Monumento Opo Baba Nla Wa de Mestre Didi em homenagem aos ancestres africanos.
Foto e acervo: M. A. Luz
Há um clamor das comunidades afrobrasileiras por políticas públicas na área de Educação que criem espaços institucionais capazes de combater o racismo suas engrenagens ideológicas, que tendem a tragar a vida de crianças e jovens,que experimentam situações adversas no cotidiano escolar que causam muita dor e humilhação.
As nossas iniciativas na área de Educação, procuram estabelecer canais de solidariedade com todas as crianças e jovens que não abrem mão do seu direito de ser, de pertencer as comunidades afrobrasileiras, viver seus ritos de iniciação e de passagem,característicos das instituições que contribuem para a expansão da ancestralidade afrobrasileira.
Nosso desafio:provocar os/as educadores/as fazendo-os/as pensar a identidade profunda de crianças e jovens descendentes de africanos/as no Brasil. Se somos educadores no Brasil,não podemos ter medo de pensar e realizar iniciativas socioeducativas a partir do que somos como povo que tem na dinâmica da sua constituição civilizações milenares das Américas e África.
Odé e os Orixá do Mato de Mestre Didi encenado no Festival de Arte Integrada da Mini Comunidade Oba Biyi.
Foto e acervo: M. A. Luz
Temos que aprender a ter orgulho desse legado e respeitá-lo! Infelizmente nos deparamos na nossa trajetória com a institucionalização de cursos para formação de professores/as que os afastam ,disciplina-os para esquecer, ter vergonha e até mesmo, temer os valores e linguagens que comunicam o patrimônio da civilização africana que também protagoniza a formação social,a nossa história.
Odé e os Orixá do Mato de Mestre Didi encenado no Festival de Arte Integrada da Mini Comunidade Oba Biyi.
Foto e acervo: M. A. Luz
Temos que aprender a ter orgulho desse legado e respeitá-lo! Infelizmente nos deparamos na nossa trajetória com a institucionalização de cursos para formação de professores/as que os afastam ,disciplina-os para esquecer, ter vergonha e até mesmo, temer os valores e linguagens que comunicam o patrimônio da civilização africana que também protagoniza a formação social,a nossa história.
O meu respeito e admiração pelo pensamento de Muniz Sodré atravessa o tempo e se mantêm, por reconhecer o seu legado no âmbito acadêmico,como uma (re)criação original que se caracteriza por uma “epistemologia compreensiva”, de onde brota horizontes de questionamentos, interrogações e proposições filosóficas sobre Educação.
Muniz abre perspectivas de abordagens em Educação importantes,nos encorajando a propor espaços institucionais que reconheçam e respeitem as comunalidades afrobrasileiras como mananciais socioeducativos valiosos.
Nas comunalidades afrobrasileiras nossas crianças e jovens aprendem, elaboram conhecimentos e expressam esses universos característicos do pensamento africano e suas atualizações nas Américas, através da vivência e convivência com orikis, contos, instrumentos percurssivos cujos toques falam/comunicam relatam histórias anunciando os primórdios da humanidade, indicando princípios ético-estéticos capazes de expandir o corpo comunitário dando continuidade aos elos de ancestralidade que projetam e anunciam a ALEGRIA TRANSCENDENTE.
É acreditando nessa epistemologia compreensiva que atravessa todo o pensamento de Muniz, que ousamos a fazer a homenagem a ele através das metáforas “O chão,a roda e o samba”. E nada melhor para começar a pisar o chão,entrar na roda como um samba cuja poesia conta um pouco desse baiano, Oba de Xangô, mandigueiro e intelectual Muniz Sodré.
