segunda-feira, 10 de novembro de 2014

A POPULAÇÃO AFRICANA E SEUS DESCENDENTES: A INCLUSÃO DO TEMA NO SISTEMA DE ENSINO



                                                                                     por Narcimária Luz

Os africanos e seus descendentes na perspectiva do mercantilismo escravista estão reduzidas a abordagem da escravidão, seus ciclos econômicos e as ¨rotas de escravo¨, onde a população africana aparece “[...] ao nível econômico, é apenas considerado força de trabalho a ser explorada, ´máquina econômica´; [...] a nível jurídico-político, é classificada como semovente, isto é, equiparados a bois, cavalos, etc., portanto sem nenhum direito, [...] ao nível ideológico, há um tremendo esforço para desculturalizá-la e representa-la como boçal, rude, primitiva e atendendo aos demais níveis: animal” (LUZ, 1983, p.67).
Aqui vale a pena parar para fazer alguns comentários urgentes sobre a representação do africano no contexto colonial. Se não vejamos: a história impressa e difundida pela Razão de Estado e as chefarias, através dos séculos, não poupam as crianças e jovens africano-brasileiros, submetendo-os ao discurso que representa os seus antepassados via pretensa identidade jurídica de escravos. Acreditamos que nosso mosaico se dedica a anunciar para essas gerações de descendência africana saibam que seus antepassados,nunca assumiram a identidade de escravos!
A ideologia oficial etnocêntrico-evolucionista institucionalizada no âmbito escolar, sugere as crianças, adolescentes e jovens que a população africana no contexto escravista incorporou a passividade, ignorância, desleixo, conformismo...
Para esses descendentes de africanos o constrangimento, dor e angústia afloram nos capítulos e /ou sessões que tratam da escravidão. Aliás o único espaço permitido oficialmente para a África e sua presença no brasil.
Os africanos e seus descendentes nessa abordagem escravista, lugar comum e equivocado do currículo escolar, aparecem como incapazes de insurgência, iniciativas políticas vigorosas e que deveriam ter destaque especial na escola.
Desde o século XVI os africanos fomentam insurgências face às políticas de genocídio e embranquecimento, tentando com afinco estabelecer condições para afirmar o seu direito ‘a existência e expandir o seu patrimônio civilizatório nas Américas. A riqueza e complexidade dessas insurgências estão censuradas na escola.
Vale a pena destacar alguns fatos histórico-políticos que magnificam a presença africana nas Américas, a exemplo dos valores quilombolas que estabelecem a independência do Haiti, derrotando o exército de Napoleão.



Dessalines líder da independência do Haiti. Imagem disponível na internet.




Comemoração da vitória da luta de independência do Haiti. Imagem disponível na internet.

No contexto da independência do Haiti é interessante o registro de que “[...] os negros festejaram a vitória, os quilombos constituindo a sociedade nacional. Os valores da sociedade africana se enraizavam e se expandiam nas Américas, na Afro-América. Nesse contexto, a terra possui uma dimensão sagrada. Na cosmogonia negro-africana, o ciclo da vida, o ritmo do universo está ligados à fertilidade da terra, à fertilidade dos grãos, no mistério do renascimento, da restituição e da gestação. A floresta, inesgotável fonte de vida, e a terra trabalhada, que proporciona abundantes e múltiplas colheitas, proporcionando o alimento, não estão dissociadas do culto aos ancestrais e aos voduns. A terra contém o mistério do além: é para ela que caminhamos e seremos restituídos, completando nossos destinos.” (LUZ, 2002, P.39)




Retomada da memória do Quilombo dos Palmares.Subida da Serra da Barriga. Mãe Hilda Gitolu e Abdias Nascimento, Passarinho e outros. Imagem disponível na internet.



Comemoração recente no Parque do Quilombo dos Palmares. Imagem disponível na internet.


