Por Deoscoredes M. dos Santos, Mestre Didi Axipá
Mestre Didi no Opa Oraniyan,
monumento em Ile Ifé em homenagem ao orixá que expandiu o povo nagô /yoruba
Ouvia sempre minha mãe e várias pessoas mais velhas descendentes de africanos dizerem que nós descenderíamos de uma das famílias reais do reino de Ketú. Porém, eu nunca dei importância e achava até ridículo comentar o assunto com outras pessoas. Eu pensava que tudo aquilo que ouvia com referência a minha família real e levando em consideração as dificuldades que os negros sempre tiveram para manter e preservar a tradição afro do Brasil e, principalmente da Bahia, fosse um pretexto para afirmar-se, fazendo o culto e a nossa religião afro-baiana mais respeitada no meio social. Até quando me foi concedida pela UNESCO uma bolsa, por intermédio do CEAO da UFBA, para fazer uma pesquisa comparada sobre arte sacra da África Ocidental no Brasil, na Nigéria, em Dahomey, atual república de Benin, durante um período de três meses.
Assim, foi no dia 6 de janeiro de 1967 que embarcamos, eu e minha mulher
Juana Elbein dos Santos, Research Fellow do Institute for Study of Man the New
York, que também obteve uma bolsa na ocasião para colaborar na pesquisa. Chegamos
a Lagos no dia 7. Três dias depois viajamos para Ibadan onde, depois de nos
termos apresentado ao Prof. Hebert G. Armstrong, Diretor do Institute African
Studies da Universidade de Ibadan, armamos o nosso quartel general. No dia
seguinte, ou seja, no dia 11, nos encontramos com Pierre Verger. Com sua ajuda
e do seu pequeno carro Citroen de 2 cavalos, começamos a fazer viagens curtas
para manter os primeiros contatos. No dia 21, atravessamos a fronteira e
viajamos para Daomey, ficando hospedados em Porto Novo no hotel dos Deputés.
Partimos no dia 23, um dia depois do falecimento de minha mãe, acontecimento do
qual só vim a tomar conhecimento ao regressar para Ibadan, 11 dias depois.
Partimos para o reino do Ketú, acompanhado de um intérprete funcionário
da I.R.A.D. a fim de continuar nossas pesquisas e fazer uma visita ao Rei em
meu nome e em nome de todos os irmãos descendentes de Ketú residentes na Bahia.
Longe estava eu de imaginar que poderia encontrar alguma pessoa descendente
daquela família real de que tanto falavam. Por mais incrível que pareça, até
esse momento nenhum comentário tinha sido feito a respeito dessa possibilidade.
Na passagem por Cotonu, fomos a Nonoprik e compramos um bom vinho francês para
dar de presente ao Rei, procurando dessa maneira seguir os costumes
tradicionais e, em seguida, retomamos o caminho. O Citroenzinho guiado pelo seu
dono, Pierre Verger, avançava pela estrada a fora parecendo uma besta com os
freios tomados nos dentes, passando por vários povoados, espantando porquinhos,
cabritos e galinhas, descendo e subindo ladeiras empinadas, cheias de
curvas, de campos e lindas passagens.
Depois de muito tempo, começamos a percorrer um caminho de terras
vermelhas, a poeira tingindo de vermelho a paisagem, até chegar à entrada do
reinado de Ketú. Na cidade, depois de 4 horas e meia de viagem, paramos no
armazém de um simpático senhor por nome Exu, nome de um dos Orixás que,
erradamente, é sincretizado como o Diabo no Brasil, para fazer uma breve
refeição com sardinhas, pão e mocacola, um delicioso refrigerante feito à base
de café. Meia hora depois, chegamos ao palácio do Rei. Como eu me sentia bem!
Com todos e tudo o que eu via e ouvia, apesar de andar brigando com o meu
Yorubá, que devido a eu não estar habituado a falar cotidianamente, ainda não
podia seguir diretamente as conversações muito prolongadas. Além disso, os
dialetos Yorubá variam muito de um lugar para outro.
Pierre Verger, a quem todos conhecem em toda região por Babalawô Fatunbí
e que já conhecia o Rei, fez a nossa apresentação. Entreguei o presente. Logo o
rei mandou abrir a garrafa e servir a todos o presente, ficando ele, como é de
costume, para se servir por último. Conversa vai, conversa vem, eu disse ao Rei
que era descendente da terra de Ketú. Ele, muito espantado com o meu Nagô
Yorubá, mandou que eu desse prova do que tinha dito. E assim foi que cantei
algumas cantigas enaltecendo a terra, o Rei e a riqueza do seu povo.
O Rei, todos os seus ministros e as demais pessoas que lá se encontravam
na ocasião ficaram surpresos e me escutavam emocionados, pois eles nunca tinham
imaginado que, do outro lado do Oceano, pudesse ainda existir pessoas como eu,
capaz de cantar os cânticos tradicionais que eram cantados pelos nossos
antepassados.
Quando terminei de cantar, o Rei, bastante emocionado, passou a mostrar a
coroa que estava usando e traduzindo uma das cantigas nos disse que não era
aquela coroa a que a cantiga se referia e sim a outra com a qual são
consagrados os Reis.
Existia a maior alegria no recinto e todos me admiravam com muito carinho
e uma certa ternura se lhes estampava nas faces.
