tem no seu centro, a cor amarela.Costuma florescer no início da primavera e gosta da terra úmida regada pelas águas de uma lagoa.
Dizem que as águas da  lagoa  umidece a terra, tornando-a  fecunda para  gerar a vida de narciso(narcissus). O caule de narciso(narcissus),sempre está inclinado para a frente e isso deixa a flor virada para baixo.
A flor em sociedades tradicionais como no oriente,simboliza a capacidade de transformar a vaidade e egocentrismo, em humildade,capacidade de doação ao outro,capacidade de estabelecer laços de fraternidade e promoção de vida.
Hoje,de modo especial dia dos pais, a equipe de educadores/as,crianças,jovens e famílias da ACRA, escolheram a flor de narciso e as características que a compõem como um símbolo importante para homenagearmos uma personalidade de suma importância nas nossas vidas.
Qual a relação da flor de narciso(narcissus) com a ACRA?
Tudo!
Estamos nos referindo ao incansável pai,professor,educador:Narciso José do Patrocínio,nosso Diretor Presidente.
A ACRA fica nas terras úmidas e férteis da Lagoa do Abaeté,expandindo vida,alegria e o direito de ser entre crianças e jovens...

Professor Narciso na sede da Sociedade Protetora dos Desvalidos,instituição criada pelos/as  afrobrasileiros/as para constituir canais institucionais visando cartas de  alforria e assegurar direitos coletivos.
Foto do acervo da família Patrocínio


Professor Narciso,é uma figura exponencial na história da Educação em Itapuã.Na sua trajetória carrega (aliás sempre carregou) no seu coração,sonhos que atravessam décadas transmitindo saberes capazes de animar para a vida muitas gerações.
A ACRA é um desses muitos sonhos transformado em realidade.
Como o caule da flor narciso,o nosso Narciso (desde 2005) vem mantendo erguida a ACRA, sustentando nossos sonhos de um futuro próspero para todos/as aqueles/as que vivenciam e/ou compartilham as iniciativas que brotam por aqui.
Assim, a simbologia da flor narciso que se posta no caule olhando para baixo,no contexto da ACRA,representa o nosso NARCISO,o mais velho,experiente,sábio, que acumulou durante sua vida o conhecimento e destreza necessária, para transmitir aos mais jovens o patrimônio de valores que sustentam a dignidade de ser que nos unem e fortalecem.
Professor Narciso com seus filhos e esposa(1970)
Da esquerda para direita Narciso Filho,Professor Narciso,José Luís (Contra Mestre Luís Negão),Nailson e Professora Januária
Foto do acervo da família Patrocínio



Nosso Narciso, gerou José Luís o Contra Mestre Luís Negão idealizador da ACRA e juntos, na terra úmida regada pelas águas da Lagoa do Abaeté(que tem a ânima imaginária da flor narcissus),transformaram o sonho em realidade.
Parabéns a todos os pais da ACRA e da blogosfera que sempre nos visita!

sábado, 13 de agosto de 2011

A ARTE DE MESTRE DIDI

Por Marco Aurélio Luz



Eye Lawa

Pássaro Ancestral, a grande Mãe. Na tradição Nagô, as nossas venerandas mães ancestrais, detentoras dos princípios do mistério e poder feminino estão relacionadas aos grandes pássaros, aos peixes, às sereias, metade mulher metade pássaro.

Mestre Didi, Alapini, sacerdote supremo do culto aos ancestrais Egungun, através de sua atuação como artista obtém no ano de 2002 um merecido reconhecimento, convidado pela 23ª Bienal de S. Paulo, realizou uma amostra de 33 peças em sala especial ao lado de outras salas especiais do circuito das artes plásticas internacionais como Picasso, Goya, Andy Wahrol, Paul Klee, Edward Munch,Tomie Ohtake e Louise de Bourgeois.
Nada mais significativo neste momento que homenagear um escultor de fama internacional, que ocupa no mundo das artes plásticas um lugar de originalidade impar.
Nascido de importante família originaria de Ketú, os Axipá, que no Brasil se destacaram como fundadores e continuadores das tradições sagradas nagô, Mestre Didi é hoje um dos mais antigos e respeitados sacerdotes, possuindo dentre seus diversos títulos o de Assogba, supremo sacerdote do culto ao orixá Obaluaiyê e Alapini, supremo sacerdote do culto aos Egungun, ancestrais masculinos.

