segunda-feira, 25 de novembro de 2019

O CHÃO A RODA E O SAMBA ,CONTRIBUIÇÕES DE MUNIZ SODRÉ NO CAMPO DA DESCOLONIZAÇÃO E EDUCAÇÃO



Monumento Opo Baba Nla Wa de Mestre Didi em homenagem aos ancestres africanos.
Foto e acervo: M. A. Luz

Por Narcimária C.P.Luz[1]

Há um clamor das comunidades afrobrasileiras por políticas públicas na área de Educação que criem espaços institucionais capazes de combater o racismo suas engrenagens ideológicas, que tendem a tragar a vida  de crianças e jovens,que experimentam  situações adversas no cotidiano escolar que causam muita dor e humilhação.
As nossas iniciativas  na área de Educação, procuram estabelecer canais de solidariedade com todas as crianças e jovens que não abrem mão do seu direito de ser, de pertencer as comunidades afrobrasileiras, viver seus ritos de iniciação e de passagem,característicos das instituições que contribuem para a expansão da ancestralidade afrobrasileira.
Nosso desafio:provocar os/as educadores/as fazendo-os/as  pensar  a identidade profunda de crianças e jovens descendentes de africanos/as no Brasil. Se somos educadores no Brasil,não podemos ter medo de pensar  e realizar iniciativas socioeducativas a partir do que somos como povo que tem  na dinâmica da sua constituição civilizações milenares das Américas e África.

Odé e os Orixá do Mato de Mestre Didi encenado  no Festival de Arte Integrada da Mini Comunidade Oba Biyi.
Foto e acervo: M. A. Luz
Temos que aprender a ter orgulho desse legado e respeitá-lo! Infelizmente nos deparamos  na nossa trajetória com a institucionalização de cursos para formação de professores/as que os afastam ,disciplina-os para esquecer, ter vergonha e até mesmo,  temer  os valores e linguagens que comunicam o patrimônio da civilização africana que também protagoniza a formação social,a nossa história.
O meu respeito e admiração pelo pensamento de  Muniz Sodré  atravessa o tempo e se mantêm, por reconhecer o seu legado no âmbito acadêmico,como  uma  (re)criação original que se caracteriza por   uma “epistemologia compreensiva”,  de onde brota horizontes de questionamentos, interrogações e proposições filosóficas sobre Educação.
Muniz abre perspectivas de abordagens em Educação importantes,nos encorajando a propor espaços institucionais que reconheçam e respeitem as comunalidades afrobrasileiras como mananciais socioeducativos  valiosos.
Nas comunalidades afrobrasileiras nossas crianças e jovens  aprendem, elaboram conhecimentos e expressam esses universos característicos do pensamento africano e suas atualizações nas Américas, através da vivência e convivência com orikis, contos, instrumentos percurssivos cujos toques falam/comunicam relatam histórias anunciando os primórdios da humanidade, indicando princípios ético-estéticos capazes de expandir  o corpo comunitário dando continuidade aos elos de ancestralidade que projetam e anunciam a ALEGRIA TRANSCENDENTE.
É acreditando nessa epistemologia compreensiva que atravessa todo o pensamento de Muniz, que ousamos a fazer a homenagem a ele através das  metáforas “O chão,a roda e o samba”. E nada melhor para começar a pisar o chão,entrar na roda como um samba cuja poesia conta um pouco desse baiano, Oba de Xangô, mandigueiro e intelectual Muniz Sodré.
“Foram me chamar
Eu estou aqui, o que é que há
Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho
Mas eu vim de lá pequenininho
Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho
Sempre fui obediente
Mas não pude resistir
Foi numa roda de samba
Que juntei-me aos bambas
Pra me distrair
Quando eu voltar na Bahia
Terei muito que contar
Ó padrinho não se zangue
Que eu nasci no samba

E não posso parar
Foram me chamar”
(D. Ivone lara)

 “O chão,a roda e o samba” são metáforas,forças semânticas,três anúncios,três dinâmicas de linguagens e valores que constituem o patrimônio africano-brasileiro.Estamos nos referindo a linguagens e valores de suma importância na promoção de uma educação capaz de promover o direito à alteridade civilizatória  de crianças,jovens e adultos que vivem a pulsão de sociabilidade das nossas comunalidades afrobrasileiras.
Aqui está o  legado singular do pensamento de Muniz Sodré!
Singular aqui,na dinâmica de linguagens e valores que irrigam  o chão,a roda e o samba é como o próprio Muniz nos ensina “... a ordem do incomparável, do único, é aquela experiência original que está ali. O singular é você reconhecer o real tal qual ele se apresenta, com todas as suas características. Você vê, reconhece não se pergunta pela essência dele, não precisa de adjetivos.” [2]


Samba de Roda das Ganhadeiras de Itapoan.
Imagem disponível na internet
Na pulsão de vida que transborda no pisar o chão,entrar na  roda e vivenciar a polirritmia do samba,aprendemos de modo muito especial com Muniz, a rasurar e transcender  os discursos etnocêntricos e racistas que atravessam o pensamento  sobre Educação no Brasil.E mais que isso!É a recusa ao monopólio da fala e suas extensões panópticas e  simulacros;é também o exercício de  pensar e erguer espaços socioeducativos  que têm a síncopa como um caminho importante para a afirmação do direito à  alteridade civilizatória africano-brasileira;e sobretudo assumir a radicalidade da  alegria (uma das mais importantes categorias filosóficas nacionais no dizer do próprio Muniz).
É  dessa  ligação profunda  com  sua territorialidade,seu solo de origem que Muniz nos aproxima   do “O chão,a roda e o samba” representam   infinitas linguagens e  vivências acumuladas  por um bom capoeira, discípulo de Mestre Bimba, que logo cedo percebeu que Muniz tinha  talento e “ginga” para lidar com as  línguas estrangeiras dando-lhe  o nome de “Americano”.

Mestre Bimba criador da Capoeira Regional e da Academia de Capoeira.
imagem disponível na internet
É gingando nos interstícios e fissuras  da Razão de Estado, superando as tensões e conflitos característicos da panacéia  e utopias urbano-industriais, que Muniz realiza uma travessia empírico-reflexiva fascinante,que intercambia o clássico pensamento grego, ao universo simbólico próprio da cosmovisão afrobrasileira e as tensões e conflitos entre essas civilizações.Essa travessia ou “manha”,como quer o vocabulário da capoeira,é que irá  imprimir um pensamento filosófico singular,aplicado à Comunicação, e que aqui ouso afirmar também, na área de Educação.
Sim!Educação!Mas refiro-me àquela perspectiva de Educação que se apropria do repertório da dinâmica do “O chão,a roda e o samba”  visceral nas obras de Muniz e que ele nos estimula a transformá-la numa:
 (...)ágora, não a grega, mas uma ágora negra, uma cidadela, uma organização social com regras próprias, algo que tornou (...) a Bahia uma coisa singular. Os estudos sobre o negro no Brasil são mais repetição do método acadêmico do que pensamento. O que me interessa, (...) é a possibilidade de ver um pensamento original, uma filosofia que inclui o corpo, que não é só conceitual. Mas o que é a filosofia no Brasil. Certo, eu também estudo Heidegger, Hegel, Platão, adoro esses caras, mas acho que se você ler realmente os grandes filósofos, independente da academia, você constata que eles estavam preocupados com a cidade deles, digamos assim. Acho que você só pensa originalmente quando o faz radicalmente, a partir de suas raízes, o que a academia no Brasil não ousa fazer.” (SODRÉ,2001,P,.10)
Uma séria constatação: na Bahia territorialidade imantada pela alteridade civilizatória afrobrasileira,por exemplo, vivemos um grande dilema, pois a Universidade não conseguiu fundar nem gregos nem baianos, como diz Gilberto Gil na música Tempo Rei.