No Brasil Palmares refletiu de modo extraordinário as estratégias de afirmação socioexistencial africana no contexto do mercantilismo escravista abrigando uma imensa ”[...] população para a época, de mais de 30 mil habitantes, espalhados por diversas comunidades que absorveram africanos de distintas origens, aborígines de diversas aldeias e brancos de variadas nações européias. [...] A afirmação palmarina contrariava a estrutura social colonial baseada na guerra terrorista de apreensão e tráfico de seres humanos, a exploração do trabalho forçado sob tortura (característica do regime europeu da escravidão), a destruição de florestas para estratégias bélicas de desocultar o inimigo, e para grandes plantações de monocultura, cujos produtos eram enviados para as metrópoles coloniais a baixo custo, onde as aspirações à acumulação incessante de capital serviam para se alcançar o poder e a glória. [...] Palmares difundiu-se no Brasil em um sem-número de quilombos que garantiram a afirmação socioexistencial do povo negro e seus valores civilizatórios. Muito antes assim da chamada abolição da escravatura, proclamada a Lei Áurea, os negros já eram livres” (LUZ, 2002, P.28)

Outra perspectiva perversa é a historiografia eivada da leitura marxista, que procura Outra perspectiva perversa é a historiografia eivada da leitura marxista, que procura afirmar que: [...] os escravos não tinham consciência de classe sofriam e reagiam à sua miséria, mas não tinham consciência de classe porque não estava integrados à produção-era uma propriedade de seu senhor. A escravidão deturpou e inibiu a consciência crítica do escravo,que passou a agir e a ser estritamente o que era:escravo,massacrado física e psicologicamente pelos padrões das classes dominantes.”(CHIAVENATO,Júlio José.p.144)
O autor não entende que o africano jamais abdicou de sua identidade original e não aceitou a identidade e a consciência de classe de escravo, e lutou de todos as formas para manter viva as suas instituições mantendo sua alteridade civilizatória.

“A insuficiência do instrumento marxista também se caracteriza pela dificuldade de aceitação da alteridade, e nesse ponto o evolucionismo burguês com sua idéia de riqueza e de progresso foi absorvida pela ideologia "proletária"; o socialismo materialista como o capitalismo, e o comunismo, são englobados na categoria de "evolução" ou de "etapa superior" da organização social. A dificuldade na percepção da alteridade, a repressão à admissão do outro embutida na mecânica "marxista", baseada no conceito de luta de classes como "motor da história", fica evidente neste texto de MARX, (1966, p. 651):
 ‘Um negro é um negro; não é senão em certas condições que ele se torna escravo. Esta máquina, por exemplo, é uma máquina de fiar algodão. É somente em determinadas condições que ela se torna capital. Fora dessas condições, ela é tão pouco capital como o ouro por si mesmo seria moeda, do mesmo modo que o açúcar não é o preço do açúcar... O capital é uma relação de produção. É uma relação de produção histórica. ’
Ora, se por um lado o texto se caracteriza por qualificar as relações de produção historicamente determinadas como a base do valor, por outro ele caracteriza, através da tautologia, "um negro é um negro" o recalque à alteridade, pois que resta ao negro, nesse discurso, o mesmo destino das outras coisas, isto é, máquina e açúcar, que fora das relações capitalistas escravistas seriam máquinas e açúcar, simplesmente.
Essa tautologia, um negro é um negro, encobre a identidade negra que se alicerça e se estrutura através dos valores e da linguagem de um processo civilizatório milenar, muito anterior ao escravismo do século XVI. .(LUZ, 1995,80)

E mais,

“No discurso marxista, esse espaço provocado por esse recalcamento vai ser preenchido por um deslocamento de outra cena que mascarará o real processo de acumulação primitiva capitalista de um lado e a alteridade civilizatória negra de outro”.
É nesta cena que atuarão, muitas vezes, como forma de recalcamento, o conceito de mais-valia aplicado às relações burguesia/proletariado, acentuadas como sendo à base de constituição ou exploração capitalista, e o de consciência de classe aliado ao de alienação, muitas vezes para justificar o "verdadeiro homem do mundo novo socialista", desalienado e assumindo essa consciência de classe.
A noção de classe passa a operar então como elemento de representação recalcada da verdadeira ordem de exploração e operação mundial, que é, na verdade, a do mundo branco sobre os não brancos, ou ainda dos valores do continente europeu sobre os valores das outras civilizações do globo; que pode então ser percebida mais do que simples exploração, um etnocídio”. (LUZ, 1995,80)