Imerso num mundo tradicional negro—africano transplantado para o Brasil, e tendo tido oportunidade de estar várias vezes na África, onde vivenciou experiências históricas, como o reencontro com a família Axipá, o recebimento de significativo título dado a ele pelo Alaaketú, rei de Ketú, além de ter realizado em Oyó a confirmação do seu título de Balé Xangô, Mestre Didi se situa visceralmente no âmbito da episteme estética da arte tradicional africana.
Essa arte é admirada em todo o mundo, a partir mesmo das referências à esplendorosa civilização do Egito antigo, marco da humanidade, e preenche os museus da Europa e EUA, influenciando sobremaneira a arte de diversos povos nos tempos modernos e contemporâneos.
A arte dos povos nagô ou iorubá, e de seus vizinhos e por assim dizer parentes, como os edo do reino de Benin; constituem-se em amostra de excelência da estética tradicional africana espalhada pelo mundo.
Essa estética se constitui principalmente de duas dimensões. Uma está ligada as homenagens rituais aos reis, chefes e heróis, na formação do culto aos ancestrais, principalmente a arte que é elaborada para os palácios.
 A outra, visa a magnificar o sagrado no que se refere ao culto às forças da natureza, os orixás e, esta presente na arte elaborada para os templos e liturgias.
Tanto uma quanto outra se constituem como arte de representação de símbolos, visa a expressar conceitos que fazem parte de uma complexa visão de mundo.
Neste sentido, a arte escultórica e pictórica tradicional emerge dos altares, dos paramentos rituais, e também de elementos que compõem a arquitetura dos palácios e templos.
Um terreiro tradicional no Brasil congrega e condensa aspectos essenciais dos reinos e impérios; seus orixás e seus ancestrais.
Na condição de Assogba, Mestre Didi começou a fazer os emblemas sagrados dos orixá do panteão da Terra.

Ibiri

 Nasce e retorna. A simbologia do cetro de Nana refere-se ao princípio de restituição, relacionado ao orixá Iku, Morte. Uma cantiga se refere: “Nana Iku re”. A mitologia também refere-se à restituição da matéria de que são feitos os seres que precisa ser restituída para que outros venham. Como diz o ditado, “vai-se para dar vez a outros.” Feixe de nervuras de palmeira, representação dos ancestrais enfeixado numa forma ventral  aludem ao contínuo ciclo de restituições.
O ibiri emblema de Nanã e o xaxará emblema de Obaluaiyê, são feitos de matérias, possuem formas e cores que exprimem determinados conceitos referentes a aspectos da visão de mundo que esses orixás representam.
As taliscas ou nervuras das folhas de palmeira enfeixadas em forma ventral são representações coletivas dos espíritos ancestrais. As superfícies em couro coloridas, caracterizam com sua cor, a qualidade de axé, princípio e força controlada pelo orixá. Búzios enfileirados representam ancestralidade, continuidade de linhagens, ciclo vital. As contas representam partículas desprendidas da qualidade de força do orixá, exprimem a dinâmica entre o aiyê, este mundo, e o orun, o além.
A forma de vassoura, demonstra que com o xaxará Obaluaiyê controla as doenças, ora afastando, limpando, recolhendo.
Rei dos espíritos do mundo, Oba—olu—aiyê, é sentinela e guardião dos valores da tradição. A lança, exin, é outro de seus emblemas.
O ibiri feito de taliscas de palmeira enfeixados em forma ventral, caracteriza o princípio feminino regido pelo orixá Nanã. Ventre, terra restituída de matéria ancestral, constitui o ciclo vital.