Pedra Sagrada de Xangô em Cajazeiras Ba.
Imagem disponível na internet
Essa  Bahia, onde a presença da civilização africana é pujante caracterizando a sua polis, há uma tendência a acolher cursos de formação de educadores vinculados exclusivamente aos valores civilizatórios  greco-romanos, anglo-saxão,ibérico. A opção institucional por essas arkhés alheias à nossa existência vem produzindo ao longo dos séculos políticas educacionais que procuram recalcar os contínuos civilizatórios que caracterizam povos milenares. O resultado dessas políticas educacionais destituídas dos valores característicos da nossa população é a incapacidade de produzir conhecimentos significativos sobre as nossas territorialidades afrobrasileiras, e dela, extrair perspectivas que aproximem os educadores das dinâmicas de sociabilidades pluriculturais.
Essas considerações pontuam aspectos que designam a dinâmica e tensões entre territorialidades radicalmente distintas, a saber: a colonial europocêntrica representada pela metáfora da “casa grande e senzala”; e a africana influenciando e instituindo kilombos e legitimando a floresta simbólica expansão de civilizações milenares...
Bem. Ao longo dos anos vivi muitas inquietações  e angústias como educadora,é muito especial para nós, a abordagem que encontramos no pensamento de Muniz aplacando essas inquietações e angústias.Escutem mais essa reflexão do nosso homenageado: [...] Os neo-alexandrinos tinham uma categoria chamada ‘eon’, que é uma das maneiras de dizer tempo em grego. O ‘eon’ é o tempo que recorre. Então, há alguma coisa na Bahia que é a ordem do ‘éon’, ‘trans-histórico’, transtemporal. Onde há ‘éon’ tem-se o princípio forte de ancestralidade, de paternidade, e não de história pura. A história, principalmente a história como Hegel e Marx viram, é dinâmica, é uma mutação sem compromisso com o pai, porque o ocidente é uma sociedade deicida e parricida, matou Deus e mata o pai. Bem, eu estou falando com outra linguagem, do Egun, que é o culto ao ancestral. Portanto, o princípio da ancestralidade é poderoso, porque nele você pode crescer, envelhecer, morrer, e o tempo inteiro você é atravessado por um discurso de fundação de seu pai e sua mãe. Você não se livra desse discurso. Você pode tentar rejeitá-lo, mas quando joga fora é para cair num outro que você funda, porque você se livra de seu pai físico, mas quando tem um filho vira o pai e você está no discurso de
fundação...”
Miguel Sant`Anna Ojé Orepe, Mestre Didi Alapini Ipekun Oye, Arsênio dos Santos Alaba Olukotun
Insígnes personalidades da história do Ilê Asipa.
Imagem acervo Galeria do Ile Asipa
Em  todas as suas obras   Muniz vai nos lembrando dos  ciclos do tempo,  que marcam a ontológica diversidade humana e neles as utopias da modernidade e a sua pretensa idéia de controlar o destinos,a vida e a morte.
“A origem quanto o destino foram afastados da visão moderna; a primeira foi reduzida a datas históricas, o outro a um plano econômico. A ritualização desapareceu. Continuamente nos preocupamos com a nossa origem e com o nosso destino, só que esta preocupação permaneceu a nível individual. Isto explica a força da psicanálise a partir do século XIX.  A psicanálise não fala de outra coisa senão disto. Assim, tudo o que se refere à origem e ao destino entrou para os subterrâneos da racionalidade... O mistério é aquilo que se silencia : O Ocidente deve calar-se a respeito do mistério da origem e do destino porque a racionalidade histórica não lhe permite que fale a respeito...”[3]
Insistindo com vocês a pensar o título desse mosaico”o chão,a roda e o samba”.
O CHÃO é ARKHÉ,princípio,origem,devir... Vínculos de sociabilidades de tempos imemoriais,ou no dizer dos nossos/as mais velhos/as quando nos apresentam os itans: “no tempo em que a humanidade morava nas árvores e conversavam com elas”...
Nas obras de Muniz Sodré, a ARKHÉ se refere às ritualizações da origem, do destino, morte e renascimento. Há também que se considerar arkhé como o conhecimento da origem que comunicam as elaborações da comunidade sobre os modos de pensar, valores e linguagens, saberes simbólicos. Muniz destaca que a palavra arkhé vem do grego “syn-ballein”, que se refere a “lançar junto com”, e esse movimento de lançar é carregado de símbolos que atravessam gerações e vão compondo histórias, narrativas de origem e começo, o universo simbólico que caracteriza o grupo, a comunidade, as comunalidades.
É aí que operamos com a noção de arkhé, para identificarmos em qual sistema de civilização se localizam instituições, sociabilidades, valores, identidades, modos de produção, etc.
A noção de arkhé engloba o princípio de ancestralidade que se caracteriza pelas bases fundadoras e inaugurais das civilizações e suas dinâmicas sucessórias, os contínuos.
E por falar em ancestralidade cabe ainda ressaltar que há um grande equívoco pensar ancestralidade apenas como uma carga genética! Ancestralidade não é uma sucessão genética.
A ancestralidade se caracteriza por representar as lideranças comunitárias que se dedicaram em vida ao bem estar da família, linhagem, comunalidade através da manutenção e preservação dos valores e linguagens que sustentam o bem estar e destino individual e coletivo.