“Foram me chamar
Eu estou aqui, o que é que há
Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho
Mas eu vim de lá pequenininho
Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho
Eu estou aqui, o que é que há
Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho
Mas eu vim de lá pequenininho
Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho
Sempre fui obediente
Mas não pude resistir
Foi numa roda de samba
Que juntei-me aos bambas
Pra me distrair
Quando eu voltar na Bahia
Terei muito que contar
Ó padrinho não se zangue
Que eu nasci no samba
E não posso parar
Foram me chamar”
Mas não pude resistir
Foi numa roda de samba
Que juntei-me aos bambas
Pra me distrair
Quando eu voltar na Bahia
Terei muito que contar
Ó padrinho não se zangue
Que eu nasci no samba
E não posso parar
Foram me chamar”
(D. Ivone lara)
“O chão,a roda e o samba” são metáforas,forças semânticas,três anúncios,três dinâmicas de linguagens e valores que constituem o patrimônio africano-brasileiro.Estamos nos referindo a linguagens e valores de suma importância na promoção de uma educação capaz de promover o direito à alteridade civilizatória de crianças,jovens e adultos que vivem a pulsão de sociabilidade das nossas comunalidades afrobrasileiras.
Aqui está o legado singular do pensamento de Muniz Sodré!
Singular aqui,na dinâmica de linguagens e valores que irrigam o chão,a roda e o samba é como o próprio Muniz nos ensina “... a ordem do incomparável, do único, é aquela experiência original que está ali. O singular é você reconhecer o real tal qual ele se apresenta, com todas as suas características. Você vê, reconhece não se pergunta pela essência dele, não precisa de adjetivos.” [2]
Samba de Roda das Ganhadeiras de Itapoan.
Imagem disponível na internet
Na pulsão de vida que transborda no pisar o chão,entrar na roda e vivenciar a polirritmia do samba,aprendemos de modo muito especial com Muniz, a rasurar e transcender os discursos etnocêntricos e racistas que atravessam o pensamento sobre Educação no Brasil.E mais que isso!É a recusa ao monopólio da fala e suas extensões panópticas e simulacros;é também o exercício de pensar e erguer espaços socioeducativos que têm a síncopa como um caminho importante para a afirmação do direito à alteridade civilizatória africano-brasileira;e sobretudo assumir a radicalidade da alegria (uma das mais importantes categorias filosóficas nacionais no dizer do próprio Muniz).
Samba de Roda das Ganhadeiras de Itapoan.
Imagem disponível na internet
Na pulsão de vida que transborda no pisar o chão,entrar na roda e vivenciar a polirritmia do samba,aprendemos de modo muito especial com Muniz, a rasurar e transcender os discursos etnocêntricos e racistas que atravessam o pensamento sobre Educação no Brasil.E mais que isso!É a recusa ao monopólio da fala e suas extensões panópticas e simulacros;é também o exercício de pensar e erguer espaços socioeducativos que têm a síncopa como um caminho importante para a afirmação do direito à alteridade civilizatória africano-brasileira;e sobretudo assumir a radicalidade da alegria (uma das mais importantes categorias filosóficas nacionais no dizer do próprio Muniz).
É dessa ligação profunda com sua territorialidade,seu solo de origem que Muniz nos aproxima do “O chão,a roda e o samba” representam infinitas linguagens e vivências acumuladas por um bom capoeira, discípulo de Mestre Bimba, que logo cedo percebeu que Muniz tinha talento e “ginga” para lidar com as línguas estrangeiras dando-lhe o nome de “Americano”.
Mestre Bimba criador da Capoeira Regional e da Academia de Capoeira.
imagem disponível na internet
É gingando nos interstícios e fissuras da Razão de Estado, superando as tensões e conflitos característicos da panacéia e utopias urbano-industriais, que Muniz realiza uma travessia empírico-reflexiva fascinante,que intercambia o clássico pensamento grego, ao universo simbólico próprio da cosmovisão afrobrasileira e as tensões e conflitos entre essas civilizações.Essa travessia ou “manha”,como quer o vocabulário da capoeira,é que irá imprimir um pensamento filosófico singular,aplicado à Comunicação, e que aqui ouso afirmar também, na área de Educação.
Mestre Bimba criador da Capoeira Regional e da Academia de Capoeira.
imagem disponível na internet
É gingando nos interstícios e fissuras da Razão de Estado, superando as tensões e conflitos característicos da panacéia e utopias urbano-industriais, que Muniz realiza uma travessia empírico-reflexiva fascinante,que intercambia o clássico pensamento grego, ao universo simbólico próprio da cosmovisão afrobrasileira e as tensões e conflitos entre essas civilizações.Essa travessia ou “manha”,como quer o vocabulário da capoeira,é que irá imprimir um pensamento filosófico singular,aplicado à Comunicação, e que aqui ouso afirmar também, na área de Educação.