Xaxará
 O cetro de Obaluaye filho de Nana. Oba-olu-aiye, rei dos espíritos do mundo, ele comanda os ancestrais. Com o xaxara, na forma de uma vassoura ele varre as doenças. Feixe de nervuras de palmeira representam os ancestrais. Couro colorido na cor do orixá contas e búzios representação de ancestres adornam o emblema no mundo sagrado.
Princípio de multiplicidade, variedade da vida, dos destinos, dinâmica do ciclo vital, arco-íris que emerge e retorna à terra, Oxumaré é outro orixá panteão da terra, irmão de Obaluaiyê e filho de Nanã. Ele é representado pelos emblemas de duas cobras.


Ejo meji


 Duas cobras representam os princípios do orixá Oxumare outro filho de Nana. Referem-se ao arco–íris multiplicidade de cores, diversidade do existir emergindo cumprindo o ciclo e retornando, mistério do existir, vida e morte uma coisa só, “okan naa ni”. Na escultura da foto as cobras, com formas que aludem ao Ibiri, se relacionam com o Opa Ossãiyn, orixá princípio da vegetação. “Kosi ewe kosi orixá”, sem folhas não há orixá, não há existência, não há vida. Sete ramos com um passarinho no cimo é o emblema do orixá Ossãiyn.

As recriações de Mestre Didi, constituídas com os elementos desta arte sacra, demonstram a complexidade dos valores e significado da constelação dos orixás do panteão da terra.
A geometria vazada das suas esculturas atualiza e representa a dinâmica do vazio e do pleno, do visível e do invisível, integrando em sua expressão a dialética entre o orun,o além e o aiyê, o mundo concreto individualizado.
Na galeria Prova do Artista, o ibiri, o xaxará e ejo meji, duas cobras, abriu espacialmente uma amostra.
As demais esculturas expressam relações e conceitos estéticos do panteão dos orixás da terra como Opa Ossaign ati ejo meji, cetro de Ossãiyn e duas cobras, igi iwin, o espírito da árvore, ejo l’orun e Dan, as cobras místicas, opa exin meta, cetro com três lanças, dentre outras.


 Opô Baba N`lawa
Cetro do Grande Ancestral, localizado no bairro do Rio Vermelho em Salvador em frente ao mar que se estende até a África o monumento celebra a ancestralidade de origem africana no Brasil. O cetro em bronze e em grandes dimensões se inspira na peça Opa Exin ati Eiye Meji, cetro de lança com dois pássaros esse feito de nervuras de palmeira enfeixadas representando a coletividade dos ancestrais. Antes  uma réplica monumental do Opa Exin...,já havia sido implantada no Pelourinho, motivação de Oscar Ramos  de saudosa memória. A simbologia alude que o princípio e poder genitor masculino representado pelo símbolo da lança só se realiza com os poderes dos princípios genitores femininos representados pelos dois pássaros, a esquerda e a direita.

Destilando a seiva nobre da tradição, recriando esculturas para o espaço das galerias, Mestre Didi expande sua cultura, com toda autenticidade e genialidade que o faz um artista contemporâneo que sem dúvida enriquece com sua originalidade o acervo estético do mundo das artes e enche de orgulho a identidade africano—baiana.

Arte SIMBÓLICA AFROBRASILEIRA

Temos o prazer de apresentar no nosso blog um trecho da palestra proferida por Marco Aurélio Luz colaborador assíduo da ACRA,na Casa da Música em Itapuã em março de 2008.Marco Aurélio é Oju Oba do Ilê Axé Opo Afonjá , Elebogi do Ilê Axipá.
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, pela Faculdade de Direito UFRJ; Doutor em Direito do Trabalho, pela Faculdade de Direito UFRJ; Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ; Mestre em Comunicação pela Escola de Comunicação UFRJ; Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação UFRJ; Pós-Doutorado em Ciências Sociais Paris V- Sorbonne. Professor, na UFRJ e UFF e na UFBA.
Escritor, autor de artigos, ensaios e livros, em destaques o clássico Agadá : Dinâmica da Civilização Africano-Brasileira, Cultura Negra em Tempos Pós Modernos Do Tronco ao Opa Exin, co-autor  O Rei Nasce Aqui, Oba Biyi: educação pluricultural africano-brasileira.
Confiram a valiosa exposição.
Uma bela aula!