Mãe Aninha Iyalorixá Oba Biyi fundadora do Ilê Ase Opo Afonjá líder sacerdotal da comunalidade nagô.
Imagem disponível na internet
Ancestral é, portanto aquele ou aquela que em vida deu continuidade e garantiu a expansão da memória da sua comunalidade. Os ancestrais são lembrados e consagrados para depois em outro plano de existência continuar protegendo a existência e promovendo a alegria de sua gente. Enfim,é aquele que dedicou sua vida para garantir a continuidade da tradição.
A ARKHÉ organiza e dá pulsão a RODA, que dá origem a  linguagem própria das culturas de participação, caracterizando   territorialidades que promovem formas e modos de comunicação tornando  possível  um corpo livre em permanente movimento de transcendência, e mais do que isso,capaz de realizar e expandir o modo próprio africano de existir e manter a sua identidade profunda individual e coletiva.
A RODA irriga a síncopa do SAMBA,que apela para todos os sentidos do corpo (tato,audição,visão,paladar,olfato)  carregando o jogo,a brincadeira,a dança,a dramatização,a poesia,a polirritimia...Enfim,formas de comunicação que incitam a participação direta, interdinâmica, pessoal ou intergrupal, a recriação de  uma   outra ordem de valores civilizatórios para além do europeu.
Como afirma Muniz:”(...)Cantar,dançar,entrar no ritmo,é como ouvir os batimentos do próprio  coração ,é sentir a vida sem deixar de nela reinscrever simbolicamente a morte...O ritmo negro é uma síntese(sonora) que atesta a integração do elemento humano na temporalidade mítica.Todo som que o indivíduo humano emite reafirma a sua condição de ser singular,todo ritmo a que ele adere leva-o a reviver um saber coletivo sobre o tempo ,onde não há lugar para a angústia,pois o que advém é a alegria transbordante da atividade,do movimento induzido.”(p 24)
As instituições afrobrasileiras as quais nos referimos,estão envoltas a dinâmica do chão,da roda e do samba,dinâmicas que marcam o alvorecer da humanidade, permitindo  presentificar acontecimentos míticos, aproximar-se de tempos imemoriais, das descrições de experiências vividas pelos/as ancestrais, da relação dialética entre vida e morte, rememorar e reverenciar famílias, linhagens, personalidades exponenciais que contribuíram para expandir e fortalecer as instituições , remeter a lugares sagrados, alianças e conflitos, dramatizações que contam a história de afirmação das nossas comunalidades.
Estamos diante de um universo comunicacional,característico das comunalidades tradicionais vinculadas a arkhé ,a ancestralidade ,tudo é  singular, pois está embebido de mistério,do sagrado,da imponderabilidade que envolve vida e morte, o infinito que no aqui e agora se descortina de modo intermitente.
É nesse solo de origem eminentemente africano-brasileiro ,prenhe de sabedoria,afeto e alegria que o Oba Aresá, nos aproxima da elegância de  textos, que abrigam categorias de análises e composições temáticas singulares.
E o que é a roda que singra o chão e cria movimentos sincopados para o existir?
Quem responde é Santugri!
 “Não é nada,não é nada, a roda.Se o vazio ou o traço?Bom,do vazio Deus fez este mundão todo.Não é nada o traço? Mas a criatura só existe quando deixa marca,traça.Para mim,o traço,o vazio,a roda é tudo.Não é nada,não é nada,é tudo.Gosto, moço.Nela meu corpo é meu-parece que nele nem corre sangue,corre mel.Meu corpo,meu corpo/foi Deus quem me deu/na roda da capoeira/Rarrá!/grande e pequeno sou eu.Meu nome é Santugri,moço.Posso dizer que o nome está ligado a meu segredo.Muito mais não posso contar,nem se quissesse,porque eu mesmo não sei.Mas posso dizer,isto sim, que este meu nome foi causa de mudança.
Foi minha sorte moço,pois o som dessa palavra casava fácil com meu corpo,repercutia bem na roda.Santugri(...) faz parte de mim,queira ou não.Passarinho não canta por gosto,canta por obrigação.Eu jogo capoeira por cerimônia,por destino.É minha sina,minha sorte.Morrendo,moço,não quero ir pra lugar nenhum-a roda é meu paraíso.”[4]

Roda de capoeira, Grupo Abolição no ACRA Associação Crianças Raízes do Abaeté.
Acervo M.A. Luz
É no universo  ético-estético  da síncopa da  roda,que transborda a regência da alegria, princípio seminal da arkhé afrobrasileira que irá singularizar o legado de Muniz Sodré para a minha geração e as gerações de educadores/as com as quais tenho tido o prazer de conviver.

Mo du pé Oba Aresá!
Obrigada Muniz!

A DINÂMICA DO JOGO

As estratégias de descolonização caracterizam fundamentos profundos de jogos e vão  ser interpretadas como uma arte que envolve astúcia, criatividade, improvisos, sensibilidade, afeto, mas também   um planejamento ardiloso do início ao fim da ação, sem se tornar refém dos detalhes(tática) que o cercam, como bem observa o autor.
 Então,a dinâmica discursiva que estrutura o jogo da comunicação não se reduz a “racionalidade lingüística” nem tão pouco as “lógicas argumentativas da comunicação”, mas a radicalidade das “estratégias sensíveis”, que apelam para a infinitude de combinações de linguagens que agem”...afetivamente em comunhão, sem medida racional, mas com abertura criativa com o outro, estratégia é o modo de decisão de uma singularidade. Muito antes de se inscrever numa teoria a dimensão do sensível implica uma estratégia de aproximação das diferenças-decorrente de um ajustamento afetivo, somático, entre partes diferentes num processo, fadada à constituição de um saber que, mesmo sendo inteligível, nada deve à racionalidade crítico-instrumental do conceito ou às figurações abstratas do pensamento.”(p.10)
É certamente difícil para nós, acostumados a Razão universal que funda a História e Geografia civilizatória do ocidente, acolhermos referências comunicacionais que transcendam as fronteiras entre logos/Razão  pathos/paixão. Na verdade essas fronteiras constituem dicotomias que institucionalizaram campos semânticos perversos, a exemplo das classificações que sobredeterminaram o destino de muitos povos considerados “pagãos”,”primitivos”,”selvagens”,”não humanos”... “Nessa dicotomia,a dimensão sensível é sistematicamente isolada para dar lugar à pura lógica calculante e à total dependência do conhecimento frente ao capital”(p.12)

Projeção futurística de cidade tecnológica
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Exemplos como esse talvez nos levem a pensar numa nova “Cidade humana” como se refere Muniz, que identifica no âmbito de novas tecnologias do social, modos de sociabilidade envolvendo os planos intelectual, territoriais e afetivos que rompem com a oposição logos pathos.
Ora, há infindáveis horizontes de tecnologias envolvendo informação, comunicação, imagem que transgridem o acervo clássico do conhecimento institucionalizado pelo poder de Estado,estabelecendo de modo radical outra possibilidade cognitiva. Mas como isso é possível?
Vejamos então como esses horizontes de tecnologias soam para Muniz:”... A afetação radical da experiência pela tecnologia faz-nos viver plenamente além da era em que prevalecia o pensamento conceitual, dedutivo e sequencial, sem que ainda tenhamos conseguido elaborar uma práxis(conceito e prática) coerente com esse espírito do tempo marcado pela imagem e pelo sensível,em que emergem novas configurações humanas da força produtiva e novas possibilidades de organização dos meios de produção.”(p.12)
 Muniz alerta sobre a aproximação progressiva entre a vida e a tecnologia. Na base desse universo comunicacional está anunciado uma bios-virtual, isto é, uma vida virtual que impõe “outra cultura”,alicerçada na globalidade tecnoeconômica, que através da dimensão da imagem,do afeto e do sensível, produz sujeitos de mercado adaptáveis à formação do “capital humano”.

O UNIVERSO IMANENTE:O BIOS-MIDIÁTICO.

A perspectiva que nos intriga na ambiência comunicacional : a bios-virtual condensa o espaço-tempo à técnica  que estrutura a vida social submetida a territórios imateriais, simulacros da existência em sintonia com o mercado o novo capital. O impacto é a institucionalização de uma: “comunidade afetiva de caráter técnico e mercadológico, onde impulsos digitais e imagens se convertem em prática social.”(p.99)
As sociedades contemporâneas sobredeterminadas pelo bios-midiático e a efervescência dos seus territórios imateriais desdobramento das tecnologias da informação, recebem os sopros de um universo comunicacional stricto sensu “indicial”.
Sobre ele há superposições de índices, signos,(imagem), dígitos, símbolos(sistema lingüísticos) relacionados a formas de transmissão de saberes e informações que caracterizam uma nova interação humana com o mundo ou os mundos que se apresentam.
O desafio, ou a grande questão que se impõe a essas formas culturais vinculadas a “circulação indicial” como quer Muniz,é que “...o índice configura-se como o signo mais adequado a um novo tipo de relação social carente de dimensões de profundidade semântica ou de valores éticos ordenados, em que predomina, no lugar da clássica’interioridade’ psíquica ou do sujeito definido por um ponto de vista estratégico, a pura contiguidade relacional das redes midiáticas ou cibernéticas”.(p.109)
Como recurso metodológico o autor apresenta dois mitos fundadores da civilização ocidental para que entendamos a  nova linguagem comunicacional contemporânea,onde o sentido da visão continua em cena,mas a tatilidade assume importância.Ambas intercambiam-se introduzindo um novo campo de sensibilidade. 
Narciso filho do Deus Cefiso e da ninfa Liríope recebeu a advertência do advinho Tirésias, que viveria melhor se não se olhasse. Quando tornou-se adulto Narciso ficou belíssimo, o que atrai a atenção e desejo de muitas moças e ninfas. Mas Narciso mantém-se sempre insensível ao amor, o que provoca a ira das mulheres que pedem vingança a Nêmeses.  Um dia Narciso inclina-se numa fonte para beber água, e vendo o seu rosto refletido fica enamorado. Desse dia em diante ele passa a ficar indiferente ao mundo e constantemente passa a admirar a sua própria imagem até morrer.

