segunda-feira, 3 de março de 2014

AGADÁ


Entrevista a Lago Júnior


Discípulo de Michel Maffesoli, com quem travou conhecimento durante seu pós-doutorado na Universidade da Sorbonne, na França, o professor Marco Aurélio Luz acaba de lançar uma obra de porte: Agadá – Dinâmica da Civilização Africano Brasileira. São 726 páginas e mais de 150 referencias bibliográficas que sustentam uma inovadora tese: o processo civilizatório negro no Brasil é um continuum da história e da tradição de sua negra irmã África, não podendo ser visto separadamente.
Interessado na tradição africano brasileira desde a década de 70, este carioca radicado na Bahia há mais de 10 anos é professor aposentado pela Universidade Federal da Bahia, participou de duas entidades que absorvem e difundem a tradição e a cultura negra no Brasil: a Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil (Secneb) e do Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro-Brasileira (Intecab). Seu livro agora re-lançado  pelo Centro Didático e Editorial da UFBA relata em quatro partes sua teoria político-analítica da civilização negra brasileira, onde ele nega o positivismo e cientificismos e acusa de ranço da vida acadêmica nacional de querer ‘’embranquecer’’ este Brasil multicor. Adiante a palavra do autor, em entrevista à ATC. (A TARDE CULTURAL).

