Por Marco Aurélio Luz
Essa
segunda parte, uma ousada coreografia, foi posteriormente censurada pela TV.
Mas
depois do quebra-quebra não surge a anomia, a desordem ou o caos. Ao contrário
emerge com o clip Remember the time, o novo com a projeção dionisíaca da
temporalidade pós-moderna, apontando para valores antiquíssimos das
civilizações humanas, alimentando a força imaginal constituinte de novas
utopias.
Uma
das características da pós-modernidade é a emergência da afirmação da
diversidade humana e da pluralidade cultural, mesmo que essa emergência venha
acompanhada de reações como ocorre com alguns movimentos intransigentes como
por exemplo na França e na Alemanha.
Portanto
esse novo, já foi aludido pelo clip Black or White nas imagens das crianças
brancas que metaforicamente pontuam a nova esperança de um possível verdadeiro
ecumenismo.
Em Remember the Time também elas estão lá, ao lado de Michael Jackson assistindo as filmagens.
Egito Antigo
.
Imagem disponível em michael_jackson_remember_the_time_1-9247
O
novo é portanto a crença num mundo mutante, mas ao mesmo tempo de valores
imperecíveis corno pode se decodificar da presença do gato e o ouro, matiz
dourado que transluz na encenação e abre a narrativa do clip.
O
ouro neste contexto não é símbolo de riqueza entesourada traduzido em
contabilidades monetárias, mas, por ser metal nobre, imperecível tange a
simbolização da dimensão inexplicável da eternidade do existir, gema de ouro.
Luminicencias
douradas marcam essa coreografia que conta uma estória do Egito faraônico. Um
faraó que querendo agradar sua esposa entediada oferece-lhe a apresentação de
algumas atrações espetaculares para que se divirta. Todavia ele perde o
controle quando um personagem misterioso e sedutor desperta nela a paixão. Com
seus soldados ele persegue o personagem que acuado some no invisível.
Poderíamos
perguntar, conforme se faz com as fábulas de Esopo, qual a moral da estória?
E
responderíamos primeiramente realçando o fato de todos os atores-personagens
serem negros. Isto porque durante anos de colonialismo, o Egito faraônico foi
representado, de forma deformada, embranquecido..., especialmente há alguns
anos atrás pela indústria do cinema de Hollywood.
Num
tempo, que ainda se prolonga, em que as ideologias racistas e positivistas
procuravam apresentar os povos não-brancos como inferiores através de
sofisticadas teorias, o Egito faraônico, berço das civilizações, causava um
impacto que precisava ser silenciado.
Imagem disponível em egito_antigo httpmisteriosantigos.50webs.com
Egito Antigo
Imagem disponível em black20 pharaohhttp://kamugere.wordpress.com/
Imagem disponível em http://africanhistory-histoireafricaine.com/
Entretanto, os movimentos de libertação do colonialismo e do imperialismo trouxeram em seu contexto intelectuais como Cheikh Anta Diop do Senegal, que dedicou-se em seus trabalhos em resgatar a veracidade étnica negra do Egito faraônico, constituído no baixo Egito e num tempo muito anterior as presenças de povos semíticos e indo-europeus e cuja formação étnica era totalmente distinta da atual população mestiça árabe-muçulmana que caracteriza o país na atualidade.
Imagem disponível em http://diop-docteur-HC http://www.sangonet.com/
Cabe
acrescentar, que Diop e outros intelectuais provocaram significativa revisão
das influências do Egito faraônico em diversos continentes, não só na África,
na Ásia e na Europa, mas também na América, comprovando relações entre a
civilização Egípcia e a dos Maia, Azteca e Inca, ocorridas há milênios.
Portanto é nesse Egito negro faraônico
resgatado que se desenvolve a dramatização da narrativa de Remember the Time.
Egito Antigo
Imagem disponível em http://ppretaegorda.blogspot.com.br
Além disso porém, a narrativa possui um significado transcendental.
É
que diante das atrações espetaculares, a rainha não se comove nem com a
destreza do malabarista, nem com o poder mágico do engolidor de fogo. Ela se
encanta porém com o personagem entidade, que semeia grãos, some e reaparece com
nova forma. Aquele que é capaz de abranger com sua ação os planos do visível é
do invisível. O que tangencia o mistério da gênese e portanto da ancestralidade.
Sabemos
que em geral na África e nas Américas negras, os papéis sociais masculinos e
femininos são diferenciados, todavia complementares. Enquanto os homens estão
mais voltados para a organização social comunitária, as mulheres estão voltadas
para gerir o equilíbrio e a harmonia cósmica uma vez tendo o poder sagrado de
lidar com ás forças da natureza.
O
poder feminino está ligado ao processo de gestação, a capacidade de
transformação do corpo da mulher, promovendo o desenvolvimento de um novo ser e
que a aproxima com as representações dos mistérios do interior da terra. O
mistério da sucessão de linhagens, o eterno ciclo de nascimento e morte,
envolve o desejo desperto de um poder feminino representado na narrativa por um
beijo do personagem etéreo na rainha, com as pirâmides, que guardam os
sárcófagos faraônicos, na paisagem do horizonte da janela.
Pirâmides
que representam a força de uma civilização alicerçada no culto aos ancestrais
veneráveis, corrente ininterrupta de vida e morte que garantem o estarmos hoje
aqui e agora... Na África e nas Américas negra, o culto aos ancestrais tem a
mesma pujança na constituição das alianças comunitárias.
Todavia
esse desejo e poder despertado na rainha preocupa o faraó, e como o lúdico não
está separado do sagrado, segue-se na narrativa a perseguição, o
esconde-esconde, até que o personagem misterioso é cercado pelos guardiões do
palácio e então some num redemoinho de pó de ouro; estava aqui, não está mais,
visível/invisível, estará sempre...
Esta
elaboração de aspectos transcendentais da existência, como indicou Muniz Sodré
no livro Samba o Dono do Corpo está representado na música negra pela
síncopa, a presença da ausência, o vazio, a batida que falta; presente,
ausente, presente num tempo mais forte.
Englobar
dimensões múltiplas da existência, ou do existir, o visível e o invisível é
característica da cultura negra, elaborações de conhecimentos envoltos numa
dimensão estética. Odara, é um conceito nagô onde o útil e o belo
constituem-se de forma única, bom e bonito é uma coisa só. Essa dimensão
estética do saber recorre a diversos códigos complementares que apóiam e
expressam a narrativa. Dança, canto, música, dramatização, vestuário,
coreografia, cenário, etc. se unem na harmonia da linguagem negra, e é o que
Michael Jackson realiza na TV.
Assim
como o negro americano já fizera com os instrumentos brancos criando o jazz
inicia-se um processo de Tv de cor, pós-moderna.
Notas
* Publicado no Caderno Cultural do Jornal A
Tarde, 1992.
Publicado no livro; http://www.cairu.br/biblioteca/arquivos/Diversidade_Cultural/Cultura_negra_tempos_pos_modernos.pdf