Narciso e a sedução da própria imagem
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O mito de Narciso mostra o quanto ele é indiferente à sociabilidade, à troca com o outro, à doação recíproca. Ele não aceita o outro corpo o corpo da ninfa, e entrega-se à troca com sua própria imagem, e é punido por denegar a presença do outro e ter uma atração absoluta por si próprio. Narciso mata a verdade de si mesmo e morre em sua própria imagem.
Muniz chama atenção no mito que”...a deriva descontrolada das imagens leva à morte do humano, identificado com a mediação simbólica”(p.111)
Aqui o mito de Édipo, também nos faz refletir, isto porque, demonstra o quanto à onipotência da bios-midiátrica lineariza, estabelece taxionomias, simulacros, que satura todos os espaços que cria A história de Édipo é interessante, pois marca:

[...] o poder do Ocidente exatamente porque expõe a pretensão de um olhar universal. Édipo-Rei é uma tragédia da visão-ele pode ver tudo, mas não se vê. Ao cegar-se, no final, interiorizando a sua visão, ele ainda está na pretensão de tudo ver, mesmo na escuridão. É essa onipotência edipiana que estrutura o mundo Ocidental que arma o olho funcionalizando-o em termos eficazes, de todos os recursos possíveis, para se investir da veleidade de um poder de visão universal.[5]

Édipo decifra o enigma da esfinge. O poder e a onipotência do saber.

Imagem disponível na internet

Portanto,a cegueira é capaz de desenvolver outras sensibilidades que promovem experiências de aprendizagens especiais pois se “vê mais” através das sensações táteis, olfativas, auditivas e gestuais, todas intercambiáveis que (re)orientando de modo radical as práticas sociais.
Daí emergir”...a sensorialidade  do indivíduo, capturada pelas exigências técnicas do controle cibernético,para que aprenda índices(setas,figuras,palavras)necessários à construção de uma espécie de cartografia de trânsito(ou ‘navegação’) na rede...Tateia-se nos intinerários sonoros,visuais e textuais em busca dos ídices de conexão ou elos(links).McLuhan tinha plena razão,não fez mero jogo de palavras,quando se referiu a ‘massagem’,e não a mensagem,como efeito característico da mídia eletrônica”.(p.115)
E mais:”...No hipertexto ou hipermídia, onde se hibridizam recursos diferenciados como arquivos sonoros, textos, videoclipes, fotos, etc., o usuário trafega em complexos ambientes dinâmicos,espreitado pela possibilidade estésica e manifestadamente narcísica da vertigem,como bem assinala Machado;’o navegante’ está sempre a um passo da vertigem, permanentemente arriscado a se perder no mar de textos’”.(p.115)
 Eis,então a proposição do autor de uma epistemologia compreensiva,que sai da ordem do discurso linear-sequencial e irrompe uma análise comunicacional à deriva do repertório de informação que inauguram “novos cenários urbanos de comunicação”,ao qual chama de “sensorium novo” potencialmente vinculado aos modos de sociabilidade que envolvem os jovens que vivem os valores do mercado transnacional contemporâneo.
Neste panorama faz sentido a importância da epistemologia compreensiva para a Comunicação,principalmente considerando que as “...as tradicionais ciências sociais e humanas sempre procuraram inscrever positivamente o fato(social,histórico,individual)numa ordem de causalidade capaz de levar a uma apreensão objetiva da realidade por meio da interpretação adequada.O desafio epistemológico e metodológico da Comunicação enquanto práxis social,entretanto,é suscitar uma compreensão,isto é, um conhecimento e ao mesmo tempo uma aplicação do que se conhece,na medida em que os sujeitos implicados no discurso orientam-se ,nas situações concretas da vida,pelo sentido comunicativo obtido”(p.15)
Ao sabor dessa epistemologia compreensiva, o autor nos aproxima de insondáveis perspectivas que envolve por exemplo: os  ciclos do tempo,  que marcam a ontológica diversidade humana, e neles, as utopias da modernidade e sua a pretensa idéia de controlar os destinos,a vida e a morte; a análise no interior das novas tecnologias que representam as dinâmicas de sociabilidade contemporâneas,e no interior delas a  predominância da dimensão do afeto e do sensorialismo.
Outro aspecto relevante no livro é o esmaecimento da Razão técnico-instrumental característica da pensamento clássico do Ocidente face a emergência intermitente da estética e da imagem (código fundamental das redes midiáticas) na  constituição do bios-midiático.
Muniz alerta sobre a aproximação progressiva entre a vida e a tecnologia. Na base desse universo comunicacional está anunciado uma bios-virtual,isto é, uma vida virtual que impõe “outra cultura”, alicerçada na globalidade tecnoeconômica, que através da dimensão da imagem, do afeto e do sensível, produz sujeitos de mercado adaptáveis à formação do “capital humano”.
O mais intrigante :a bios-virtual condensa o espaço-tempo à técnica  que estrutura a vida social submetida a territórios imateriais, simulacros da existência em sintonia com o mercado o novo capital.O impacto é a institucionalização de uma: “comunidade afetiva de caráter técnico e mercadológico,onde impulsos digitais e imagens se convertem em prática social.”(p.99)
Uma valiosa abordagem também acontece sobre política como expressão  do poder de Estado, que durante muito tempo foi o eixo central da vida social(final do século XIX e primeiras décadas do século XX) hoje saturada,mais insiste em existir através do apelo  a estética produzida pelo bios-virtual do marketing e da mídia responsáveis por produzir a “democracia cosmética” que sustenta o regime das aparências.



[1] Palestra proferida na Universidade Federal do Rio de Janeiro na ocasião da homenagem a Muniz Sodré pela passagem dos seus 70 anos.
[2] SODRÉ, Muniz. Entrevista a Mariluce Moura, Caderno Valor, 4 de março de 2001, p.10
[3]SODRÉ,Muniz.O Solo de Origem in LUZ,Narcimária(ORG.)Pluralidade Cultural e Educação.Salvador:Secretaria da Educação do Estado da Bahia e Edições SECNEB.p.18-27.
[4] SODRÉ,Muniz.Santugri.Rio de Janeiro:José Olympio,1988.p.15
[5] SODRÉ, Muniz.A Máquina de Narciso.Petrópolis:Vozes,1984, p.17

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

DISCURSO DE MUNIZ SODRÉ




Muniz Sodré de Araújo Cabral, 77 anos, tomou posse no dia  31 de outubro, na Academia de Letras da Bahia, sucedendo na cadeira 33, Maria Stella de Azevedo Santos, a Mãe Stella de Oxóssi.

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    Boa noite!