Sim!Educação!Mas refiro-me àquela perspectiva de Educação que se apropria do repertório da dinâmica do “O chão,a roda e o samba” visceral nas obras de Muniz e que ele nos estimula a transformá-la numa:
“(...)ágora, não a grega, mas uma ágora negra, uma cidadela, uma organização social com regras próprias, algo que tornou (...) a Bahia uma coisa singular. Os estudos sobre o negro no Brasil são mais repetição do método acadêmico do que pensamento. O que me interessa, (...) é a possibilidade de ver um pensamento original, uma filosofia que inclui o corpo, que não é só conceitual. Mas o que é a filosofia no Brasil. Certo, eu também estudo Heidegger, Hegel, Platão, adoro esses caras, mas acho que se você ler realmente os grandes filósofos, independente da academia, você constata que eles estavam preocupados com a cidade deles, digamos assim. Acho que você só pensa originalmente quando o faz radicalmente, a partir de suas raízes, o que a academia no Brasil não ousa fazer.” (SODRÉ,2001,P,.10)
Uma séria constatação: na Bahia territorialidade imantada pela alteridade civilizatória afrobrasileira,por exemplo, vivemos um grande dilema, pois a Universidade não conseguiu fundar nem gregos nem baianos, como diz Gilberto Gil na música Tempo Rei.
Pedra Sagrada de Xangô em Cajazeiras Ba.
Imagem disponível na internet
Essa Bahia, onde a presença da civilização africana é pujante caracterizando a sua polis, há uma tendência a acolher cursos de formação de educadores vinculados exclusivamente aos valores civilizatórios greco-romanos, anglo-saxão,ibérico. A opção institucional por essas arkhés alheias à nossa existência vem produzindo ao longo dos séculos políticas educacionais que procuram recalcar os contínuos civilizatórios que caracterizam povos milenares. O resultado dessas políticas educacionais destituídas dos valores característicos da nossa população é a incapacidade de produzir conhecimentos significativos sobre as nossas territorialidades afrobrasileiras, e dela, extrair perspectivas que aproximem os educadores das dinâmicas de sociabilidades pluriculturais.
Pedra Sagrada de Xangô em Cajazeiras Ba.
Imagem disponível na internet
Essa Bahia, onde a presença da civilização africana é pujante caracterizando a sua polis, há uma tendência a acolher cursos de formação de educadores vinculados exclusivamente aos valores civilizatórios greco-romanos, anglo-saxão,ibérico. A opção institucional por essas arkhés alheias à nossa existência vem produzindo ao longo dos séculos políticas educacionais que procuram recalcar os contínuos civilizatórios que caracterizam povos milenares. O resultado dessas políticas educacionais destituídas dos valores característicos da nossa população é a incapacidade de produzir conhecimentos significativos sobre as nossas territorialidades afrobrasileiras, e dela, extrair perspectivas que aproximem os educadores das dinâmicas de sociabilidades pluriculturais.
Essas considerações pontuam aspectos que designam a dinâmica e tensões entre territorialidades radicalmente distintas, a saber: a colonial europocêntrica representada pela metáfora da “casa grande e senzala”; e a africana influenciando e instituindo kilombos e legitimando a floresta simbólica expansão de civilizações milenares...
Bem. Ao longo dos anos vivi muitas inquietações e angústias como educadora,é muito especial para nós, a abordagem que encontramos no pensamento de Muniz aplacando essas inquietações e angústias.Escutem mais essa reflexão do nosso homenageado: [...] Os neo-alexandrinos tinham uma categoria chamada ‘eon’, que é uma das maneiras de dizer tempo em grego. O ‘eon’ é o tempo que recorre. Então, há alguma coisa na Bahia que é a ordem do ‘éon’, ‘trans-histórico’, transtemporal. Onde há ‘éon’ tem-se o princípio forte de ancestralidade, de paternidade, e não de história pura. A história, principalmente a história como Hegel e Marx viram, é dinâmica, é uma mutação sem compromisso com o pai, porque o ocidente é uma sociedade deicida e parricida, matou Deus e mata o pai. Bem, eu estou falando com outra linguagem, do Egun, que é o culto ao ancestral. Portanto, o princípio da ancestralidade é poderoso, porque nele você pode crescer, envelhecer, morrer, e o tempo inteiro você é atravessado por um discurso de fundação de seu pai e sua mãe. Você não se livra desse discurso. Você pode tentar rejeitá-lo, mas quando joga fora é para cair num outro que você funda, porque você se livra de seu pai físico, mas quando tem um filho vira o pai e você está no discurso de
fundação...”
