sábado, 20 de maio de 2017

TEMPOS DE “QUERELAS DO BRASIL"


Por Narcimária C. P. Luz[1]



Foto disponível na internet

Favela, planta característica da região de Canudos e que denominou as habitações do morro da Providência no Rio de Janeiro e se espalhou pelo Brasil a fora, As cidades se constituindo na dicotomia entre o "asfalto" e as favelas.

A música “Querelas do Brasil"(1978) de autoria de Maurício Tapajós e Aldir Blanc através da inesquecível interpretação de Elis Regina, é uma das muitas canções que nos convidam a pensar o Brasil em tempos de despudor, dor, medo e incertezas... “Querelas do Brasil" nos permite fazer  alusão ao hiato existente entre o Estado eurocêntrico e a nação, cuja identidade profunda está vinculada as civilizações aborígine e africana.



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São tantas querelas!
No século passado na década de 1930, a etnóloga norte americana Ruth Landes na sua visita ao Brasil destacou no seu livro “A Cidade das Mulheres” (1947)as desculpas dadas a ela por Osvaldo Aranha, ministro das relações exteriores do Estado Novo:


Ruth Landes 
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Ruth Landes se surpreendeu com a capacidade e o poder de liderança e de organização das mulheres nas comunidades que garantiram a reposição e continuidade da tradição cultural africano brasileira na Bahia.

“O Brasil precisa ser corretamente conhecido, (...) e já que vai estudar os negros, devo dizer que o nosso atraso político que tornou essa ditadura necessária, se explica perfeitamente pelo nosso sangue negro, infelizmente por isso estamos tentando expurgar esse sangue e construirmos uma nação para todos, limpando a raça brasileira.”


Oswaldo Aranha ministro do Estado Novo, Ditadura Vargas.
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Estamos no século XXI em 2017 e ainda somos golpeados com declarações vindas do poder de Estado com seus princípios republicanos, o atual Ministro da Justiça Serraglio afirmando sem pudor, em entrevista a Folha de S.Paulo no dia 07 de março de 2017 ser possível “identificar um potencial criminoso, ao olhar nos olhos dele”.



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Afirmar que se reconhece um criminoso olhando nos seus olhos, é atualizar a ideologia racista do “criminoso nato” do “homem delinquente” pensamento elaborado pelo psiquiatra italiano Cesare Lombroso.


Criminalista italiano Lombroso, fim do séc. XIX.
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No Brasil do século XIX suas ideias tiveram grande adesão através   de Nina Rodrigues e Arthur Ramos. O argumento de Lombroso e seus seguidores baseava-se numa "estética do mal" identificada através das características físicas do sujeito, cuja matematização das análises indicava a sua "tendência delitiva". Entra nessa matematização estética: formações cranianas, tamanho das orelhas, mandíbulas, lábios, olhos, dentição, nariz, etc. Assim, mesmo antes de acontecer o crime, o sujeito já é considerado suspeito. Assim, o discurso sobre a "estética do mal" vai regar a ideia de cidadania através da ideologia racista do “delinquente nato”, que propõem uma assepsia estabelecendo quem é capaz de “cidadania” ou quem são os “cidadãos”.




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Professor e psiquiatra maranhense Nina Rodrigues. Alimentou a ideologia da inferioridade racial com uma falsa teoria de afirmar que a sagrada manifestação de orixá pelas sacerdotisas era análoga aos sintomas de histeria, "doença" usada para desqualificar as mulheres e qualificá-las como seres inferiores.  Séc. XIX e início do século XX.

À deriva dessa querela, crianças e jovens descendentes de africanos e aborígines, sofrem todos os dias a angústia de viver sob suspeita e a perda do seu direito à existência.
Uma constatação: essas ideologias racistas, garantem aos descendentes de europeus mais oportunidades e privilégios!
No Brasil a cidadania é branca e tem vínculos de interesse como o capital financeiro-industrial. Essa é a dura realidade!


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A hegemonia de descendentes de imigrantes brancos recentes no Brasil no bloco no poder de Estado.

 É irônico, mas no Brasil temos de um lado, o discurso de cidadania e diversidade fomentado pelo Estado e, de outro, a atualização da política de embranquecimento e genocídio que tendem a atingir perversamente a população de descendentes de africanos e aborígines no Brasil.


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Proclamada a República ocorre o genocídio de Canudos

As populações africano-brasileiras e aborígines clamam por políticas públicas que contemplem direitos coletivos capazes de estabelecer espaços institucionais de combate ao racismo e suas engrenagens ideológicas, que tendem a tragar a vida, levando-as a terem que lidar com situações marcadas por muita dor e humilhação.
No filme “Selma, uma luta pela igualdade” (2015) que aborda aspectos da organização e realização da marcha pelos direitos civis na cidade de Selma no Alabama em 1965, 


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A marcha pelos direitos civis liderada por Martim Luther King

Há um diálogo muito interessante entre Coretta King esposa de Martin Luther King e Amélia Baynton, uma liderança feminina importante na história do movimento dos direitos civis nos EUA. No diálogo Amélia acalma Coretta afirmando que nós descendentes de africanos já nascemos preparados: “Somos descendentes de gente poderosa, que deu a civilização para o mundo. Gente que sobreviveu a navios negreiros, através de vastos oceanos. Gente que inovou, criou e amou, apesar das grandes pressões e torturas inimagináveis. Estão no nosso sangue, bombeando nossos corações a cada segundo. Eles lhe prepararam! Você está preparada!”


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Coretta King e Martim Luther King
Não resta dúvida! Já nascemos preparados para enfrentar, superar e erguer com muita altivez e dignidade nosso patrimônio civilizatório africano e aborígine.
 “...O Brazil não conhece o Brasil/ ...O Brazil nunca foi ao Brasil/ ...O Brazil não merece o Brasil/... O Brazil ta matando o Brasil/... Do Brasil, SOS ao Brasil/...”
SOS ao Brasil!
Triste reconhecer que as populações que não assumem a característica de uma cidadania fixada no ideal de “eu” branco europeu, sofrem o flagelo das políticas genocidas e de abandono institucionalizadas pelo Estado.
Lamentável!




[1] Narcimária Luz é Doutora em Educação e pesquisadora no campo da Descolonização e Educação.

2 comentários:

  1. Artigo que merece lido compartilhado e analisado parabéns Professora vc não esta sozinha na luta

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  2. A denúncia do processo de exclusão vivido pelas comunidades negras no Brasil seguida da afirmação sobre o poder das mesmas oriundos de nossas anvestralidade contribui para nos fortalecer na luta diária por direitos coletivos que reparem as desigualdades históricas entre negros e brancos.

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