Senhores acadêmicos, eminentes e agora também iminentes confrades...
Eu gostaria de inicialmente certificá-los de que recebo com ambas as mãos a generosa honraria de me franquearem, pelo caminho da Cadeira 33, a iniciação à Academia de Letras da Bahia.  Esta é, para mim, uma cerimônia iniciática, uma folha de fundamento no chão da casa.  Por isso, ao reiterar minha alegria, eu peço agô, como se diz na comunidade litúrgica da Bahia: peço licença para saudar vivos e mortos. Vivos, os meus próximos confrades, amigos, familiares, eventuais autoridades presentes.  Mortos, todos os ancestrais, fundadores ou não deste grupo em que agora me insiro.
    Esta dupla linha de saudação é ao mesmo tempo imperativa e prazerosa. Imperativa, porque estou absolutamente convicto de que o tempo da ancestralidade, quero dizer, o tempo em que se inscreve o destino,  em que se enlaçam origem e fim, é sempre o mesmo da vigência ética do discurso de fundação de qualquer grupo humano.
    Esse tempo originário, posto de lado pela consciência da acumulação e pela lógica dos preços, contrapõe-se de forma excelsa ao tempo veloz e mutável da História. Mas oportunamente se impõe, apesar do paradoxo aparente, como uma radical exigência de ética feita pela própria História, diante da falência das promessas do capital e do fim das esperanças políticas.
   De fato, meus prezados confrades, a ancestralidade –– a folha no chão –– vem nos ensinar que ética não se resume à codificação de regras de conduta nem a um ajustamento moral, decidido por tribunais de meia sola, por falsos monopólios da virtude.  O que hoje se vem chamando de crise moral ou crise da ética não é a mera violação de valores e regras instituídos (a corrupção, a violência institucional, a mutação nos costumes), mas é o obscurecimento do destino comum, esse destino a que se revelam cegas as elites econômicas, políticas, burocráticas e tecnológicas. Por ética, eu me refiro a um apelo radical à dignidade do ato de habitar e de conviver,  portanto, a  tudo que implique  um destino comum prefigurado pela razão fundadora da comunidade. 
       Dignidade, por quê?
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       Na sua Metafísica dos Costumes, Kant nos diz que “no reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. O que tem um preço pode ser substituído por qualquer outra  coisa, a título de equivalente; ao contrário, o que é superior a todo preço e em conseqüência não admite equivalente, é o que tem uma dignidade”.
      Ou seja, a dignidade é a única condição capaz de fazer com que uma coisa tenha um fim em si mesmo, portanto, um fim intrínseco e não relativo. A dignidade entendida como “valor interior absoluto”, gerador de respeito do si mesmo, é o farol da ética. Não é espiritualmente transcendente, é imanente ao agir do homem.
      Imanência, portanto. A ética não implica realmente nenhuma transcendência em matéria de valores e normas, não é coisa do outro mundo, e sim uma imanência dinâmica comum a toda habitação humana num espaço determinado, ou seja, ao que corresponde a exigências radicais da própria vida.
      Isso assim se explica: “A vida não se esgota com o que se manifesta no ser vivo. O homem é um ser vivo, mas o que o constitui como vivo está aquém ou além de tudo que perfaz a sua condição de sujeito, seja da consciência ou do inconsciente. Dito com outras palavras: Todo sujeito se sustenta pelo não nascido, pelo não constituído, pelo não existente em tudo que perfaz seu nascimento, sua constituição, sua existência” (Emmanuel Carneiro Leão).  A ética é precisamente o movimento de escuta coletiva dessa dinâmica abrangente, maior do que os limites da subjetividade instituída, mas imanente a todo e qualquer modo de existir. Ética é a repercussão tácita do desejo ancestral de continuidade do grupo humano instituído. É, se quiserem, o discurso do morto sobre a imortalidade.
     A atitude ética permite o trânsito de ida e volta entre indivíduo e grupo, mas também entre grupos sociais diferenciados. “O grande no homem – diz Nietzsche no Zaratustra – é ser uma transição e uma passagem”. A ética pode ser compreendida como a linguagem íntegra desse trânsito que às vezes não pretende chegar a lugar nenhum, tão-só fruir da caminhada, da alegria da passagem.
     Pela economia, nós buscamos a posse dos meios materiais de conservação da vida. Pela política, visamos à agregação civil de seres humanos num território. Pela ética, –– portanto, pelo apelo a valores ancestrais –– aspiramos à clareza e à luminosidade.
    À luz do senso comum, ancestral é o grande homem do passado que, numa comunidade ou numa nação, mantém acesa a lanterna ética, isto é, o farol de continuidade do grupo. Por compatível, eu me valho de uma passagem de Euclides da Cunha: “O que apelidamos grande homem é sempre alguém que tem a ventura de transfigurar a fraqueza individual, compondo-a com as forças infinitas da humanidade”.
     É quando se vislumbra a luminosidade a que nos referimos: “Não dura a vida do homem, e é eterna. É como a luz perpetuamente moça”.
     Que ancestrais buscar nesta comunidade de phylia intelectual denominada Academia de Letras da Bahia?
     Não à toa recorri ao grande e multifacetado escritor modernista brasileiro, mais precisamente à sua conferência em dois de dezembro de 1907 (no Centro Acadêmico Onze de Agosto, São Paulo) sobre aquele por ele classificado como “insigne e extraordinário condoreiro”. Euclides foi taxativo: “Não sei de quem, como ele, entre nós, naquele tempo, tanto se identificasse com o sentimento coletivo, revivente, estimulando-o e aformoseando-o”.
     Estamos, assim, falando do representante notável da terceira geração romântica no Brasil, Antonio Frederico de Castro Alves, o Poeta dos Escravos, patrono desta Cadeira 33. É sinérgica, senão mística, a afinidade entre o patronato e a Cadeira. Há por certo o supersensível do número, mas a cadeira, mais do que base, do que arrimo, do que pedestal é mesmo um lugar, no sentido topológico do termo, de intersecção de energias singulares em torno da condição do negro no Brasil.