Miguel Sant`Anna Ojé Orepe, Mestre Didi Alapini Ipekun Oye, Arsênio dos Santos Alaba Olukotun
Insígnes personalidades da história do Ilê Asipa.
Imagem acervo Galeria do Ile Asipa
Em todas as suas obras Muniz vai nos lembrando dos ciclos do tempo, que marcam a ontológica diversidade humana e neles as utopias da modernidade e a sua pretensa idéia de controlar o destinos,a vida e a morte.
Miguel Sant`Anna Ojé Orepe, Mestre Didi Alapini Ipekun Oye, Arsênio dos Santos Alaba Olukotun
Insígnes personalidades da história do Ilê Asipa.
Imagem acervo Galeria do Ile Asipa
Em todas as suas obras Muniz vai nos lembrando dos ciclos do tempo, que marcam a ontológica diversidade humana e neles as utopias da modernidade e a sua pretensa idéia de controlar o destinos,a vida e a morte.
“A origem quanto o destino foram afastados da visão moderna; a primeira foi reduzida a datas históricas, o outro a um plano econômico. A ritualização desapareceu. Continuamente nos preocupamos com a nossa origem e com o nosso destino, só que esta preocupação permaneceu a nível individual. Isto explica a força da psicanálise a partir do século XIX. A psicanálise não fala de outra coisa senão disto. Assim, tudo o que se refere à origem e ao destino entrou para os subterrâneos da racionalidade... O mistério é aquilo que se silencia : O Ocidente deve calar-se a respeito do mistério da origem e do destino porque a racionalidade histórica não lhe permite que fale a respeito...”[3]
Insistindo com vocês a pensar o título desse mosaico”o chão,a roda e o samba”.
O CHÃO é ARKHÉ,princípio,origem,devir... Vínculos de sociabilidades de tempos imemoriais,ou no dizer dos nossos/as mais velhos/as quando nos apresentam os itans: “no tempo em que a humanidade morava nas árvores e conversavam com elas”...
Nas obras de Muniz Sodré, a ARKHÉ se refere às ritualizações da origem, do destino, morte e renascimento. Há também que se considerar arkhé como o conhecimento da origem que comunicam as elaborações da comunidade sobre os modos de pensar, valores e linguagens, saberes simbólicos. Muniz destaca que a palavra arkhé vem do grego “syn-ballein”, que se refere a “lançar junto com”, e esse movimento de lançar é carregado de símbolos que atravessam gerações e vão compondo histórias, narrativas de origem e começo, o universo simbólico que caracteriza o grupo, a comunidade, as comunalidades.
É aí que operamos com a noção de arkhé, para identificarmos em qual sistema de civilização se localizam instituições, sociabilidades, valores, identidades, modos de produção, etc.
A noção de arkhé engloba o princípio de ancestralidade que se caracteriza pelas bases fundadoras e inaugurais das civilizações e suas dinâmicas sucessórias, os contínuos.
E por falar em ancestralidade cabe ainda ressaltar que há um grande equívoco pensar ancestralidade apenas como uma carga genética! Ancestralidade não é uma sucessão genética.
A ancestralidade se caracteriza por representar as lideranças comunitárias que se dedicaram em vida ao bem estar da família, linhagem, comunalidade através da manutenção e preservação dos valores e linguagens que sustentam o bem estar e destino individual e coletivo.
Mãe Aninha Iyalorixá Oba Biyi fundadora do Ilê Ase Opo Afonjá líder sacerdotal da comunalidade nagô.
