AMIR
HADDAD
A primeira vez que eu trabalhei com um
grupo de teatro - eu sempre fui ligado a grupos de teatro, sempre fiz teatro de
grupo. Eu sou fundador do Grupo Oficina, fui o fundador do grupo A Comunidade,
sou o atual diretor do Tá na Rua, e fui o diretor do TUCA-Rio, o Teatro
Universitário Carioca, da cidade do Rio de Janeiro. Então, toda a minha ligação
de teatro sempre foi com grupo, sempre trabalhei com coletivo de trabalho, e
isso é muito importante.
Mas, em nenhum dos
grupos em que eu trabalhei eu tive a possibilidade que eu tive no TUCA, de trabalhar
durante um ano com um grupo de atores jovens, estudantes, de uma qualidade de
estudantes que é difícil se ver hoje no Brasil por causa da deterioração que a
política do país sofreu, com jovens de
qualidade, ainda com a década de 60 viva dentro de cada um deles. Então
eu trabalhei um ano, fazendo um curso preparatório, ali na Hípica, eu acho que
era. Era na Hípica? Deu um branco... onde tinha cavalo...
E trabalhei um ano fazendo um curso que a
gente chamava de "curso de direção".
Mas na verdade foi um momento precioso pra
mim pra trabalhar no médio e longo prazo pra elaboração de um coletivo de
trabalho e fazer um espetáculo. De fato fizemos, e culminou com O Coronel de
Macambira, com esses atores todos que de alguma maneira passaram por minhas
mãos durante esse ano e outros, que se agregaram depois. Então, essa foi uma
coisa muito importante porque geralmente o teatro profissional não te oferece
essas condições de trabalho. Você faz dentro de um limite. Apesar de eu ser
ainda muito jovem eu já sentia a pressão de trabalhar dentro de um prazo
limitado.
Então pra mim foi um começo de uma nova
coisa, trabalhar com esse grupo durante um ano. Outra
coisa também que eu gosto de lembrar é que na época, e eu acho que sempre devia
ser assim, se pensava muito num teatro universitário. Era possível se pensar
num teatro universitário porque a gente ainda estava perto dos melhores
momentos da vida brasileira, da utopia brasileira, de uma Universidade
importante. Então, era inevitável que esses universitários, além das suas
atividades curriculares, devessem ter a vida cultural na escola, mas fora do
currículo.
TUCA: O Coronel de Macambira
Foto: Acervo TUCA
Então pensava-se muito no teatro Universitário. E o teatro universitário também era uma possibilidade de sair da pressão de um teatro profissional empresarial, que sempre foi muito limitador de qualquer criatividade.
TUCA: O Coronel de Macambira
Foto: Acervo TUCA
Então pensava-se muito no teatro Universitário. E o teatro universitário também era uma possibilidade de sair da pressão de um teatro profissional empresarial, que sempre foi muito limitador de qualquer criatividade.
Então na época o teatro universitário aparecia
como uma possibilidade de investigação, de liberdade, de não estar sujeito às
regras - ainda incipientes daquela época do mercado -, mas muito determinantes
de tudo o que se queria fazer.
Então, trabalhar num teatro universitário, trabalhar
com universitários de um Brasil melhor que o de hoje durante um ano pra fazer
um espetáculo foi uma coisa, é uma coisa enriquecedora e se manteve até hoje a
mística desse trabalho. Porque não foram alguns 2 meses
de trabalho para montar uma peça e pronto. Foi um investimento. Era um
pensamento. Havia uma estrutura de pensamento político, filosófico, por trás
daquilo que se estava fazendo.
Eu tive a sorte de participar de
um acontecimento politicamente, artisticamente importante.
Eu nunca tive uma produção tão boa como a
que eu tive quando eu fui fazer o Coronel de Macambira com o TUCA-Rio. Eu fui
escorado por uma produção, escorado ideologicamente, escorado até financeiramente,
porque nunca deixei de fazer um efeito ou um figurino no espetáculo no
espetáculo porque diziam "não tem dinheiro", nunca deixei de fazer uma
sandália para um ator porque diziam "não tem dinheiro". Nunca
deixamos de fazer uma música e pensar como essa música vai ser cantada ou
dançada, "não, isso não pode porque não tem dinheiro". Eu não me
lembro de falarmos isso em nenhum momento do TUCA.
Também não me lembro em nenhum momento de
falar "estamos cheios de dinheiro". Não estou dizendo que era uma
coisa rica, que era o Oscar Ornstein da época, que era o produtor do Copacabana
Palace que fazia comédias agradáveis para os frequentadores do Copacabana
Palace. Não era isso.
Mas nunca me senti pressionado, pressionado
de nenhuma maneira. Sempre as coisas eram discutidas, conversadas, eu não me
lembro de nenhuma tensão durante esse período. Certamente elas podem ter
havido, certamente eu possa tê-las esquecido. Mas eu acho que as que houveram
mais fortes não chegaram até mim. Então, pensar que eu pude trabalhar com essa
liberdade, é muito interessante. É muito interessante.