     É verdade que o Romantismo brasileiro, desde a primeira geração, é atravessado por certa religiosidade, presente na idealização do sobredivino, do taumaturgo, do imperecível. Euclides, porém, atém-se à atribuição de misticismo a Castro Alves, não por profissão de fé, mas sim pelo inexplicável de ele não ter tido precursores próximos em seu ideário político-social. Este pareceria, antes, originar-se das conquistas éticas da humanidade, simplesmente silenciadas em sua geração. Na energia criativa do poeta, o “eu’ lírico-amoroso é indissociável do realismo com que ele diagnostica a barbárie histórica, a escravatura, fonte de sua revolta e de sua indignação. Ele foi o presidente, no Recife, de uma das primeiras sociedades abolicionistas do Brasil.
     Sabemos o quanto essa associação entre o lirismo e o realismo, entre a criação literária e a causa político-social, é capaz de alvoroçar a pedantaria crítica. Mas já Euclides nos adverte: “A restrição da sua figura literária corresponde ao seu alargamento na História”. A advertência levanta uma questão que interessa de perto aos exegetas da poesia, aos organizadores dos manuais e das coletâneas que são dados a ler aos jovens em formação por críticos literários e por mestres-escolas.
       A questão: como lidar com o binômio ideia poética/ideia política?
       A História moderna registra duas maneiras.
        Uma é a concepção nazista da política, entendida como estética geral. Isto está resumido na frase célebre de Goebbels: “A política é a arte plástica do Estado”. A concepção nazista pretende figurar as massas como um instrumento do destino. A massa, em si mesma, seria um fato estético.
      Outra é a concepção revolucionária sobre o papel dos artistas. Neste caso, a estética aparece como ação política, isto é, a estética se realiza como finalidade na política. A concepção revolucionária pretende atribuir às massas um destino centrado na renovação da consciência, ou seja, na produção de um novo homem.
      Um grande exemplo disso é dado por Maiakovski, um dos maiores poetas russos do século passado.  Também ator, dramaturgo, militante político,  ele se dispôs a serviço da propaganda revolucionária, sem reduzir a criação poética a fórmulas estereotipadas. Era chamado “O Poeta da Revolução”, mas poderíamos chamá-lo de “poeta do coração”, pois coração é metáfora que atravessa muitos de seus versos. Assim, “comigo a anatomia ficou louca/sou todo coração/em todas as partes, pulsa”.
      Castro Alves, o Poeta dos Escravos, prefigura Maiakovski, no fato de que ambos instalam a ética no âmago da poesia, pois aspiram à dignidade de um novo homem, lastreados numa idealizada humanidade ancestral. É a tradição que funda a revolução.  É o vigor humano do “antes”, do fundacional,  que sustenta o desejo revolucionário. É esse passado que, misticamente, faz deles poetas do amanhã.
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       Isso nos faz recordar que a poetisa norte-americana Emily Dickson fala em verso de “um lugar chamado amanhã”. É uma formulação intrigante, porque o amanhã é da ordem do tempo, e ela aí converte o tempo ao espaço. Um lugar chamado amanhã... Emily Dickson nos convida a visitá-lo imaginariamente e nos faz ver que já sabemos alguma coisa desse lugar enquanto possibilidade interna de outra instalação temporal, uma chamada ao presente do futuro que, já aí, na luz ou na sombra, parece aguardar a emergência dos fatores de sua realização. Esse amanhã não é tempo que remotamente virá, mas tempo que vem, disposto que está pela ancestralidade à nossa consciência como uma direção já atribuída ou determinada.
     Prezados confrades, eu gostaria de crer esse tenha sido o auspício bem augurado por  Francisco Xavier Ferreira Marques ao inaugurar a Cadeira 33. Já no último ano da década de 90, eu me permitia assinalar no ensaio   intitulado “Claros e Escuros” que, logo depois de “O bom crioulo” (1895), do cearense Adolfo Caminha (o primeiro romance a reconhecer e valorizar a pessoa do negro), o baiano Xavier Marques publica  “O Feiticeiro” (1922), um romance também naturalista,  em que deixa transparecer a atmosfera litúrgica dos terreiros baianos. São etnograficamente aceitáveis as suas descrições, aparentemente obtidas da própria experiência do autor com o culto nagô.
     O enredo de “O Feiticeiro” equilibra paixões amorosas e políticas com a ação do pai de santo Elesbão, príncipe africano escravizado, áugure que usa o feitiço para conduzir os destinos dos personagens. Aos consulentes, lia a sorte nos búzios, advertia dos perigos, prometia os favores dos deuses e chega mesmo a assegurar a um jovem político que “Ogum ia declarar guerra aos inimigos de D. Pedro”.
     Interessante nesse romance é que, numa época de preconceito feroz contra tudo que dissesse respeito a negros, os personagens tratam ora com temor, ora com reverência, a liturgia afro-brasileira. “Os negros do candomblé? Afirmo. Se há entre eles meliantes e histriões, não são em maior número do que os do nosso credo. O prestígio de um feiticeiro africano aos olhos dos filhos do terreiro não fica atrás do de um prelado de qualquer igreja a quem as damas civilizadas veneram”. Além disso, o texto inteiro contém referências respeitosas a árvores sagradas, oferendas propiciatórias e conseqüências dos feitiços.
     Por menos conhecido que seja o romance de Xavier Marques (a consagração lhe veio com a novela “Jana e Joel”), não se pode deixar de registrar que essa mesma liturgia sedutora e seus desdobramentos lúdicos, culinários, medicinais e éticos correspondiam ao patamar  posteriormente transvalorado pela narrativa literária de Jorge Amado.
    Prezados confrades, admitindo-se a hipótese de que um fio vital costure ou perpasse a Cadeira 33, não sei se terá  sido mera coincidência o fato de  que, no mesmo ano em que Xavier Marques publicava “O  Feiticeiro” (1922),  formava-se, pela Faculdade de Medicina da Bahia, Heitor Praguer Fróes, o segundo ocupante da Cadeira.
    Medicina e Letras, como se articulam?
    Neste caso, a resposta pode ser inicialmente dada por uma notícia do importante jornal Washington Post, em sua edição de 23 de julho de 1943, a propósito da visita do médico baiano à capital norte-americana: “Ser proficiente em dois assuntos tão amplamente distintos como a medicina e a literatura é incomum, para dizer o mínimo. Mas o doutor Heitor Praguer Fróes, da Bahia, Brasil, parece ter dominado os dois ramos do saber com igual sucesso”.
     Neste ponto, parecem-me esclarecedores alguns dados biográficos: Poucos anos depois de formado, mais precisamente entre 1925 ––  período em que a medicina e a ciência alemãs eram influentes nos círculos médicos científicos brasileiros –  Praguer Fróes freqüentou o Instituto Tropical de Hamburgo, diplomando-se em patologia tropical e parasitologia médica. De volta ao Brasil, assumiu a cátedra de Clínica de Doenças Infecciosas da Faculdade de Medicina da Bahia. Em novembro de 1945, foi nomeado secretário de Educação da Bahia pelo governador João Vicente Bulcão Viana.

