Um dos maiores historiadores do país, Joel Rufino dos Santos, deu à literatura esportiva um dos livros mais importantes, fundamental para aqueles que querem conhecer as raízes do nosso futebol, especialmente pesquisadores, jornalistas e estudiosos do tema.
“História
Política do Futebol Brasileiro” (Editora Brasiliense, 1981) é, portanto,
leitura obrigatória. O autor mostra logo no prefácio que é apaixonado pelo tema
futebol, não apenas pelas histórias geradas, mas também pelo folclore e lendas
geradas por ele: “Este livro é dedicado a Mão de Vaca, único goleiro vesgo da
História do Brasil, que, no falecido campo do Tomás Coelho F.C., se
especializou em defender pênaltis em tardes de domingo. E a Paulo César Lima,
que conhece o poder da bola”.
Literatura
na Arquibancada destaca abaixo dois trechos da obra. Primeiro a introdução. E
logo a seguir, um dos capítulos batizado por “Juventude” (referente ao período
que o futebol atravessou em sua história). Tanto na introdução como neste
capítulo, Joel Rufino dos Santos destaca a importância de um dos craques do
futebol brasileiro no contexto da “história política” do futebol brasileiro,
tema da obra. Trata-se de Fausto, apelidado de “A Maravilha Negra”, que morreu
precocemente, aos 34 anos, no ano de 1939. Portanto, em 28 de março de 2014,
são 75 anos de sua morte.
INTRODUÇÃO
Por Joel Rufino
Dori Kruschner
Certa
manhã de fevereiro de 1937, desembarcou, todo lampeiro, na Praça Mauá, Rio de
Janeiro, o técnico húngaro Dori Kruschner. Vinha precedido, naturalmente, do
enorme prestígio que sempre cerca, no Brasil, os técnicos de qualquer coisa.
(Alguns anos antes, por exemplo, um geólogo americano, Mr. Oppenheim, levantara
tremenda polêmica no país, ao afirmar, categoricamente, que não tínhamos
petróleo.) Dia seguinte já estava exibindo na Gávea, o boné quadriculado, o
apito na boca, as pernas de leite.
Nossos
times arrumavam-se em campo ainda como no tempo de Charles Miller: goleiro –
dois zagueiros – três médios – cinco atacantes. Kruschener vinha trazer uma
outra arrumação, considerada superior, o WM: goleiro – três zagueiros – dois
médios – dois meias – três atacantes. Trazia, além disso, o individual,
ginástica puxada, sem bola. E a medicine-ball. O Feiticeiro de Viena, embora
ele fosse de Budapeste, ia atualizar o nosso futebol.
Naquele
primeiro treino, ele escalou um negrão alto e magro de zagueiro, para jogar
entre os outros dois. Sua função principal era marcar o centroavante
adversário. O negrão torceu o nariz mas não disse nada. Quinze minutos de
treino, tinha-se mandado dezenas de vezes ao ataque, como sempre fizeram os
centro-médios brasileiros. O húngaro parava o ensaio, o negrão se mandava de
novo. O cartola José Padilha se invocou. Enquanto fosse o presidente do
Flamengo aquele moleque não vestiria mais a camisa rubro-negra! O jogador levou
a questão à Primeira Vara Cível, pedindo passe livre. Perdeu.
Meses
a fio, comparecia ao escritório do cartola. Não era recebido. Os amigos pediram
por ele: afinal, se tratava da melhor bola do país. “Só se pedir penico. E
publicamente”, respondia o dirigente. Um dia, os jornais apareceram com uma
estranha carta: “rogando ao muito digno técnico de futebol do Flamengo a grande
gentileza de desfazer, perante o Sr. Padilha, o mal-entendido”...E cocoreco,
cocoreco, bico de pato. A maior humilhação a que um jogador de futebol já foi
submetido neste país. Arriava as calças.
Quando
saiu a convocação para a seleção da Copa do Mundo de 1938, ele estava
tuberculoso. Ninguém falou na carta, nem da doença. Muito menos na relação
entre as duas. No primeiro individual de 1939, o crioulo teve uma hemoptise.
–
Você tem de se internar – diziam os amigos.
–
Ainda não – ele respondia. – Quero mostrar que sou mais eu. E gringo nenhum, de
fala difícil, é melhor do que o papai.
–
O futebol evoluiu – insistiam. – A nova lei do impedimento acabou com o
centro-médio.