Imagem disponível na internet
Ancestral é, portanto aquele ou aquela que em vida deu continuidade e garantiu a expansão da memória da sua comunalidade. Os ancestrais são lembrados e consagrados para depois em outro plano de existência continuar protegendo a existência e promovendo a alegria de sua gente. Enfim,é aquele que dedicou sua vida para garantir a continuidade da tradição.
A ARKHÉ organiza e dá pulsão a RODA, que dá origem a linguagem própria das culturas de participação, caracterizando territorialidades que promovem formas e modos de comunicação tornando possível um corpo livre em permanente movimento de transcendência, e mais do que isso,capaz de realizar e expandir o modo próprio africano de existir e manter a sua identidade profunda individual e coletiva.
A RODA irriga a síncopa do SAMBA,que apela para todos os sentidos do corpo (tato,audição,visão,paladar,olfato) carregando o jogo,a brincadeira,a dança,a dramatização,a poesia,a polirritimia...Enfim,formas de comunicação que incitam a participação direta, interdinâmica, pessoal ou intergrupal, a recriação de uma outra ordem de valores civilizatórios para além do europeu.
Como afirma Muniz:”(...)Cantar,dançar,entrar no ritmo,é como ouvir os batimentos do próprio coração ,é sentir a vida sem deixar de nela reinscrever simbolicamente a morte...O ritmo negro é uma síntese(sonora) que atesta a integração do elemento humano na temporalidade mítica.Todo som que o indivíduo humano emite reafirma a sua condição de ser singular,todo ritmo a que ele adere leva-o a reviver um saber coletivo sobre o tempo ,onde não há lugar para a angústia,pois o que advém é a alegria transbordante da atividade,do movimento induzido.”(p 24)
As instituições afrobrasileiras as quais nos referimos,estão envoltas a dinâmica do chão,da roda e do samba,dinâmicas que marcam o alvorecer da humanidade, permitindo presentificar acontecimentos míticos, aproximar-se de tempos imemoriais, das descrições de experiências vividas pelos/as ancestrais, da relação dialética entre vida e morte, rememorar e reverenciar famílias, linhagens, personalidades exponenciais que contribuíram para expandir e fortalecer as instituições , remeter a lugares sagrados, alianças e conflitos, dramatizações que contam a história de afirmação das nossas comunalidades.
Estamos diante de um universo comunicacional,característico das comunalidades tradicionais vinculadas a arkhé ,a ancestralidade ,tudo é singular, pois está embebido de mistério,do sagrado,da imponderabilidade que envolve vida e morte, o infinito que no aqui e agora se descortina de modo intermitente.
É nesse solo de origem eminentemente africano-brasileiro ,prenhe de sabedoria,afeto e alegria que o Oba Aresá, nos aproxima da elegância de textos, que abrigam categorias de análises e composições temáticas singulares.
E o que é a roda que singra o chão e cria movimentos sincopados para o existir?
Quem responde é Santugri!
“Não é nada,não é nada, a roda.Se o vazio ou o traço?Bom,do vazio Deus fez este mundão todo.Não é nada o traço? Mas a criatura só existe quando deixa marca,traça.Para mim,o traço,o vazio,a roda é tudo.Não é nada,não é nada,é tudo.Gosto, moço.Nela meu corpo é meu-parece que nele nem corre sangue,corre mel.Meu corpo,meu corpo/foi Deus quem me deu/na roda da capoeira/Rarrá!/grande e pequeno sou eu.Meu nome é Santugri,moço.Posso dizer que o nome está ligado a meu segredo.Muito mais não posso contar,nem se quissesse,porque eu mesmo não sei.Mas posso dizer,isto sim, que este meu nome foi causa de mudança.
Foi minha sorte moço,pois o som dessa palavra casava fácil com meu corpo,repercutia bem na roda.Santugri(...) faz parte de mim,queira ou não.Passarinho não canta por gosto,canta por obrigação.Eu jogo capoeira por cerimônia,por destino.É minha sina,minha sorte.Morrendo,moço,não quero ir pra lugar nenhum-a roda é meu paraíso.”[4]
Roda de capoeira, Grupo Abolição no ACRA Associação Crianças Raízes do Abaeté.