    Mas então já era um cientista de prestígio, considerado como autoridade no campo da saúde pública.  Além disso, era presidente da Associação Cultural Brasil-Estados Unidos, razão de um convite, por parte da Divisão de Relações Culturais do Departamento de Estado, para uma viagem de intercâmbio cultural entre julho e outubro de 1943, no contexto da política de boa vizinhança. Viajou por 30 cidades norte-americanas, conheceu as principais universidades e instituições médicas do país e proferiu 24 conferências sobre assuntos médicos e sanitários, além de outras oito sobre literatura e temas gerais.
     Suas palestras sobre febre amarela e malária repercutiram nas instituições médicas norte-americanas encarregadas de cursos sobre doenças tropicais e epidemiologia. Em New Bedford, o Standard Times, inclusive, saudou-o em editorial: “Hoje New Bedford tem um visitante, que merece as mais sinceras saudações da cidade. Trata-se do Dr. Heitor P. Fróes, do Brasil, um cientista especializado em doenças tropicais (...) Dr. Fróes merece as mais calorosas boas-vindas de New Bedford por duas boas razões. Como cientista, ele tem trabalhado para vencer as doenças tropicais que são pouco conhecidas em nosso país (...) Como autor e palestrante, ele tem compartilhado os frutos de sua pesquisa com cientistas norte-americanos (...)  Quando um homem de tal eminência dedica seu tempo e as suas habilidades ao estudo dos seus vizinhos, nós podemos ter certeza de que a causa da política da boa vizinhança do estabelecimento de melhores relações mundiais está avançando”.
      Ademais de sua produção ficcional (contos, fábulas) e científica (“Lições de medicina tropical”), Praguer Fróes foi principalmente um militante do pensamento erradicacionista, voltado para a extinção dos focos de doenças tropicais. Nisso, foi moderno, eu diria mesmo, pós-moderno, no sentido de associar saúde a desenvolvimento econômico-social. Economistas de renome internacional como Gunnar Myrdall e Celso Furtado alinham-se a esta práxis. A sua atualidade comprova-se em sua participação ativa nas articulações para a campanha de erradicação do mosquito Aedes Egypti nas Américas.
      Basta olhar, prezados confrades, para o panorama devastado dos espaços urbanos de hoje por endemias de febre amarela, dengue, zyka, chikungunya e não se sabe quantas mais doenças epidêmicas negligenciadas, para se ter uma ideia, ainda que diminuta, da relevância de cientistas como Praguer Fróes. A sua ação sanitarista teve, tem e terá importância transnacional. Passado, presente e futuro enfeixados num gesto, eis a marca da temporalidade ancestral, a pregnância do saber imbuído de vigor ético.
    Mas essa é também a temporalidade da memória transindividual ou coletiva. Por isso, eu vou ousar  inserir nessa categoria, ou melhor, nessa gaveta classificatória, dois dos sucessores de Praguer Fróes na Cadeira 33: Waldemar Magalhães Mattos e Ubiratan Castro de Araujo.
    “Memória” não designa aqui nenhuma função psicológica, seja coletiva ou individual, mas a criação, pela narratividade presente, de um passado ou uma ancestralidade politicamente afirmativa.  Considerada do ponto de vista da inserção dos indivíduos num agrupamento complexo, a narração ao mesmo tempo constrói e faz parte da forma de vida sociologicamente identificada com a forma social.
     Forma social é a maneira singular e sensível de ver a sociedade.  Não é uma essência, nem uma substância, nem mero efeito de uma invenção, mas “realidades mediadoras que têm a ver tanto conosco quanto com o que não somos. Elas exprimem uma relação e desempenham ainda nesta perspectiva o papel mediador que lhes foi reconhecido. Não têm apenas um estatuto intermediário entre o concreto e o abstrato, o sensível e o inteligível, o individual e o universal, são também intermediárias entre os dois pólos da relação existencial” (Raymond Ledrut).
      O conceito de forma social parece-nos aqui operativo, porque pressupõe tanto “forma de vida” como “maneira” enquanto figurações da lógica da existência que identificamos nos dois “prosadores da memória”, em Waldemar Magalhães Mattos e Ubiratan Castro de Araujo. A forma deixa transparecer uma modalidade individual e coletiva da existência humana, sem separar radicalmente a ação da representação ou da consciência. Pela forma social, reconhecemos a objetividade da vida em sociedade sem desconsiderar o vivido (subjetivo) dos indivíduos.
    Por meio do relato, seja historiográfico ou memorialístico –– como faz Waldemar Mattos em “Panorama Econômico da Bahia”, “Palácio da Associação Comercial” e em “A Bahia de Castro Alves” ––, seja historiográfico  –– como faz Ubiratan Araujo em  “A Guerra da Bahia” ou  literário em “Sete histórias de negros” ––  a forma social  baiana é apreendida de tal modo que a sua interpretação epocal pode constituir-se em processo de criação de realidade social e assim ser transmitida para as novas gerações. A narrativa garante a memória coletiva como forma de vida, isto é, como manifestação de uma historicidade particular.
        A noção de historicidade, referida a monumentos e documentos, equivale para  o filósofo Paul  Ricoeur à de temporalidade: “A fonte de autoridade do documento enquanto instrumento desta memória (a memória coletiva) é a significância reconhecida ao traço. Só se pode dizer que os arquivos são instituídos e os documentos recolhidos e conservados a partir do pressuposto segundo o qual o passado deixou um traço, constituído graças a monumentos e documentos como testemunha do passado”. O traço aparece, nesse viés, como “signo presente de um passado ausente”, isto é, como um registro com estatuto ontológico dúplice, porque referido a tempos heterogêneos. Num primeiro nível, o traço é algo físico que vem do passado. Num segundo, a existência desse “algo” depende do reconhecimento de alguém, a exemplo de um grupo intelectual que afirme a sua continuidade histórica, como estamos fazendo aqui e agora.
      Traço significa presença da ancestralidade e  ausência do presente na contínua passagem do passado para o futuro. Não é um conceito historiográfico, mas fenomenológico, no sentido de que suspende, por meio do tempo passado, a referência presente, abrindo espaço para outra referência,  criadora de um signo da mudança, objeto do tempo histórico. O traço é, assim, um conector histórico, uma espécie de fio intergeracional que preserva os valores éticos de um passado pronto a ser narrado. Por isso, gostaria de assinalar a passagem de Waldemar Mattos e Ubiratan Araujo pela Cadeira 33 como  “prosadores de traços da memória”.
      Antes de discorrer sobre  a ocupante número cinco da Cadeira, não posso deixar de deter-me um pouco sobre o número três ( 33, desdobrado). É um número de fundamento. Descrito pela filosofia hindu, o três “é uma onda, uma curva senoidal, uma vibração à luz ou ao som. Quando duas ondas colidem, um novo fenômeno é criado. Essa é a criatividade inerente da natureza. Mesmo no nível mais sutil da vibração e das partículas subatômicas, a oscilação intrínseca da natureza desencadeia um ciclo infinito de criação, destruição e recriação. Do número três se originam muitos” (B.K.S. Iyengar).
       Este é um número conhecido nessa mesma profundidade pelo povo de santo, pelas comunidades litúrgicas afrobrasileiras, porque é o mesmo do primogênito mítico, mas também do pai-ancestral, denominado Exu.
       Não tenho dúvida de que o número três abriu o caminho para que o número cinco, afim à divindade Oxóssi, cultuada por  Mãe Stella de Oxóssi, ajudasse em sua instalação na Cadeira 33 como quinta ocupante. Uma biografia simbolicamente exemplar: Maria Stella de Azevedo Santos nasceu no quinto mês de 1925, na cidade de Salvador e formou-se em Enfermagem pela Escola de Saúde Pública da Bahia, em 1945.  Ficou 41 anos à frente do Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, uma das três casas matriciais dos cultos afrobrasileiros.
      O que haveria de muito auspicioso, no reconhecimento ético-político que se presta a uma zeladora de orixás como Mãe Stella de Oxóssi?
    É que existe um forte sentido ético-político nos modos de persistência dos cultos, ao combinarem a força interna de sua liturgia com as alianças simbólicas implícitas entre eles e determinados segmentos da sociedade global. O desafio de toda ética é recusar as abstrações universalistas em favor de uma determinação concreta do sujeito. Para o indivíduo da comunidade litúrgica, sempre se tratou de uma luta ética e política (embora não político-partidária) para inscrever a singularidade afro-brasileira no espaço da coexistência nacional.
       Para os africanos e os descendentes de africanos no Brasil, recém-saídos de uma Abolição que lhes negara qualquer assistência econômica e social, que os deixara sem terras, para esses aspirantes à cidadania, era imperioso um lugar que lhes garantisse ao menos a soberania do espírito.
Era uma preocupação que ia além da própria comunidade negra. Rui Barbosa, o grande tribuno patrício, dizia que “a escravidão gera a escravidão, não só nos fatos sociais como nos espíritos”. Joaquim Nabuco, seu confrade pernambucano, o secundava: “Não basta acabar com a escravidão, é preciso acabar com a obra da escravidão”
      A experiência da cultura jeje-nagô-ketu reflete exemplarmente a ancestralidade e a visão-de-mundo características da civilização africana. Em torno da família-de-santo ou das comunidades litúrgicas de origem africana, conhecidas como candomblés, criou-se um modelo singular de organização social da gente negra. Fundou-se aqui, portanto, num espaço privilegiado, destinado a se tornar uma metáfora espacial da África mística, um egbé, uma comunidade litúrgica, um terreiro, onde habitariam as divindades, os homens, as mulheres e seus frutos. Mas onde também, implicitamente, se resistiria à violência da assimilação cultural que tentava sempre exercer a consciência esclarecida pela monocultura européia. Portanto, comunidade litúrgica e quilombo.
    Na verdade, tudo sempre foi um empenho por bom senso e por dignidade, como transparece em algumas das frases de Ana Eugênia dos Santos, Mãe Aninha, fundadora do Axé Opô Afonjá, nas cartas que escreveu às suas filhas-de-santo Agripina e Filhinha entre os anos de 35 e 37. Uma dessas é especialmente marcante: “Depois de eu ter folha no chão, não vou apanhar estrume com a mão”.