Ele,
que sempre tinha respostas prontas, baixava a cabeça.
Manhã
de 28 de março de 1939. Um sanatório perdido nos cafundós de Minas. A irmã bate
na sala do diretor para avisar que o 301 morreu. O diretor assume um ar de
critério e pergunta:
–
Sabe quem era aquele crioulo?
–
Era...Era a Maravilha Negra.
É
difícil encontrar um brasileiro que não tenha a sua história de futebol. Meu
pai, por exemplo, contava que viu Lelé arrancar as balizas do velho campo do
Madureira com um petardo da zona do agrião. Eu prefiro esta, de Fausto dos Santos,
a Maravilha Negra, embora seja uma história triste. É que nela está o retrato
de corpo inteiro do nosso futebol: a arte popular em luta contra os sistemas de
jogo importados.
Quando
a Maravilha Negra morreu, 1939, o futebol atingia, no Brasil, a sua idade
adulta. Estava definitivamente popularizado e profissionalizado. Durante os
vinte anos seguintes viveu, então, o seu apogeu, para declinar – talvez – em
seguida. (“Talvez” porque ninguém, exceto as ciganas, pode adiantar o futuro.)
Assim,
na primeira parte deste livro, vou mostrar como e por que o brasileiro começou
a jogar futebol – entre 1894 e 1920.
Na
segunda, mostrarei como e por que o futebol se popularizou, virando uma profissão
– mais ou menos entre 1920 e 1940 – passando por uma transição que sacrificou a
muitos, e, em especial, a este gigante que foi Fausto.
Na
terceira parte retratarei o apogeu do nosso futebol – de 1940 a 1960. E,
finalmente, na última seção do livro, buscarei, junto com o leitor, as razões
da crise atual.
Como
nas melhores novelas policiais é esta uma história de sangue, amor e subversão
numa trama diabólica.
JUVENTUDE:Um pretinho do Maranhão foi o pai dos centros-médios brasileiros
Um
pretinho do Maranhão foi o pai dos centros-médios brasileiros“Fausto trabalha
como um escravo. É possível que todos os center-halves brasileiros trabalhem
como escravos? Será por isso que todos eles são negros?” Será por isso que
todos eles são negros?” Isto está escrito, no El Diluvio, um jornal de Madri,
no ano de 1931.
Quem
foi o maior craque do Brasil?
Cada
qual tem a sua resposta. O mais seguro, porém, é responder à mineira: depende.
Cada
época teve o seu maior, aquele que desequilibrava jogo. Na época do amadorismo,
foi Fried, disparado.
Na
fase de transição do amadorismo para o regime profissional – adotado em todo o
país no ano de 1933 – foi um preto maranhense que deslumbrou o Brasil, a Europa
e o Rio da Prata.
Fausto dos Santos, a Maravilha
Negra.
Fausto, com a camisa do Barcelona
Sabemos
muito pouco da sua infância: nasceu no interior do Maranhão, numa família
paupérrima, no ano de 1905. O futebol mal tinha se firmado no Rio e em São
Paulo e o pretinho alto e bem equilibrado já chutava uma bola de bexiga numa
fazenda de Codó. Em 1926, jogava nos amadores do Bangu, time de fábrica da
Capital Federal, já impressionando pelas qualidades que desenvolveu depois: o
controle da bola, a visão de jogo, a elegância e a garra com que disputava uma
partida, do começo ao fim. Em 1927, transferiu-se para o Vasco da Gama,
primeiro time brasileiro a aceitar crioulos no seu plantel. Iniciava, sem
saber, a sua via crucis.
Por
que via crucis? Fausto sempre jogou futebol com raiva. Ia na bola como num
prato de comida. Jogava sério e encarava o futebol como meio de escapar à
pobreza, ganhar dinheiro para poder desfrutar a vida em gafieiras e
rendez-vous, muita cachaça e violão. Os críticos chamavam-no de tudo –
mercenário, acomplexado, exibido – as mesmas acusações que fizeram depois, em
outras épocas, a Zizinho, a Jair, a Didi, e, hoje em dia, a Paulo César.
Só
não o chamavam de ingênuo. Fausto nunca confiou em cartolas. Nem teve ilusões
sobre a discriminação racial, que no seu tempo já era ostensiva. Não alisava o
cabelo. Não frequentava a alta sociedade, embora por curto tempo andasse com o
bolso recheado e o retrato diariamente nos jornais. Quando tentavam feri-lo
dava o troco na hora, ganhando a fama de rebelde, mas também o respeito dos que
jogavam com ele.