Acervo M.A. Luz
Roda de capoeira, Grupo Abolição no ACRA Associação Crianças Raízes do Abaeté.
Acervo M.A. Luz
É no universo ético-estético da síncopa da roda,que transborda a regência da alegria, princípio seminal da arkhé afrobrasileira que irá singularizar o legado de Muniz Sodré para a minha geração e as gerações de educadores/as com as quais tenho tido o prazer de conviver.
Mo du pé Oba Aresá!
Obrigada Muniz!
A DINÂMICA DO JOGO
As estratégias de descolonização caracterizam fundamentos profundos de jogos e vão ser interpretadas como uma arte que envolve astúcia, criatividade, improvisos, sensibilidade, afeto, mas também um planejamento ardiloso do início ao fim da ação, sem se tornar refém dos detalhes(tática) que o cercam, como bem observa o autor.
Então,a dinâmica discursiva que estrutura o jogo da comunicação não se reduz a “racionalidade lingüística” nem tão pouco as “lógicas argumentativas da comunicação”, mas a radicalidade das “estratégias sensíveis”, que apelam para a infinitude de combinações de linguagens que agem”...afetivamente em comunhão, sem medida racional, mas com abertura criativa com o outro, estratégia é o modo de decisão de uma singularidade. Muito antes de se inscrever numa teoria a dimensão do sensível implica uma estratégia de aproximação das diferenças-decorrente de um ajustamento afetivo, somático, entre partes diferentes num processo, fadada à constituição de um saber que, mesmo sendo inteligível, nada deve à racionalidade crítico-instrumental do conceito ou às figurações abstratas do pensamento.”(p.10)
É certamente difícil para nós, acostumados a Razão universal que funda a História e Geografia civilizatória do ocidente, acolhermos referências comunicacionais que transcendam as fronteiras entre logos/Razão e pathos/paixão. Na verdade essas fronteiras constituem dicotomias que institucionalizaram campos semânticos perversos, a exemplo das classificações que sobredeterminaram o destino de muitos povos considerados “pagãos”,”primitivos”,”selvagens”,”não humanos”... “Nessa dicotomia,a dimensão sensível é sistematicamente isolada para dar lugar à pura lógica calculante e à total dependência do conhecimento frente ao capital”(p.12)
Projeção futurística de cidade tecnológica
Imagem disponível na internet
Exemplos como esse talvez nos levem a pensar numa nova “Cidade humana” como se refere Muniz, que identifica no âmbito de novas tecnologias do social, modos de sociabilidade envolvendo os planos intelectual, territoriais e afetivos que rompem com a oposição logos e pathos.
Ora, há infindáveis horizontes de tecnologias envolvendo informação, comunicação, imagem que transgridem o acervo clássico do conhecimento institucionalizado pelo poder de Estado,estabelecendo de modo radical outra possibilidade cognitiva. Mas como isso é possível?
Vejamos então como esses horizontes de tecnologias soam para Muniz:”... A afetação radical da experiência pela tecnologia faz-nos viver plenamente além da era em que prevalecia o pensamento conceitual, dedutivo e sequencial, sem que ainda tenhamos conseguido elaborar uma práxis(conceito e prática) coerente com esse espírito do tempo marcado pela imagem e pelo sensível,em que emergem novas configurações humanas da força produtiva e novas possibilidades de organização dos meios de produção.”(p.12)
Muniz alerta sobre a aproximação progressiva entre a vida e a tecnologia. Na base desse universo comunicacional está anunciado uma bios-virtual, isto é, uma vida virtual que impõe “outra cultura”,alicerçada na globalidade tecnoeconômica, que através da dimensão da imagem,do afeto e do sensível, produz sujeitos de mercado adaptáveis à formação do “capital humano”.
O UNIVERSO IMANENTE:O BIOS-MIDIÁTICO.