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      Nada disso pode ser entendido pela pura abordagem culturalista ou folclorista, e sim como um agir político grupal, de natureza civilizatória. Há de fato um singular agir político na transmissão patrimonial da liturgia negra. Nenhum patrimônio cultural socialmente operativo se transmite como um pacote inerte, um estoque de ativos dados para sempre, mas como algo que é preciso reinserir na História presente, atribuindo-lhe novos contornos, revivificando-o.
    Mãe Stella de Oxóssi foi um ponto alto e intelectualizado na governança litúrgica. Em 1981 criou o Museu Ilê Ohun Lailai, preservando a memória do culto africano. Em 1986 foi eleita na Conferência Internacional de Tradição dos Orixás e Cultura, em New York, representante do Brasil. Publicou livros marcantes como  “Epé Laiyé- terra viva” (2009), “Owé – Provérbios” (2007), “Òsósi – O Caçador de Alegrias” (2006), “Meu Tempo é Agora” (1993), “E Dai Aconteceu o Encanto” (1988).
    O Terreiro do Axé Opô Afonjá é África reterritorializada, reinventada. Um exemplo notável dessa reinvenção é o Corpo dos Obás ou Doze  Ministros de Xangô, inspirado na instituição palaciana de Oió, Nigéria. Divididos em duas falanges –– seis da direita (Otun) e seis da esquerda (Osi), assim como o machado duplo de Xangô ––, os obás têm assento ao lado da ialorixá, como ministros ao lado do rei. Não é uma recriação aleatória: caberia ao obá, cabe de fato ainda hoje ao obá, lutar por aquela “folha no chão” de que falava  Mãe Aninha, isto é, lutar pela dignificação da comunidade litúrgica.
       Ao suceder Mãe Stella na Cadeira 33, como sexto ocupante (seis é número do orixá Xangô), permito-me reiterar a declaração de grande alegria existencial por integrar com o nome honorífico de Obá Aressá, o  Corpo dos Obás. Acho que fui o primeiro obá a ser confirmado dentro da regência de Mãe Stella. Um obá, digamos, “kekerê” (pequeno) quando penso em outros nomes, outras personalidades ( Obá Kankanfô, Miguel Santana, Camafeu de Oxossi, tantos outros...) irmanadas nesse Corpo. Um obá de escasso saber iniciático, mas com fé e muita abertura para o aprendizado com velhos e novos.
         Mas eu que dormi por obrigação na esteira ritual, perto da folha no chão, sigo agora na esteira acadêmica de Mãe Stella de Oxóssi, estendida pela generosidade desta comunidade de Letras.
          O que aqui me traz?
          Eu peço licença para reiterar a resposta à chamada que ensaiei anos atrás, ao ser distinguido com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia, onde me graduei. Eu me oriento intelectualmente pela pesquisa do sentido forte da cultura. Essa busca, marcada por empenhos diversos,  comporta uma vicissitude que atravessa, em modalidades diversas, a minha vida acadêmica e minhas próprias motivações existenciais.
       O primeiro empenho refere-se à temática da realidade da informação pública –– isso que se tem chamado de “mídia” sob o influxo dos  tempos neoliberais –– , evidenciado em minha atividade universitária, livros, artigos e conferências tanto no Brasil como no exterior. É algo que me envolve desde os quinze anos de idade quando comecei no “Jornal da Bahia” ao lado de jovens como Glauber Rocha, João Ubaldo Ribeiro e Wilter Santiago, sob a tutela de jornalistas veteranos como João Batista de Lima e Silva, Ariovaldo Matos, João Carlos Teixeira Gomes, Flavio Costa, José Gorender, Otacilio Fonseca e outros, liderados pelo empresário, ativista e escritor João Falcão. O jornal foi a minha primeira universidade.

    O segundo empenho diz respeito ao sentido de cultura e ao vigor da diversidade cultural. Não se trata da diversidade prolífica de “objetos” culturais (software, canções, filmes, livros etc.), que se multiplicam na dita “sociedade da informação” e que concorrem para a mitologia de um novo tipo de democracia, definida pelo acesso a esses objetos. Eu me preocupo, antes, com “sujeitos de cultura”.  De fato, concebo outro sentido para a cultura, um sentido pleno ou forte, em que a cultura se investe de outra economia, cujos bens não circulem prioritariamente no mercado, e sim num “tecido intersticial que separa e religa os sujeitos”. Cultura, como essa capacidade que tem o sujeito de inscrever no tempo a sua relação imaginária com todos os outros sujeitos por meio de operações simbólicas.
    O sujeito da cultura seria, assim, um sujeito da memória (a memória de sua inserção específica no mundo) e um sujeito da promessa, no sentido de sua fidelidade ou sua vinculação a um mundo em comum. Seria, portanto, um sujeito político, no melhor sentido que esta palavra possa ter. Sujeitos da cultura, individuais ou coletivos, claros ou escuros, são aqueles que no passado e ainda hoje imprimem a marca da transformação nas relações sociais brasileiras.
     Trata-se de uma perspectiva que concebe o presente de uma cultura como o vir-a-ser humano na criação de um sentido continuamente refeito entre o passado e o futuro, e não como mero “presenteísmo” implicado na hipertrofia consumista do instante.  Não concebo cultura como opressão do iletrado, nem escrita como chicote da oralidade, nem pensamento como xadrez  do espírito jogado por esnobes.
       O que me atrai é a visceralidade comunitária, onde a vida em si mesma, em seu todo, é feita de  solidariedade e fé. É isto o que me faz não abrir mão do discernimento crítico. É isto que, ao mesmo tempo, me faz buscar na cultura negro-brasileira um sentido para o estar-no-mundo de amplas frações da população nacional, sempre atento aos interstícios, às fendas e às dobras no tecido do discurso social hegemônico.  Meu trabalho versa principalmente sobre aspectos problemáticos das identificações nacionais.
      Pessoalmente,  quero crer ter sido fortemente marcado pela experiência de associar liturgia à habitação da cidade de Salvador. Algo assim como o Quasímodo de “Notre-Dame de Paris”, para quem, na narrativa de Victor Hugo, a catedral tinha sido “o ovo, a casa, o ninho, a pátria, o universo”. Em imagens mais intensas: “Poder-se-ia quase dizer que ele havia tomado a sua forma como o caracol toma a forma de sua concha. Ela era sua morada, sua toca, seu invólucro... Ele estava, por assim dizer, colado a ela, como a tartaruga à sua casca. A rugosa catedral era sua carapaça”.
    Ser é originariamente morar. Salvador é uma cidade-ninho, onde desfruto  a intimidade de uma velha casa. Uma cidade  que se oferece como uma toca,  como uma roupagem, de gala para uns, em farrapos para outros, mas sempre uma vestidura, ainda quando  se experimenta o desconforto da morada. De fato, as cidades podem ter algo que chamamos de  “espírito”: espírito é o invisível atuante na cidade. É o seu potencial ético, que nos permite ver o invisível nas coisas visíveis, isto é, que se escute a voz da fundação, do Pai Morto, do Egun da Cidade. É uma voz que educa. Aqui, como o Riobaldo de “Grande sertão, veredas”, “eu me inventei no gosto de especular ideias”. Para isso, tenho procurado seguir o preceito do Terreiro: “Quem joga água no caminho anda em areia macia”.
       Prezados confrades, de pé na trilha das Iyás ou sentado na Cadeira 33,  eu espero  zelar  aqui também pela folha no chão.

     Muito obrigado!