A Força do Negro está na sua própria civilização

A TARDE Cultural – Professor, em que sentido o seu livro pode ter trazido uma nova leitura sobre a formação da civilização africano-brasileira?
Marco Aurélio Luz – Eu acho importante demarcar que os princípios inaugurais da civilização africana; os princípios de valores e de linguagem que sustentam, vamos assim dizer, toda uma visão de mundo de uma civilização, de uma tradição milenar, foram transpostos para a América, especificamente para a Bahia.
No que se refere a determinados polos, houve a continuidade desses princípios, mantendo essa dimensão muito antiga, milenar, porque eles se caracterizam por uma continuidade de uma civilização que se constituiu desde tempos muito antigos na África. Traspostos para o Brasil, eles se adaptaram, se caracterizaram de uma forma própria, mas mantiveram intactos os princípios fundamentais. Desse modo se pode encarar essa continuidade como uma coisa fundamental, nova, no sentido de se perceber que essa tradição africano-brasileira ela remonta a um passado da humanidade muito rico e significativo, e nós temos que perceber essa riqueza do patrimônio na nossa sociedade.       
- Seu livro tem 726 páginas, mais de 150 referências bibliográficas. Quanto tempo levou este seu trabalho, como foi seu processo?
M.A. – Evidentemente que isto é uma experiência muito grande, quer dizer, a partir de 1970 comecei a tentar fazer uma reflexão sobre a tradição africano-brasileira. Mas esse livro, especificamente, foram uns cinco anos de trabalho.
- Professor, no livro o senhor se refere a uma ‘’pujança’’ da cultura negra, atualmente. Como é que isto se dá?
M.A. – Eu sinto, em primeiro lugar, que há uma crise de valores da cultura europeia, por conta daquele paradigma de progresso, do positivismo, do progresso a qualquer custo, que encantou, vamos dizer assim, que esse progresso garantisse a felicidade da humanidade, isso caminhou e... caiu num colapso. Essa ’técnica’ levou a um desgaste da natureza muito grande e levou a guerras que ameaçaram a destruição do planeta, e a exploração da força de trabalho também num índice muito grande deixando populações enormes do globo em carências muito significativas. Então, tudo isto que no século XIX foi propagado pela utopia dos iluministas, dos positivistas, dos cientificistas... chegou a um limiar de crise muito grande. De modo que um novo pensar sobre uma nova ética da humanidade não pode deixar de levar em consideração a preservação do planeta, e esta preservação na tradição africana é uma coisa fundamental. Quer dizer, sem a natureza a relação com o sagrado não se estabelece, não se estabelece com o além, e sem as relações de sociabilidade, colocadas de uma forma em que haja um equilíbrio harmônico, não é possível a comunalidade, a polis, no sentido grego mais tradicional da palavra.
- O senhor está dizendo que na realidade o ambientalismo, a ecologia, já era pensado na tradição da civilização africana?
M.A – Ah, é.
- Mesmo de forma conceitual?
M.A. – Mesmo de forma conceitual. Mas sempre na linguagem do mito.
- O senhor diz no livro que o conhecimento acadêmico referente as questões do processo civilizatório negro na constituição da nossa nacionalidade, é ‘’equivocado’’. Explique um pouco mais desta ideia.
M.A. – É equivoca porque a Universidade sempre se constituiu como um saber articulado com o poder de Estado. Quer dizer, ela visou a dar força conceitual a um poder de Estado de origem colonial e neocolonial. Então o pensar sobre o negro a partir desses umbrais da Universidade sempre foi feito de uma forma, ligada a uma política, que ainda hoje nós temos repercussão dela no Brasil, que é a política de embranquecimento ou branqueamento, projetada desde a independência do Haiti pela Inglaterra, no sentido de que numa situação como a do Haiti que tem 95 por cento de população negra poderia gerar outra independência similar. E um dos países mais característicos dessa situação era o Brasil. Então, a partir de Dom João VI, começa- se uma política de abrir espaços territoriais no Sul do Brasil para a emigração de europeus ao mesmo tempo que se vai fazendo o que se chamaria depois de uma política de abandono do Nordeste. Há uma série de documentos em relação a essa política. E a Universidade dá subsídios sobre isso, dizendo sempre que, de uma forma ou de outra, o africano é inferior ao europeu, ao homem branco, etc e tal. Os trabalhos do consagrado professor Nina Rodrigues da faculdade de Medicina da Bahia no início do século XX vão nesse sentido, ele fez suas elaborações psiquiátricas para dizer que o negro era psicologicamente inferior. O que depois é retomado por Arthur Ramos no mesmo sentido. E isto continuou em todas as elaborações ideológicas em torno da mestiçagem, da democracia racial, mas sempre no sentido do embranquecimento.
- O senhor fez parte da Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil – Secneb – E do Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro- brasileira – Intecab. Presumem-se entidades participativas na afirmação dos valores afro-brasileiros. Como então vê as entidades que se dizem organizadas através do Movimento Negro Unificado?
M.A.- O movimento negro é uma coisa muito genérica, porque desde que nós estamos falando aqui de todas as tradições, de Palmares etc, já é o movimento negro. Não há um movimento negro a partir de ontem e tal. Agora, o movimento negro unificado é uma tentativa política de agir no nível da esfera política da sociedade oficial, como uma forma de ocupar espaço. É como o Abdias Nascimento tentando entrar no Congresso vestindo um abada (roupa africana), foi como o cacique Juruna querendo entrar em trajes de seu povo também no Congresso. Aí disseram que ali só pode entrar de paletó e gravata. Colocando isto de uma forma metafórica, para entrar no político você acaba tendo que se adaptar as fórmulas da linguagem da luta política oficial.
- Pode-se ver nisto que há uma crítica ao movimento negro?
M.A.- É. Nesse nível, houve um certo namoro de movimentos negros com o que está colocado aí em termos de crítica ao Estado,  à burguesia, por assim dizer, que foi marxismo. Flertou com o marxismo, com o PT..., onde para nós o conceito de classe é insuficiente. De um lado, para de perceber toda a luta de um continuum civilizatório, de uma população que não se caracteriza por essa combinação de classes, de luta de classes, por outro lado você censura de certa forma isto, porque na medida em que você não percebe civilização e cultura no sentido de aceitar a alteridade, aceitar a diferença, aceitar o outro com sua tradição, os princípios, você vai querer dizer que o outro é alienado. Alienado no sentido de que ele não tem a perspectiva projetada, não tem a perspectiva do proletariado em termos organizados, em termos do partido político...
-Que acontece então?

  M.A.- Então você vai procurar cair nessa dimensão positivista, priorizar uma situação de entendimento do econômico e colocando aí a coisa sempre da exploração, e os mais explorados são os negros, que tem de se organizar dentro dessa dimensão para ocupar seus espaços. Então entram esses conceitos que estão numa dimensão muito ocidental do que é classe, raça e você se perde um pouco nisso. Denunciando, evidentemente, mas as suas reivindicações nunca adquirem uma forma de reprograma político próprio. E se afasta, nesta proposta apenas de denúncia, do contato, da integração com as instituições de tradição africano-brasileira; se afasta porque não as caracteriza como políticas, por não se envolverem nesse jogo do político institucionalmente organizado. Mas elas são políticas, evidentemente, na medida em que se organizam, se instituem e vivem o cotidiano social da sua forma própria, procurando seu espaço, sua temporalidade própria. É essa a luta que as comunidades desenvolvem, sempre no sentido de se reforçarem e conquistarem espaços institucionais próprios, territorialização para exercerem seu direito de ser brasileiros mas com esse legado dos seus antepassados, seus valores de civilização. 

**************
Entrevista publicada no Caderno Cultural do jornal A TARDE 17/06/1995

Nenhum comentário:

Postar um comentário