domingo, 10 de fevereiro de 2019

Amir Haddad Doutor Honoris Causa



AMIR HADDAD 

A primeira vez que eu trabalhei com um grupo de teatro - eu sempre fui ligado a grupos de teatro, sempre fiz teatro de grupo. Eu sou fundador do Grupo Oficina, fui o fundador do grupo A Comunidade, sou o atual diretor do Tá na Rua, e fui o diretor do TUCA-Rio, o Teatro Universitário Carioca, da cidade do Rio de Janeiro. Então, toda a minha ligação de teatro sempre foi com grupo, sempre trabalhei com coletivo de trabalho, e isso é muito importante.

Mas, em nenhum dos grupos em que eu trabalhei eu tive a possibilidade que eu tive no TUCA, de trabalhar durante um ano com um grupo de atores jovens, estudantes, de uma qualidade de estudantes que é difícil se ver hoje no Brasil por causa da deterioração que a política do país sofreu,  com jovens de qualidade, ainda com a década de 60 viva dentro de cada um deles. Então eu trabalhei um ano, fazendo um curso preparatório, ali na Hípica, eu acho que era. Era na Hípica? Deu um branco... onde tinha cavalo...

E trabalhei um ano fazendo um curso que a gente chamava de "curso de direção".

Mas na verdade foi um momento precioso pra mim pra trabalhar no médio e longo prazo pra elaboração de um coletivo de trabalho e fazer um espetáculo. De fato fizemos, e culminou com O Coronel de Macambira, com esses atores todos que de alguma maneira passaram por minhas mãos durante esse ano e outros, que se agregaram depois. Então, essa foi uma coisa muito importante porque geralmente o teatro profissional não te oferece essas condições de trabalho. Você faz dentro de um limite. Apesar de eu ser ainda muito jovem eu já sentia a pressão de trabalhar dentro de um prazo limitado.

Então pra mim foi um começo de uma nova coisa, trabalhar com esse grupo durante um ano. Outra coisa também que eu gosto de lembrar é que na época, e eu acho que sempre devia ser assim, se pensava muito num teatro universitário. Era possível se pensar num teatro universitário porque a gente ainda estava perto dos melhores momentos da vida brasileira, da utopia brasileira, de uma Universidade importante. Então, era inevitável que esses universitários, além das suas atividades curriculares, devessem ter a vida cultural na escola, mas fora do currículo.

TUCA: O Coronel de Macambira 
Foto: Acervo TUCA

Então pensava-se muito no teatro Universitário. E o teatro universitário também era uma possibilidade de sair da pressão de um teatro profissional empresarial, que sempre foi muito limitador de qualquer criatividade.

Então na época o teatro universitário aparecia como uma possibilidade de investigação, de liberdade, de não estar sujeito às regras - ainda incipientes daquela época do mercado -, mas muito determinantes de tudo o que se queria fazer.

Então, trabalhar num teatro universitário, trabalhar com universitários de um Brasil melhor que o de hoje durante um ano pra fazer um espetáculo foi uma coisa, é uma coisa enriquecedora e se manteve até hoje a mística desse trabalho. Porque não foram alguns 2 meses de trabalho para montar uma peça e pronto. Foi um investimento. Era um pensamento. Havia uma estrutura de pensamento político, filosófico, por trás daquilo que se estava fazendo.

Eu tive a sorte de participar de um acontecimento politicamente, artisticamente importante.

Eu nunca tive uma produção tão boa como a que eu tive quando eu fui fazer o Coronel de Macambira com o TUCA-Rio. Eu fui escorado por uma produção, escorado ideologicamente, escorado até financeiramente, porque nunca deixei de fazer um efeito ou um figurino no espetáculo no espetáculo porque diziam "não tem dinheiro", nunca deixei de fazer uma sandália para um ator porque diziam "não tem dinheiro". Nunca deixamos de fazer uma música e pensar como essa música vai ser cantada ou dançada, "não, isso não pode porque não tem dinheiro". Eu não me lembro de falarmos isso em nenhum momento do TUCA.

Também não me lembro em nenhum momento de falar "estamos cheios de dinheiro". Não estou dizendo que era uma coisa rica, que era o Oscar Ornstein da época, que era o produtor do Copacabana Palace que fazia comédias agradáveis para os frequentadores do Copacabana Palace. Não era isso.

Mas nunca me senti pressionado, pressionado de nenhuma maneira. Sempre as coisas eram discutidas, conversadas, eu não me lembro de nenhuma tensão durante esse período. Certamente elas podem ter havido, certamente eu possa tê-las esquecido. Mas eu acho que as que houveram mais fortes não chegaram até mim. Então, pensar que eu pude trabalhar com essa liberdade, é muito interessante. É muito interessante.