sábado, 6 de agosto de 2011

Sangue Latino

Para abrir a semana,uma contribuição de Sérgio Bahialista nos brindando com um vídeo contendo uma entrevista valiosa com o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano.
Muito belo!

GESTÃO EDUCACIONAL PARA A DIVERSIDADE

Apresentamos a seguir uma entrevista com Maria Aparecida Silva Bento feita pela equipe do Salto para o Futuro da TVE no dia 18 de junho de 2010. Maria Aparecida Silva Bento é Doutora em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP. Diretora Executiva do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT).

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Imagem disponível em http://fiosdeluz-li.blogspot.com/2011/02/educacao-infantil-artes-visuais.html




Salto – O combate à desigualdade étnico-racial começa, obrigatoriamente, pela Educação Infantil?

Cida Bento – Começa pela Educação Infantil. Sempre houve um mito de que crianças pequenas não se discriminam, de que os professores não discriminam as crianças pequenas, enfim, nesse território sempre houve uma ideia de felicidade, de cordialidade, e na verdade não é assim. No sistema educacional como um todo, a área da Educação Infantil é uma das mais frágeis. Só recentemente essa área vem sendo melhor cuidada pelo Estado, mas ainda está muito aquém do que desejaríamos, em todos os sentidos. Em termos de formação de professores, de equipamentos, de materiais, é uma área que está aquém das nossas expectativas. E a questão específica das crianças é complicada. No CEERT, nós fizemos um levantamento de todas as principais teses de mestrado e de doutorado que tratavam das relações raciais na faixa de 0 a 6 anos, e descobrimos muitas situações de discriminação envolvendo crianças, envolvendo professor e criança, envolvendo crecheiras, envolvendo os profissionais de educação como um todo. É uma área em que temos que fazer uma interferência, porque ela é fundamental no desenvolvimento das crianças. Não só da criança negra, mas da crianças branca também. Nesse período se forma o pensamento racial, as crianças podem perceber as diferenças – "Por que o meu cabelo é assim? Por que a cor da minha pele é de um jeito e a da minha amiga é de outro?" – a maneira como se pode explicar, e muito mais do que explicar, ressignificar isso para as crianças negras e para as crianças brancas é fundamental para o futuro do país. Se uma criança negra se sente bem com o corpo dela, se sente bem com o cabelo dela, com o rosto dela, e uma criança branca, que também se sente bem com ela própria, respeita e aceita a criança negra, temos uma outra história sendo construída. Porque hoje há situações, relatadas em teses, em pesquisas, que a criança branca não quer segurar a mão da menina negra porque tem medo de que a cor negra passe para ela. Esse tipo de situação é o primeiro passo para o que vem lá na frente. Ele interfere na maneira como a criança negra se sente em relação a si própria, e em como a criança branca se sente com relação a ela própria e em relação à criança negra. Eu sempre digo que quando a criança branca não quer dar a mão à criança negra, ou a discrimina de alguma forma, o problema começou antes. Começou quando ela achou que aquela criança era inferior a ela. Ela já estabeleceu uma certa hierarquia, no sentido de que ela é uma criança mais bonita, mais competente, que ela é uma criança superior. Como construir uma outra história? Eu sempre penso que, na linha da psicologia, a identidade tem mil faces, mas há duas características que são frequentes, e aparecem em tudo: a relação que estabelecemos com o nosso corpo e a relação que estabelecemos com o nosso grupo, o grupo ao qual pertencemos. Então, sentir-se bem no seu corpo, com o seu cabelo, com a sua pele, estar bem resolvida com relação a isso e sentir-se bem com o grupo ao qual se pertence são aspectos fundamentais para ficar bem



Salto – Nos primeiros anos da infância se iniciam as primeiras relações com o corpo. De que maneira essa fase pode ser o começo da afirmação da diversidade?
 