Fausto
Fausto gozou da máxima popularidade permitida a um artista, antes do advento do rádio. Até mesmo Fried, que fora longe demais, ficou em segundo plano, pois Fausto se exibiu para plateias muito maiores, no Brasil e exterior. A diferença maior entre os dois estava, porém, naquilo que ambos pensavam de si próprios. Fried encarava o futebol como status, Fausto como profissão. Ele foi, com efeito, o primeiro proletário consciente do nosso futebol.
Das
conversas com sua mãe, e com os amigos – o incrível Jaguaré da Saúde, Tinoco,
Russinho –, das muitas entrevistas que dava, sempre de cara amarrada, se deduz
que todo seu esforço era para viver do futebol – não se promover através dele,
mas viver dele. Tal esforço, numa fase carregada ainda de preconceito contra o
jogador profissional, sobretudo o de origem pobre, consumiu-o.
A
carga era, de fato, pesada. De amador – e nunca lhe pagaram a metade do que
valia – queria passar a profissional; da várzea, queria passar a estrela
internacional – e todos os seus contratos no exterior foram rescindidos
dramaticamente, no Uruguai, na Espanha, na Suíça; de “carregador de piano”, no
modesto Bangu, quis passar a primeira estrela do Vasco e do Flamengo – e a
cartolagem, certa feita, chegou a impedi-lo de jogar, acionando, para consumar
a arbitrariedade, até mesmo o Departamento de Censura Federal.
O
conflito com Kruschner, técnico húngaro de enorme prestígio nos anos 30, que o
empurrou para a humilhação e o sacrifício, ficou como exemplo do massacre a que
estão sujeitos os que não se submetem – mas são fracos, e isolados, para
resistir. Formalmente, o técnico estrangeiro tinha razão: a nova lei do
impedimento, editada em 1925, matara o centro-médio. A questão, porém, era de
fundo: arte popular contra sistemas importados de jogo. As poucas vozes que
então se ergueram para aprofundar o problema foram abafadas por um velho e
arraigado preconceito da nossa crônica esportiva: o de que futebol nada tem a
ver com política.
Nos
dois últimos anos de vida, Fausto criou a escola de centro-médios brasileiros:
matada no peito, passadas elegantes, cabeça em pé, passe perfeito a qualquer
distância. O meio de campo se tornou depois dele – e ainda é, cinquenta anos
depois – a posição do “cobra” do time.
A
cada jogo, precisava provar que aquela inovação do WM era má. Terminava o
primeiro tempo botando os bofes pela boca, e não aguentava o segundo. Ou
invertia, poupando-se no primeiro para deslanchar no segundo. Adiantava? Não.
Os críticos se enchiam mais de razão: Kruschner é que estava certo. O futebol tinha
de evoluir. Em todo o país, começou a se jogar no WM.
Diante
da realidade, o menino preto de Codó, que um dia pusera a Europa de joelhos,
mais parecia um guerrilheiro desarmado.
Sobre
o autor
Joel
Rufino dos Santos é carioca nascido em Cascadura, subúrbio do Rio de Janeiro.
Historiador, Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Foi professor da
Graduação e da Pós-Graduação nas Faculdades de Letras e Comunicação da UFRJ.
Foi co-autor de um dos marcos da historiografia do Brasil com o livro História Nova
do Brasil. Foi preso político na ditadura e escreveu de dentro do presídio
cartas a seu filho Nelson a fim de explicá-lo de que não tinha feito nada de
errado. Num misto de poesia, história, realidade e ficção, Joel Rufino faz
florescer sua literatura para crianças. As cartas foram publicadas em 2000 no
livro Quando voltei tive uma surpresa. Foi com seus textos infantojuvenis que
recebeu dois prêmios Jabutis e duas indicações ao Prêmio Hans Christian
Andersen (Dinamarca), considerado o prêmio Nobel da literatura infantil e
juvenil. Em uma fase grande de sua vida, militou em prol dos negros e da
visibilidade da cultura popular brasileira. Sempre a favor dos menos
abastecidos, como ele foi, aceitava com simpatia os cargos públicos que
possibilitavam lutar a favor da cultura afrobrasileira.
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