Aqui vale a pena lembrar o universo de sabedoria palenques ou quilombolas da guerra dos dez anos pela independência de Cuba, protagonizada por africanos sob a liderança de Antônio Maceo.




Antonio Maceo líder das lutas de independência de Cuba. Imagem disponível na internet.


“[...] Para Maceo, a luta da independência e o fim da escravidão eram uma coisa só. Essa luta era conseqüência natural dos esforços de libertação dos palenques, que desgastaram os espanhóis durante todo o período colonial. Uma luta heróica em que sobressaíam os chefes palenques Cobas, Augustin ou Gallo; Moa Tiguabos e outros que o povo negro cubano guarda na sua história. [...] Os palenques ocupavam significativa área liberta nas montanhas da ilha e ameaçavam banir os espanhóis, como acontecera no Haiti. O exército de Maceo, apoiado pelos palenques, acabava com a escravidão nas áreas em que vencia os espanhóis. esse desdobramento da luta anticolonialista dos palenques empurrou a burguesia (inclusive a pequena burguesia) a ingressar no processo de independência.” (LUZ, 2002, P.43)

 Seguindo as mesmas referências de estratégias dos palenques no século XIX, utilizando as montanhas da ilha, em 1959 a revolução cubana sob a liderança de Fidel Castro os camponeses que formavam a base de apoio da guerrilha consegue retirar do poder o ditador Batista.
Vale a pena incluir nessa perspectiva sobre Cuba o comentário de Wole Soyinka nigeriano, Prêmio Nobel de Literatura:
“[...] Ogum por sua parte se torna não só o deus da guerra, mas o deus da revolução no contexto mais contemporâneo-e isto não se dá meramente na África, mas nas Américas, para onde seu culto se espalhou. Como os suportes católicos romanos do regime de batista em Cuba descobriram demasiadamente tarde, deviam ter-se preocupado menos com Karl Marx e mais com Ogum...” (LUZ, 2002, P.45)




Espada do orixá Ogun no Daomey, foto de Pierre Verger. Disponível em fernandodeogum.blogspot.com.br 

Continuando a nossa reflexão ainda temos que considerar uma outra abordagem apresentada a partir da bacia semântica neocolonial e imperialista que alimenta o discurso midiático que se estende à escola. A ênfase desse discurso sobre a África é a miséria absoluta,completamente destruída,imersa a barbárie e o pior de tudo,é  que atribuem aos povos africanos a responsabilidade pela anomia que os aflige.
Cabe aqui uma ilustração que identificamos num livro de ensino Fundamental, 3ª série. Nele a noção de axé, princípio dinamizador fundamental à cosmogonia e linguagem litúrgica do povo nagô, está submetida à banalização, exotismo e total esvaziamento do universo simbólico do contínuo civilizatório africano nas Américas.
A ênfase do conteúdo que introduz um dos capítulos com o título: ”Axé Bahia!”. A autora trata de forma metonímica e na perspectiva colonial a  Bahia,através da analítica da finitude do mapa geográfico(clima,relevo,vegetação,fronteiras,hidrografia);sugere que as crianças investiguem sobre os brasões,armas,bandeira,hino,símbolos do município de Salvador e da Bahia; escreva um livro ilustrado sobre Joana Angélica,Maria Quitéria,Ana Nery,castro Alves e Ruy Barbosa;por fim,sugere que os alunos façam um projeto denominado “Bahia a terra mágica do axé”.