Enquanto isso, a minha mulher se lembrou do caso da família real e me
perguntou por que eu não recitava o Orilé de minha família, o que eu chamo de
brasão oral. Não dei atenção a pergunta. Ela e Verger, porém, insistiram tanto,
que fui forçado a recitar o Orikí, mesmo porque o Rei observou quando Juana
falou em francês para Verger e ficou muito interessado.
Tive que dizer as seguintes palavras em Nagô: Asipá Borogum Elesé Kan Gon
Goo. Quando terminei, só vimos o Rei de repente exclamar, Ah! Asipá! E
levantando-se da cadeira onde estava sentado apontou para um dos lados do
palácio, dizendo: sua família mora ali.
Todos nós ficamos parados, era uma coisa inacreditável. Em seguida, o Rei
chamou uma pessoa das mais velhas, a Iya Nana, e nos mandou levar à casa dos
Asipá.
Quando chegamos ao lugar, descobrimos que era todo um bairro, em vez de
uma casa. Fomos levados à casa principal. Por ser um dia de semana, a maior
parte dos homens estava trabalhando na roça da família denominada Kosikú (não
há morte). Mesmo assim, fui apresentado a todos os que estavam presentes e,
quando recitei o Orikí, foi uma alegria geral, todos bateram palmas, vieram
apertar minhas mãos, queriam estabelecer conversações comigo e eu estava tão
emocionado que não entendia e não sabia de nada.
Mestre Didi com a família Asipa em Ketú.
Fotografia propriedade do acervo de D.M. dos Santos
Só via alegria, alegria no semblante de todos que se acercavam para me cumprimentar. Logo nos levaram ao Ojubó Ode, lugar de adoração a Oxóssi, nos mostrando onde estava o Axé da casa e foram chamar uma das pessoas mais velhas pertencentes à família, a fim de nos fornecer as informações precisas.
Mestre Didi no Ojubo Osoosi da família Asipa em Ketú.
Foto acervo M.A.Luz e na internet.
Assim foi que ficamos sabendo de que tudo que minha mãe Senhora e as pessoas mais velhas falavam na Bahia, era verdade. Independente de minha linguagem real, a nossa família foi uma das sete principais famílias que fundaram o Reino de Ketú.
Mestre Didi com a família Asipa em Ketú.
Fotografia propriedade do acervo de D.M. dos Santos
Só via alegria, alegria no semblante de todos que se acercavam para me cumprimentar. Logo nos levaram ao Ojubó Ode, lugar de adoração a Oxóssi, nos mostrando onde estava o Axé da casa e foram chamar uma das pessoas mais velhas pertencentes à família, a fim de nos fornecer as informações precisas.
Mestre Didi no Ojubo Osoosi da família Asipa em Ketú.
Foto acervo M.A.Luz e na internet.
Assim foi que ficamos sabendo de que tudo que minha mãe Senhora e as pessoas mais velhas falavam na Bahia, era verdade. Independente de minha linguagem real, a nossa família foi uma das sete principais famílias que fundaram o Reino de Ketú.
Deoscoredes Maximiliano dos Santos,Mestre Didi é herdeiro do Axé de Xangô, da
tradicional família Asipá da Bahia, Assogbá Sumo Sacerdote do culto do Orixá
Obaluaiyê, Balé Xangô, Babá Mobá Oni Xangô, Alapini, sumo sacerdote do culto de
adoração aos Ancestrais, Egun.
A importância de Mestre Didi, como é conhecido, se
expressa na abertura de canais para as inter-relações das comunidades negras
com a sociedade global. Escritor e escultor, um dos expoentes da cultura
afro-brasileira, é o inspirador e impulsionador da Sociedade de Estudos da
Cultura Negra no Brasil – SECNEB, do
setor afro-baiano do Museu de Arte Moderna da Bahia, do projeto da educação
pluricultural – Mini Comunidade Oba-Biyi do Instituto Nacional da Tradição e
Cultura Afro-Brasileira – INTECAB e de outras instituições de atividades
voltadas para a reflexão e expansão dos valores afro-brasileiros.
Os filmes Egungun, Orixá Ninu Ilé e Iya-mi Agbá
foram realizados com a sua assessoria direta. Reformulador, nas artes
contemporâneas, das técnicas tradicionais africanas, realiza exposições
regulares no Brasil, África Ocidental, Estados Unidos, Europa e, em uma sala
especial no Centro Georges Pompidou, em Paris, 1989, durante a Exposição
Internacional “Magiciens de la Terre”. A última, na Feira do Livro em Frankfurt
em 1994 e na Pinacoteca de São Paulo.
Publicou os livros Contos Negros da Bahia,
Contos Nagô, Contos Crioulos da Bahia, a monografia História de um Terreiro Nagô, e
diversos ensaios em parceria com Juana Elbein dos Santos; com Lenio Braga, o
livro-objeto Porque Oxalá Usa Ekodidé, Autor das peças teatrais Ode o
Caçador do Mato, O Presente de Xangô, Boa Menina, A Fuga
de Tio Ajaí; com Adão Pinheiro, publicou
História da Criação do Mundo, em parceria com Juana Elbein dos
Santos, Orlando Sena, o auto mítico Ajaká. Sendo um Sacerdote, Mestre
Didi posiciona suas atividades e sua liderança no sentido da continuidade
histórica, reforçando e enriquecendo a identidade cultural de seu povo.
Nota:Artigo publicado no SEMENTES Caderno de Pesquisa, Ética da Coexistência, vol. 5, nº 7 jan/dez 2004
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