E não é inútil falar isso porque se você
puder lembrar comigo a coisa do espetáculo do Coronel
de Macambira, vai se perceber que tem ali nesse espetáculo tudo o que eu
pensava fazer e tudo o que eu fiz e venho fazendo até hoje. Hoje meu teatro foi
pros espaços abertos, foi pras ruas, eu fui em busca dessa possibilidade
pública da manifestação artística, tanto de quem faz como de quem recebe. Mas o
Coronel de Macambira já era isso. O cenário do Coronel de Macambira era uma
grande praça, um grande círculo com ruas que chegavam até esse círculo que era
a praça. E a vida desfilava por esses locais. Então, ali já estava o que viria
a ser a síntese do meu trabalho em todos os anos que se seguiram.
Depois que saí de lá eu fiquei muito
enfurnado dentro dos palcos. Eu só fui sair pra rua verdadeiramente no início
da década de 80. Mas quando eu olho pra trás e penso no espetáculo O Coronel de
Macambira eu vejo que a rua estava naquele palco, que o espaço aberto estava
naquele palco, que a manifestação artística de qualidade estava ligada - profundamente
ligada - ao fluxo de pensamento e conhecimento popular que é permanente em
todas as sociedades e que de vez em quando vem à tona.
Eu queria trazer à tona, trouxe à tona esse
fluxo, no meu trabalho, que eu faço até hoje na minha vida. Mas quando eu
comecei com O Coronel de Macambira já estava ali tudo o
que eu queria ser. Tudo o que eu queria ser e tudo o que eu sou agora. Aí então
é que eu penso naquela serpente que a gente vê no desenho: a serpente mordendo
o próprio rabo. A unicidade das coisas. Eu agora, 50 anos depois, eu me sinto
dessa maneira, a serpente mordendo o próprio rabo, o começo e o fim juntos, uma
coisa só, é uma unicidade muito grande. Então, pra mim, fazendo o que eu
faço hoje, com essa unicidade que o meu trabalho adquiriu, com essa serpente
que segura o próprio rabo, com essa cabeça e o rabo que são unidos hoje, eu me
percebo no TUCA-Rio hoje. Hoje. É tão atual, tão presente pra mim quanto
qualquer outro passado da minha vida e do meu trabalho, unidos por essa - eu
não sei nem dar o nome a isso - por essa tendência do meu trabalho. Eu acho
também que é uma felicidade enorme uma pessoa poder trabalhar a vida inteira como
eu trabalhei e chegar a essa altura da minha vida e sentir que as coisas se
ligam. Que o começo se liga ao fim, e o fim se liga ao começo, e é uma
permanente rotatividade do mesmo saber, do mesmo tempo, do mesmo querer, da
mesma vontade. Então, eu estou numa integridade muito grande. E quando vem a
oportunidade de se comemorar os 50 anos do TUCA vem também o coroamento dessa
unicidade que eu estou finalmente vivendo, quando eu estou chegando aos 80 anos
de idade.
Então, eu estou feliz. A minha cobra está
mordendo o próprio rabo. Tudo está em movimento: presente, passado, futuro são
todos uma coisa só, ligadas por um trabalho, um pensamento. Um trabalho, um
pensamento, uma ideia de vida que já estavam inteiras, vivas dentro do Coronel
de Macambira, com a movimentação, o canto, a dança e as músicas - maravilhosas
- que o Sérgio Ricardo fez especialmente para esse espetáculo. Então, está tudo
vivo dentro de mim. Não é passado, não é presente, não é futuro. É passado,
presente e futuro. A cobra morde o rabo.
Estou satisfeito de estar fazendo isso, satisfeito
também de estar declarando isso publicamente para quem quiser, pra quando vier
alguém consultar as coisas ver o que está aí dentro.
Não há nada melhor do que você viver sua
vida e chegar a um momento em que um amigo meu me perguntou:
- Então, como é? Está avançando muito?
- Meu amigo, eu não avanço mais. Não estou
avançando mais. Pra mim, avançar não é isso. Não avanço mais porque o ciclo do
meu saber está vivo dentro de mim eternamente em movimento, mas não é um avanço
porque eu não estou no tempo, estou fora do tempo, do tempo convencional. Eu
estou em uma dobra do tempo, onde o presente, o passado e o futuro se
encontram, e não há avanço possível, há crescimento pra todos os lados.
Estou na minha integridade possível agora, neste momento, pra fazer
essa festa, homenagem, comemoração, dos 50 anos do TUCA-Rio, dando finalmente
ao público 35 melodias inéditas desse cidadão brasileiro ímpar que é o Sérgio
Ricardo e cujas melodias foram compostas especialmente para o Coronel de
Macambira e que por que cargas d'águas - não se saberá nunca - ficaram
inéditas até hoje. Eu acho que elas ficaram inéditas
até hoje pra que a gente possa fazer essa festa maravilhosa de apresentá-las
durante o aniversário do TUCA-Rio.
E pra
que eu possa mais uma ver sentir o sangue, o vibração, a energia, passando pelo
corpo da minha cobra que morde o próprio rabo. As 35 melodias do Sérgio Ricardo
esperaram publicidade pra fechar esse momento maravilhoso da minha vida. Acho
que foi por isso que elas ficaram inéditas e não estarão mais a partir de
agora.
FONTE: Acervo TUCA
Nenhum comentário:
Postar um comentário