Por Marco Aurélio Luz
O famoso jornalista Mário Filho, autor do livro O negro e o futebol brasileiro, em certo trecho observa a reação dos jornais ingleses referindo-se a seleção brasileira em excursão na Europa em 1956 as vésperas da conquista da copa do mundo de 1958: "o futebol brasileiro tinha tudo de um circo: o comedor de fogo, o engolidor de faca, os acrobatas, os trapezistas, até os palhaços. Só não tinha essa coisa elementar que era um time."
Para muitos o futebol arte brasileiro é incompreensível. Isso porque a fonte de sua inspiração nasce da civilização africana que sofre forte recalcamento pelos sistemas neocoloniais europocêntricos. Essa recriação do futebol começa com a participação do negro. Faz com que a linguagem do futebol seja envolvida por novos valores procedentes de culturas milenares.
O jogo que era uma elaboração das formas técnicas industriais de produção, a divisão de funções do trabalho ,a serem cumpridas da melhor maneira visando unicamente o goal, que significa objetivo, produtividade, tem agora uma nova pedra angular ,isto é a noção de odara que em língua yorubá significa bom e bonito simultaneamente.
Nessa bacia semântica de formas e movimentos o técnico não se separa do estético é uma e mesma coisa. Então a ocupação do tempo e do espaço do jogo sofrerão mudanças radicais. A mesma indagação sobre a capoeira para os de fora da roda, se é dança, se é luta, se é religião se é jogo, acontece com o que viemos a chamar de futebol arte. Assim como a capoeira a base do jogo é a ginga.
A ginga é o movimento que incorpora a síncopa, o vazio que constrói a esquiva que torna o jogador invisível para o adversário. Esse movimento se faz ao sabor do ritmo do balanço,que os afro-americanos chamam de suingue. O nome ginga creio eu, deriva como homenagem a Rainha Ginga Ngola Bandi Kiluanji. Ela que enfrentou os colonialistas escravistas de Portugal e é considerada a rainha invisível por suas táticas de deslocamentos conseguindo manter o reino do Ndongo (Angola) independente, é lembrada nos autos de coroação dos reis de Congo nas congadas do Brasil.
Outra referência importante, se desdobra da noção do espaço sagrado. Nas tradições cristãs o espaço celeste é o lugar do sagrado. Toda uma estética se constitui dessa noção, desde as narrativas celestiais as pinturas das igrejas e sua arquitetura se projetando para o alto. Assim como a dança "clássica" o ballet com seus saltos para o alto, o futebol inglês não foge desse valor bola para cima e a cabeçada faz da cabeça o lugar onde o espírito se separa ou controla a matéria ou pecado de onde deve sair o goal.
Muito diferente é a noção do espaço sagrado nas culturas afro brasileiras. Aqui é o interior da terra que guarda e contém o mistério da criação, de onde se celebram a ancestralidade. Então toda uma estética está voltada para baixo, em termos de rituais, complexas danças com gestos simbólicos, onde todo o corpo e os pés em contato com o solo sacralizado realizam a comunicação entre esse mundo e o além.
Assim como a capoeira original se faz ao rés do chão o futebol arte evolui rente ao gramado.
Por fim, the last but not the least(por último e não menos importante), a concepção do corpo ascético, do corpo inerte educado para obter conhecimento apenas através da leitura ou captação de imagens, exacerbando a relação olho cérebro, faz com que se desdobre na formação de jogadores de futebol o que chamamos de cintura dura. Por outro lado, nas culturas afrobrasileiras o acesso ao saber faz um apelo a todos os sentidos promovendo a sinergia entre eles ao mesmo tempo exigindo uma comunicação direta intergrupal onde se dá e se realiza o desejo de estar junto, em interação se fortalecendo podendo se divertir e manifestar a alegria.
Daqui se desdobra também essa característica lúdica do nosso futebol arte, e através dela somos o país com mais conquistas da copa do mundo.
Após essas reflexões vale a pena acompanhar o vídeo a seguir,que ressalta a ginga como é linguagem primordial do futebol.