 Cida Bento – É importante poder admitir vários padrões, e ter em vista aquele discurso de que o Brasil é a terra da diversidade. A diversidade da Amazônia, a diversidade da fauna, da flora, nossa diversidade humana. Podemos ver que, quando o Brasil fala de si próprio para fora, ele usa a diversidade. Na verdade, podemos ver essa diversidade, podemos reconhecer que são bonitas, que são belas, que são padrões de beleza as crianças indígenas, as crianças negras, as crianças brancas, as crianças orientais. A diversidade é nesse sentido, de que podemos entender o país, em todos esses diferentes segmentos, todos eles tendo valor, todos eles sendo considerados importantes.

Salto – De que maneira a escola pode incorporar a família no processo de afirmação das diferenças?

Cida Bento – Nessa etapa da vida, a família deveria estar mais próxima da escola. É uma etapa em que a criança é muito pequena, há muita interação entre os pais e a escola. E uma das coisas que percebemos nas falas dos professores que desenvolveram experiências de trabalhar esse tema dentro da escola é que, quando eles trazem esse tema, a família se aproxima. É como se a família estivesse se sentindo acolhida pela escola. Quando ignoramos que existe essa questão, a família talvez se mantenha mais distante. Mas quando se pode tratar isso, a família se aproxima mais ainda. E aí a afirmação da diferença, a afirmação da diversidade acontece, porque temos mesmo diferentes histórias. E as diferentes histórias têm que aparecer em todos o sentidos. A família, o grupo ao qual a criança pertence, e no caso da criança negra, temos uma família negra, temos um segmento negro, e este segmento precisa ser ressignificado. Hoje ele ainda tem uma marca negativa. Nos meios de comunicação está mudando isso, mas ainda temos uma presença negra que é mal colocada. Ressignificar isso pode começar na Educação Infantil. Por exemplo: a criança pode ler e ver filmes sobre a Branca de Neve, mas pode ver e ler filmes sobre as lendas africanas, tanto a criança negra quanto a criança branca. Ambas têm que trazer essa dimensão positiva. Eu não discuto nunca a criança negra sozinha, porque as relações raciais são relações que envolvem crianças negras e brancas, temos que pensar o tempo inteiro nas duas. É importante uma criança branca incorporar positivamente a herança desse país. A herança desse país incorpora negros, indígenas... A criança branca tem que receber isso com positividade.A Educação Infantil pode fazer isso.

Salto–Porque é a herança dela, também.

Cida Bento – É a herança dela também. E a criança negra tem que receber positivamente tanto a sua herança negra, quanto a sua herança europeia, sua herança indígena. Isso tem que ser ressignificado positivamente para todos os segmentos. Eu sonho com um país assim, e acho que ele será assim. Eu sou extremamente otimista, estamos mudando, e podemos mudar muito mais. Gostaria que fosse assim, que entre as crianças não houvesse brigas devido às diferenças de raça, de etnia, de gênero... Isso vai ser fundamental para nós. É importante que a LDB, que é nossa Lei maior de educação, seja alterada por duas leis que obrigam o ensino da história da cultura da África, dos africanos e dos descendentes de africanos no Brasil, e a mesma coisa com relação à história da cultura indígena. Incorporar isto significa ajudar que todo o país compreenda melhor quem ele é. É quase dizer para o Brasil: "entenda quem é você". Esses três segmentos, todos eles com um rico cabedal, devem incorporar isso, e isso vai mexer com a autoestima de todos nós.
 

Salto – Algumas pesquisas apontam que o número de alunos negros na sala de aula do 8º e do 9º ano do Ensino Fundamental é proporcionalmente menor do que na Educação Infantil. Quais os fatores envolvidos na evasão escolar?