A perspectiva que nos intriga na ambiência comunicacional : a bios-virtual condensa o espaço-tempo à técnica que estrutura a vida social submetida a territórios imateriais, simulacros da existência em sintonia com o mercado o novo capital. O impacto é a institucionalização de uma: “comunidade afetiva de caráter técnico e mercadológico, onde impulsos digitais e imagens se convertem em prática social.”(p.99)
As sociedades contemporâneas sobredeterminadas pelo bios-midiático e a efervescência dos seus territórios imateriais desdobramento das tecnologias da informação, recebem os sopros de um universo comunicacional stricto sensu “indicial”.
Sobre ele há superposições de índices, signos,(imagem), dígitos, símbolos(sistema lingüísticos) relacionados a formas de transmissão de saberes e informações que caracterizam uma nova interação humana com o mundo ou os mundos que se apresentam.
O desafio, ou a grande questão que se impõe a essas formas culturais vinculadas a “circulação indicial” como quer Muniz,é que “...o índice configura-se como o signo mais adequado a um novo tipo de relação social carente de dimensões de profundidade semântica ou de valores éticos ordenados, em que predomina, no lugar da clássica’interioridade’ psíquica ou do sujeito definido por um ponto de vista estratégico, a pura contiguidade relacional das redes midiáticas ou cibernéticas”.(p.109)
Como recurso metodológico o autor apresenta dois mitos fundadores da civilização ocidental para que entendamos a nova linguagem comunicacional contemporânea,onde o sentido da visão continua em cena,mas a tatilidade assume importância.Ambas intercambiam-se introduzindo um novo campo de sensibilidade.
Narciso filho do Deus Cefiso e da ninfa Liríope recebeu a advertência do advinho Tirésias, que viveria melhor se não se olhasse. Quando tornou-se adulto Narciso ficou belíssimo, o que atrai a atenção e desejo de muitas moças e ninfas. Mas Narciso mantém-se sempre insensível ao amor, o que provoca a ira das mulheres que pedem vingança a Nêmeses. Um dia Narciso inclina-se numa fonte para beber água, e vendo o seu rosto refletido fica enamorado. Desse dia em diante ele passa a ficar indiferente ao mundo e constantemente passa a admirar a sua própria imagem até morrer.
Narciso e a sedução da própria imagem
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O mito de Narciso mostra o quanto ele é indiferente à sociabilidade, à troca com o outro, à doação recíproca. Ele não aceita o outro corpo o corpo da ninfa, e entrega-se à troca com sua própria imagem, e é punido por denegar a presença do outro e ter uma atração absoluta por si próprio. Narciso mata a verdade de si mesmo e morre em sua própria imagem.
Muniz chama atenção no mito que”...a deriva descontrolada das imagens leva à morte do humano, identificado com a mediação simbólica”(p.111)
Aqui o mito de Édipo, também nos faz refletir, isto porque, demonstra o quanto à onipotência da bios-midiátrica lineariza, estabelece taxionomias, simulacros, que satura todos os espaços que cria A história de Édipo é interessante, pois marca:
[...] o poder do Ocidente exatamente porque expõe a pretensão de um olhar universal. Édipo-Rei é uma tragédia da visão-ele pode ver tudo, mas não se vê. Ao cegar-se, no final, interiorizando a sua visão, ele ainda está na pretensão de tudo ver, mesmo na escuridão. É essa onipotência edipiana que estrutura o mundo Ocidental que arma o olho funcionalizando-o em termos eficazes, de todos os recursos possíveis, para se investir da veleidade de um poder de visão universal.[5]
Édipo decifra o enigma da esfinge. O poder e a onipotência do saber.
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Portanto,a cegueira é capaz de desenvolver outras sensibilidades que promovem experiências de aprendizagens especiais pois se “vê mais” através das sensações táteis, olfativas, auditivas e gestuais, todas intercambiáveis que (re)orientando de modo radical as práticas sociais.