As Ganhadeiras de Itapuã se apresentam no Festival Awon Eso do PRODESE, Programa de Descolonização e Educação. Foto PRODESE




Grupo Abolição promove roda de capoeira na ACRA Associação Crianças Raízes do Abaeté. Foto ACRA.
 Percebam que não está sendo considerado o conhecimento da episteme africano-brasileira para abordar a territorialidade Bahia, e transcender o discurso produtivista e consumista que insiste no projeto da Bahia” moderna” mediada pela ordem e progresso imperialista. Os símbolos enaltecidos correspondem a ética e estética do patrimônio ibérico-colonial.Entre as personalidades em destaque não estão incluídas as lideranças exponenciais das comunalidades de base africana na Bahia.
A Bahia vista como “mágica” reflete as projeções do exotismo e divertimento turístico, produto vendido principalmente para o exterior de forma abusiva, caricaturando completamente o nosso solo de origem.
Para as crianças de comunalidades africano-brasileiras, encontrar o princípio de axé no âmbito da escola, e vê-lo banalizado e de forma desrespeitosa é uma agressão!
Nas comunalidades africano-brasileiras a religião atravessa toda a dinâmica de organização social, e nesse âmbito a noção nagô de axé estabelece. 



Exposição de esculturas de Marco Aurélio Luz em evento do PRODESE. Foto PRODESE



Apresentação do auto coreográfico A Chuva dos Poderes de Mestre Didi na Mini Comunidade Oba Biyi.  Foto M. A. Luz

“[...] uma relação de constante tensão dialética entre esse mundo e o além, entre o aiyê e o orun, conforme a conceituação nagô”.
A comunicação entre esses dois mundos se dá através de uma concepção vitalista do mundo, que se caracteriza pelo conceito de axé para os nagôs ou muntu para os congo. Axé é um conceito que exprime a idéia de forças circulantes capazes de engendrar a criação e a expansão da vida. O ciclo vital caracteriza o ritmo do universo por sucessivos processos de renascimentos.
Ritualmente, o ciclo vital culmina com as cerimônias de axexé. Axexé é origem das origens, e é quando se celebra a passagem de um ara-aiyê ser humano habitante do aiyê para o orum Esta passagem caracteriza uma elaboração de morte que compreende o conceito de restituição. "Vai-se para dar lugar a outros", diz o ditado. Uma vez restituídas de axé as forças que regem o universo são capazes de engendrar novos nascimentos e expandir a criação. ”(LUZ,1995,ps34 e35)

Que educadores são esses? Até quando nossos filhos ficarão submetidos a professores destituídos de uma compreensão dos povos cujas civilizações fundam nossa territorialidade?
Aqui cabe a lembrança da música de Gilberto Gil e Gegê, Tempo Rei que serve como um alerta aos currículos instituídos a partir da bacia semântica “greco-romana” e sua influência na constituição do ocidente: “...de um momento para o outro poderá não mais fundar nem gregos nem baianos: (grifos nossos).
Certa vez realizei um estudo envolvendo futuras pedagogas baianas visando identificar se ao longo de sua formação, haviam elaborado um discurso próprio ancorado à territorialidade baiana.
Apesar de suspeitarmos de antemão da não existência de uma elaboração teórico-metodológica original enriquecida pelo ethos envolvente, ficamos perplexos ao constatarmos que os futuros pedagogos sabiam repetir de forma metonímica sem nenhuma emoção, teorias e jargões técnicos da territorialidade euro americana; e nada, nada mesmo sabiam dizer ou expressar, sobre a nossa realidade de base africana. E o pior, não tinham adquirido competências para extrair da territorialidade baiana, elementos pedagógicos necessários ao fortalecimento da identidade infanto-juvenil da nossa população.







Imagens do evento do PRODESE

Acreditamos que essa é a tendência histórico-política dos cursos de formação de educadores, principalmente pelo impacto contemporâneo da herança colonial que ainda estabelece os valores do currículo na formação de educadores.


















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