Cida Bento – Primeiro, a Educação Infantil é um ciclo em que temos o maior percentual de população negra, comparado a todos os outros ciclos. Um outro elemento importante, que Fúlvia Rosemberg trouxe, de uma maneira muito interessante, é que não podemos usar o termo evasão no caso da criança negra. Temos que usar "expulsão da criança negra do sistema escolar", porque se o sistema escolar é um positividade. A Educação Infantil pode fazer isso. sistema hostil, a criança não quer ficar. O que é um sistema hostil? É um sistema que não acolhe. Muitas vezes, em nossas lembranças, como pessoas negras, não conseguimos nos lembrar bem, mas era tão desconfortável aquela escola... Aquela escola me dava tantos sinais de que aquele não era um lugar para mim. Aquele não era o meu lugar. Como eu poderia ver? Talvez olhando um cestinho onde estão os brinquedos, eu só via bonecas brancas; onde estão os livrinhos, que têm lendas, e meu povo não está lá; olhando os murais, as professoras, e todas as imagens que aparecem, e eu não estou lá... E abrindo os livros, também não vejo famílias negras, e quando a professora fala com as crianças em geral, ela não me reconhece, e ela adora o cabelo da minha amiga e não sabe o que fazer com o meu cabelo. Então, para uma criança, é difícil fazer uma afirmação de identidade, simplesmente temos uma tendência a achar que o problema é conosco. E como é que a criança significa isso para ela? Esse não é um espaço em que eu deva estar. Essa não é a minha casa, não é o meu lugar. A evasão, é importante que seja vista também como uma expulsão que o sistema faz em todas as dimensões. É importante, por exemplo, lembrar que as crianças negras – e Fúlvia Rosemberg traz um estudo sobre isso também – estão nos espaços, estão nas periferias, estão nas escolas mais pobres, onde há os equipamentos mais sucateados, os professores com pior nível de qualificação, com menos chance de qualificação. Temos todo um sistema que, muitas vezes, expulsa a criança.

Salto – Numa publicação sua, você diz que "os meninos, sobretudo os negros, apresentam uma trajetória escolar com mais rupturas, e apresentam um tempo significativamente mais longo do que seus pares da mesma idade, para aprender a ler e a escrever". O que explica esse processo?

Cida Bento – Eu estive numa banca de doutorado, muito recentemente, que foi muito forte para mim, que me chocou muito, porque Denise Ziviani trabalhou com meninos negros de Belo Horizonte, e ela trazia muitos dados de como os meninos negros despertam o medo, em geral, das educadoras, das pessoas que estão nas escolas. E ela dizia que quando temos uma sala, digamos, de meninos que estão em atraso, eram meninos negros, a grande maioria. E aí já tinham rompido, não queriam estudar, estavam profundamente agressivos. Ela traz um estudo bastante interessante de como o menino negro acaba lidando, com o passar do tempo, com a exclusão. Isso foi uma coisa que eu passei a prestar atenção. Sou de uma família de oito filhos – seis homens e duas mulheres – hoje, mais do que em qualquer outro tempo da minha vida, penso em como deve ter sido difícil para os meus irmãos. Porque, como interpretar, para você mesmo, por exemplo, por que a polícia está o tempo inteiro em cima de você? Você está com um amigo branco, e a polícia para você. A polícia desrespeita os meninos negros o tempo inteiro. Então, como lidar com uma sociedade que se atemoriza, que sente que você é perigoso? Como é que você responde a isso? Em diversos níveis, há muita dificuldade de o sistema acolher essa dimensão de ser menino negro, que é completamente diferente de ser menina negra. Nós, do movimento negro, temos muito essa questão das mulheres negras. Mas hoje, mais do que em qualquer outro tempo, eu presto atenção na história dos meninos negros. Porque eu tenho um filho, que é um jovem, e que vive sendo parado pela polícia, e é muito irritado com isso, e tem dificuldade com isso, e já tem dois processos contra a polícia. E eu vejo os jovens negros, no geral, viverem essa situação. Então, eu acho que a situação do jovem, do menino negro, é uma situação para se prestar uma atenção particular

Salto – Você chegou a citar a lei que prevê a obrigatoriedade do ensino de história da África nas escolas públicas. De que maneira os profissionais envolvidos especificamente na Educação Infantil podem trabalhar esse conteúdo?
 