E não é inútil falar isso porque se você puder lembrar comigo a coisa do espetáculo do Coronel de Macambira, vai se perceber que tem ali nesse espetáculo tudo o que eu pensava fazer e tudo o que eu fiz e venho fazendo até hoje. Hoje meu teatro foi pros espaços abertos, foi pras ruas, eu fui em busca dessa possibilidade pública da manifestação artística, tanto de quem faz como de quem recebe. Mas o Coronel de Macambira já era isso. O cenário do Coronel de Macambira era uma grande praça, um grande círculo com ruas que chegavam até esse círculo que era a praça. E a vida desfilava por esses locais. Então, ali já estava o que viria a ser a síntese do meu trabalho em todos os anos que se seguiram.

Depois que saí de lá eu fiquei muito enfurnado dentro dos palcos. Eu só fui sair pra rua verdadeiramente no início da década de 80. Mas quando eu olho pra trás e penso no espetáculo O Coronel de Macambira eu vejo que a rua estava naquele palco, que o espaço aberto estava naquele palco, que a manifestação artística de qualidade estava ligada - profundamente ligada - ao fluxo de pensamento e conhecimento popular que é permanente em todas as sociedades e que de vez em quando vem à tona.

Eu queria trazer à tona, trouxe à tona esse fluxo, no meu trabalho, que eu faço até hoje na minha vida. Mas quando eu comecei com O Coronel de Macambira já estava ali tudo o que eu queria ser. Tudo o que eu queria ser e tudo o que eu sou agora. Aí então é que eu penso naquela serpente que a gente vê no desenho: a serpente mordendo o próprio rabo. A unicidade das coisas. Eu agora, 50 anos depois, eu me sinto dessa maneira, a serpente mordendo o próprio rabo, o começo e o fim juntos, uma coisa só, é uma unicidade muito grande. Então, pra mim, fazendo o que eu faço hoje, com essa unicidade que o meu trabalho adquiriu, com essa serpente que segura o próprio rabo, com essa cabeça e o rabo que são unidos hoje, eu me percebo no TUCA-Rio hoje. Hoje. É tão atual, tão presente pra mim quanto qualquer outro passado da minha vida e do meu trabalho, unidos por essa - eu não sei nem dar o nome a isso - por essa tendência do meu trabalho. Eu acho também que é uma felicidade enorme uma pessoa poder trabalhar a vida inteira como eu trabalhei e chegar a essa altura da minha vida e sentir que as coisas se ligam. Que o começo se liga ao fim, e o fim se liga ao começo, e é uma permanente rotatividade do mesmo saber, do mesmo tempo, do mesmo querer, da mesma vontade. Então, eu estou numa integridade muito grande. E quando vem a oportunidade de se comemorar os 50 anos do TUCA vem também o coroamento dessa unicidade que eu estou finalmente vivendo, quando eu estou chegando aos 80 anos de idade.

Então, eu estou feliz. A minha cobra está mordendo o próprio rabo. Tudo está em movimento: presente, passado, futuro são todos uma coisa só, ligadas por um trabalho, um pensamento. Um trabalho, um pensamento, uma ideia de vida que já estavam inteiras, vivas dentro do Coronel de Macambira, com a movimentação, o canto, a dança e as músicas - maravilhosas - que o Sérgio Ricardo fez especialmente para esse espetáculo. Então, está tudo vivo dentro de mim. Não é passado, não é presente, não é futuro. É passado, presente e futuro. A cobra morde o rabo.

Estou satisfeito de estar fazendo isso, satisfeito também de estar declarando isso publicamente para quem quiser, pra quando vier alguém consultar as coisas ver o que está aí dentro.

Não há nada melhor do que você viver sua vida e chegar a um momento em que um amigo meu me perguntou:
- Então, como é? Está avançando muito?
- Meu amigo, eu não avanço mais. Não estou avançando mais. Pra mim, avançar não é isso. Não avanço mais porque o ciclo do meu saber está vivo dentro de mim eternamente em movimento, mas não é um avanço porque eu não estou no tempo, estou fora do tempo, do tempo convencional. Eu estou em uma dobra do tempo, onde o presente, o passado e o futuro se encontram, e não há avanço possível, há crescimento pra todos os lados.

Estou na minha integridade possível agora, neste momento, pra fazer essa festa, homenagem, comemoração, dos 50 anos do TUCA-Rio, dando finalmente ao público 35 melodias inéditas desse cidadão brasileiro ímpar que é o Sérgio Ricardo e cujas melodias foram compostas especialmente para o Coronel de Macambira e que por que cargas d'águas - não se saberá nunca - ficaram inéditas até hoje. Eu acho que elas ficaram inéditas até hoje pra que a gente possa fazer essa festa maravilhosa de apresentá-las durante o aniversário do TUCA-Rio.

E pra que eu possa mais uma ver sentir o sangue, o vibração, a energia, passando pelo corpo da minha cobra que morde o próprio rabo. As 35 melodias do Sérgio Ricardo esperaram publicidade pra fechar esse momento maravilhoso da minha vida. Acho que foi por isso que elas ficaram inéditas e não estarão mais a partir de agora.

FONTE: Acervo TUCA 

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