Por Narcimária Correia do
Patrocínio Luz
É
ao sabor do ritmo e cadência do samba adornado pela polirritmia percussiva da
orquestra africano-brasileira que destaco aqui, de modo muito especial, a “Voz
do Morro”, composição de Zé Kéti (1952). Outros sambas importantes que nos
motivam a pensar o Brasil: “O Morro não tem Vez” (1963) de
Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim; “Opinião” (1964) de Zé Keti; “Alvorada”
(1968) de Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho.
São
sambas que se tornaram legendas na história do Brasil por várias razões: a primeira por contar os modos de insurgência das
populações negras e sua competência para fundar territorialidades que recusam o
recalque à sua alteridade civilizatória; a segunda pela poesia que
nos emociona e nos leva a dramatizar por meio da dança e da ginga as situações
que carregam a pulsão de sociabilidade africano-brasileira.
O
samba apresenta narrativas, desdobramentos das células comunitárias,
responsáveis pela origem das cidades, a arquitetura compondo em seu traçado
urbano elos de ancestralidade, cosmogonias, hierarquias e instituições.
Cartola integra a Ala de Frente da Mangueira
“Alvorada
lá no morro/ Que beleza/ Ninguém chora/ Não
há tristeza/ Ninguém sente dissabor/ O sol colorindo é
tão lindo/ É tão lindo/ E a natureza sorrindo/
Tingindo,
tingindo” (Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Belo).
É
preciso chamar a atenção do leitor para a necessidade de transcender o discurso
geográfico, mensurável e estático que, esquadrinhando os espaços, diz o que é,
e deve ser o “morro”. O morro aqui é uma metáfora! Em cena estão todas as
territorialidades no Brasil imantadas pelo patrimônio de valores e linguagens
africano-brasileiras.
Pintura de Heitor dos Prazeres
“Podem
me prender/ Podem me bater/ Podem, até deixar-me sem comer/ Que eu não mudo de
opinião/ Daqui do morro/ Eu não saio, não.” ( Zé Kéti)
De um lado a geografia e o traçado
urbano eminentemente africano-brasileiro com suas instituições e hierarquias; de
outro o asfalto (parafraseando Marco Aurélio Luz) com a sua a geografia
civilizatória racista e seu traçado urbano asséptico produtivista, voltado para
a acumulação de capital.
Zé Keti, Cidadão Samba
“A vida não é só isso que se vê, é um pouco
mais/Que os olhos não conseguem perceber, e as mãos não ousam tocar, que os pés
recusam pisar/Sei lá não sei, sei lá não sei não/ Não sei se toda beleza de que
lhes falo sai tão-somente do meu coração/Em Mangueira a poesia num sobe e desce
constante, anda descalço ensinando um modo novo de a gente viver, de cantar, de
sonhar, de vencer/ Sei lá não sei, sei lá não sei não, a Mangueira é tão grande
que nem tem explicação.” ( Hermínio Belo de Carvalho e Paulinho
da Viola)
Paulinho da Viola
Todos
os sambas que destaquei falam das tensões e conflitos entre a singularidade
africano-brasileira e as políticas genocidas e de abandono que desencadeiam uma
dinâmica da violência que vem ceifando a vida de milhares de homens, mulheres, crianças
e jovens.
“Escravo
no mundo em que estou/ Escravo no reino em que sou/ Mas acorrentado ninguém
pode amar/ Mas acorrentado ninguém pode amar/ Chora, mas chora rindo / Porque é
valente/ E nunca se deixa quebrar/ Ah, ama, o morro ama/ Um amor aflito, um
amor bonito/ Que pede outra história.” ( Carlos Lyra)
Apesar
de todas essas agressões cotidianas,
não esqueçamos a
imponência e altivez do povo negro que não abre mão do direito de ser e viver suas
instituições como as “pequenas Áfricas” no Rio de Janeiro, como se referiu
Heitor dos Prazeres às comunalidades sob a liderança feminina das baianas como
Tia Ciata.
Heitor dos Prazeres
“Eu
sou o samba/ A voz do morro sou eu mesmo sim senhor/ Quero mostrar ao mundo que
tenho valor/ Eu sou o rei do terreiro/ Eu sou o samba/ Sou eu quem levo a
alegria/ Para milhões de corações brasileiros/ Salve o samba, queremos samba/
Quem está pedindo é a voz do povo de um país/ Salve o samba, queremos samba/
Essa melodia de um Brasil feliz.” ( Zé Kéti)
O
que isso significa? A institucionalização de políticas públicas que contemplem
direitos coletivos capazes de estabelecer espaços institucionais de combate ao
racismo e suas engrenagens ideológicas, que tendem a tragar a vida e submeter as
populações negras a situações marcadas por muita dor e humilhação.
Então,
cantemos a “voz do morro” num coro uníssono, fazendo repercutir entre gerações
o respeito aos valores das comunalidades africano brasileiras e o direito de
ser e viver suas instituições.
“O
morro não tem vez/ E o que ele fez já foi demais/ Mas
olhem bem vocês/ Quando derem vez ao morro/ Toda
a cidade vai cantar/ Samba pede passagem/ Morro
quer se mostrar/ Abram alas pro morro/ Tamborim
vai falar/ É um, é dois, é três/ É cem, é mil!”(Vinícius
de Moraes e Antônio Carlos Jobim)
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