 Cida Bento – O CEERT tem um grande acervo de experiências de promoção da igualdade racial em sala de aula, desenvolvido por educadores e professores. E temos coisas muito interessantes. É impressionante como os professores são criativos. E mais impressionante ainda é que cerca da metade das professoras – porque a esmagadora maioria são mulheres – são mulheres brancas. Eu acho isso fantástico. Mulheres brancas, professoras, estão preocupadas em fazer isso. E fazem isso como? Brincando com dramatização, com bonecos, com desenhos, com música. Nós tivemos uma experiência numa creche em Heliópolis, que foi fantástica. Primeiro, tentamos mudar o ambiente da escola, vimos como eles estavam: como faltavam bonecas, brinquedos, livros na biblioteca. E depois fizemos uma experiência que foi interessante, que foi a dança afro com as meninas negras e brancas. Um tempo depois, as meninas brancas não queriam deixar de usar os birotinhos (amarrações de cabelo), porque nós fizemos os birotinhos na cabeça das meninas negras, e as brancas também quiseram. E depois elas quiseram ficar com os birotinhos, adoraram a roupa, que era um traje de um dos países da África. Foi muito bom percebermos não só o impacto nas meninas negras, que ficaram todas orgulhosas da sua herança, da sua característica cultural, como para as meninas brancas. Acho que a implementação da lei traz essa dimensão: trazer a história dos africanos, e não só na cultura, na história, na geografia, na matemática... Da maneira que pudermos incluir, é bom. E ressignificar isso para as crianças, isso é muito interessante. Tem uma questão também, por exemplo, estive no Egito, e é impressionante a riqueza simbólica da cultura egípcia. É uma maravilha. E eu fico pensando: por que as crianças negras e brancas brasileiras não têm essa dimensão, esse orgulho? Não é só uma das civilizações mais antigas, que inspiraram todas as outras, masorgulho. O Brasil, com mais da metade da população descendente de negros, ele deveria incorporar positivamente essa dimensão e a Lei n. 10.639 e a Lei n. 11.645 são possibilidades que podemos trazer. Assim como trazer a cultura indígena. A riqueza simbólica, concreta, a outra perspectiva de sociedade que pode vir junto.

Salto – Na sua avaliação, o que configura uma educação que se preocupa de fato com a diversidade e, consequentemente, com a construção de uma sociedade mais justa e mais igualitária?

 
Cida Bento – Uma educação que respeite, aqui, por exemplo, no Brasil, toda uma legislação que já temos para isso. Temos na Constituição, na LDB, todo um arcabouço legal falando do pleno desenvolvimento de todas as crianças. Uma educação que respeita isso é uma educação que vai trazer esse tema para a formação dos professores, para os livros didáticos, para os brinquedos, para a gestão, para todas as dimensões que existem. É uma educação que vai estar dentro do professor branco e negro, de modo que ele não silencie quando observar situação de discriminação entre as crianças. Um professor que não foge do desafio que é tratar esse tema hoje no Brasil. Um desafio que tanto o professor negro quanto o professor branco têm que assumir, tentar aprender, e aí interferir, quando perceberem que uma criança está se estressando com outra criança por questões ligadas às relações raciais e étnicas. Acho que uma sociedade democrática, uma sociedade cidadã, ela cria toda essa estrutura, não só na mídia, mas na educação, que permite que todas as diferenças, todas as possibilidades culturais se expressem positivamente.

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Visitem a página do Salto para o Futuro http://tvbrasil.org.br/saltoparaofuturo/entrevista.asp?cod_Entrevista=104