Daí emergir”...a sensorialidade do indivíduo, capturada pelas exigências técnicas do controle cibernético,para que aprenda índices(setas,figuras,palavras)necessários à construção de uma espécie de cartografia de trânsito(ou ‘navegação’) na rede...Tateia-se nos intinerários sonoros,visuais e textuais em busca dos ídices de conexão ou elos(links).McLuhan tinha plena razão,não fez mero jogo de palavras,quando se referiu a ‘massagem’,e não a mensagem,como efeito característico da mídia eletrônica”.(p.115)
E mais:”...No hipertexto ou hipermídia, onde se hibridizam recursos diferenciados como arquivos sonoros, textos, videoclipes, fotos, etc., o usuário trafega em complexos ambientes dinâmicos,espreitado pela possibilidade estésica e manifestadamente narcísica da vertigem,como bem assinala Machado;’o navegante’ está sempre a um passo da vertigem, permanentemente arriscado a se perder no mar de textos’”.(p.115)
Eis,então a proposição do autor de uma epistemologia compreensiva,que sai da ordem do discurso linear-sequencial e irrompe uma análise comunicacional à deriva do repertório de informação que inauguram “novos cenários urbanos de comunicação”,ao qual chama de “sensorium novo” potencialmente vinculado aos modos de sociabilidade que envolvem os jovens que vivem os valores do mercado transnacional contemporâneo.
Neste panorama faz sentido a importância da epistemologia compreensiva para a Comunicação,principalmente considerando que as “...as tradicionais ciências sociais e humanas sempre procuraram inscrever positivamente o fato(social,histórico,individual)numa ordem de causalidade capaz de levar a uma apreensão objetiva da realidade por meio da interpretação adequada.O desafio epistemológico e metodológico da Comunicação enquanto práxis social,entretanto,é suscitar uma compreensão,isto é, um conhecimento e ao mesmo tempo uma aplicação do que se conhece,na medida em que os sujeitos implicados no discurso orientam-se ,nas situações concretas da vida,pelo sentido comunicativo obtido”(p.15)
Ao sabor dessa epistemologia compreensiva, o autor nos aproxima de insondáveis perspectivas que envolve por exemplo: os ciclos do tempo, que marcam a ontológica diversidade humana, e neles, as utopias da modernidade e sua a pretensa idéia de controlar os destinos,a vida e a morte; a análise no interior das novas tecnologias que representam as dinâmicas de sociabilidade contemporâneas,e no interior delas a predominância da dimensão do afeto e do sensorialismo.
Outro aspecto relevante no livro é o esmaecimento da Razão técnico-instrumental característica da pensamento clássico do Ocidente face a emergência intermitente da estética e da imagem (código fundamental das redes midiáticas) na constituição do bios-midiático.
Muniz alerta sobre a aproximação progressiva entre a vida e a tecnologia. Na base desse universo comunicacional está anunciado uma bios-virtual,isto é, uma vida virtual que impõe “outra cultura”, alicerçada na globalidade tecnoeconômica, que através da dimensão da imagem, do afeto e do sensível, produz sujeitos de mercado adaptáveis à formação do “capital humano”.
O mais intrigante :a bios-virtual condensa o espaço-tempo à técnica que estrutura a vida social submetida a territórios imateriais, simulacros da existência em sintonia com o mercado o novo capital.O impacto é a institucionalização de uma: “comunidade afetiva de caráter técnico e mercadológico,onde impulsos digitais e imagens se convertem em prática social.”(p.99)
Uma valiosa abordagem também acontece sobre política como expressão do poder de Estado, que durante muito tempo foi o eixo central da vida social(final do século XIX e primeiras décadas do século XX) hoje saturada,mais insiste em existir através do apelo a estética produzida pelo bios-virtual do marketing e da mídia responsáveis por produzir a “democracia cosmética” que sustenta o regime das aparências.
[1] Palestra proferida na Universidade Federal do Rio de Janeiro na ocasião da homenagem a Muniz Sodré pela passagem dos seus 70 anos.
[2] SODRÉ, Muniz. Entrevista a Mariluce Moura, Caderno Valor, 4 de março de 2001, p.10
[3]SODRÉ,Muniz.O Solo de Origem in LUZ,Narcimária(ORG.)Pluralidade Cultural e Educação.Salvador:Secretaria da Educação do Estado da Bahia e Edições SECNEB.p.18-27.
[4] SODRÉ,Muniz.Santugri.Rio de Janeiro:José Olympio,1988.p.15
[5] SODRÉ, Muniz.A Máquina de Narciso.Petrópolis:Vozes,1984, p.17
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