Muniz
Sodré de Araújo Cabral, 77 anos, tomou posse no dia 31 de outubro, na Academia de Letras da
Bahia, sucedendo na cadeira 33, Maria Stella de Azevedo Santos, a Mãe Stella de
Oxóssi.
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Boa noite!
Senhores
acadêmicos, eminentes e agora também iminentes confrades...
Eu
gostaria de inicialmente certificá-los de que recebo com ambas as mãos a
generosa honraria de me franquearem, pelo caminho da Cadeira 33, a iniciação à
Academia de Letras da Bahia. Esta é,
para mim, uma cerimônia iniciática, uma folha de fundamento no chão da
casa. Por isso, ao reiterar minha
alegria, eu peço agô, como se diz na comunidade litúrgica da Bahia: peço
licença para saudar vivos e mortos. Vivos, os meus próximos confrades, amigos,
familiares, eventuais autoridades presentes.
Mortos, todos os ancestrais, fundadores ou não deste grupo em que agora
me insiro.
Esta dupla linha de saudação é ao mesmo
tempo imperativa e prazerosa. Imperativa, porque estou absolutamente convicto
de que o tempo da ancestralidade, quero dizer, o tempo em que se inscreve o
destino, em que se enlaçam origem e fim,
é sempre o mesmo da vigência ética do discurso de fundação de qualquer grupo
humano.
Esse tempo originário, posto de lado pela consciência
da acumulação e pela lógica dos preços, contrapõe-se de forma excelsa ao tempo
veloz e mutável da História. Mas oportunamente se impõe, apesar do paradoxo
aparente, como uma radical exigência de ética feita pela própria História,
diante da falência das promessas do capital e do fim das esperanças políticas.
De fato, meus prezados confrades, a
ancestralidade –– a folha no chão –– vem nos ensinar que ética não se resume à
codificação de regras de conduta nem a um ajustamento moral, decidido por
tribunais de meia sola, por falsos monopólios da virtude. O que hoje se vem chamando de crise moral ou
crise da ética não é a mera violação de valores e regras instituídos (a
corrupção, a violência institucional, a mutação nos costumes), mas é o obscurecimento
do destino comum, esse destino a que se revelam cegas as elites econômicas,
políticas, burocráticas e tecnológicas. Por ética, eu me refiro a um apelo
radical à dignidade do ato de habitar e de conviver, portanto, a
tudo que implique um destino
comum prefigurado pela razão fundadora da comunidade.
Dignidade, por quê?
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Na sua Metafísica dos Costumes, Kant nos
diz que “no reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. O que tem um
preço pode ser substituído por qualquer outra
coisa, a título de equivalente; ao contrário, o que é superior a todo
preço e em conseqüência não admite equivalente, é o que tem uma dignidade”.
Ou seja, a dignidade é a única condição
capaz de fazer com que uma coisa tenha um fim em si mesmo, portanto, um fim
intrínseco e não relativo. A dignidade entendida como “valor interior
absoluto”, gerador de respeito do si mesmo, é o farol da ética. Não é
espiritualmente transcendente, é imanente ao agir do homem.
Imanência, portanto. A ética não implica
realmente nenhuma transcendência em matéria de valores e normas, não é coisa do
outro mundo, e sim uma imanência dinâmica comum a toda habitação humana num
espaço determinado, ou seja, ao que corresponde a exigências radicais da
própria vida.
Isso assim se explica: “A vida não se esgota
com o que se manifesta no ser vivo. O homem é um ser vivo, mas o que o
constitui como vivo está aquém ou além de tudo que perfaz a sua condição de
sujeito, seja da consciência ou do inconsciente. Dito com outras palavras: Todo
sujeito se sustenta pelo não nascido, pelo não constituído, pelo não existente
em tudo que perfaz seu nascimento, sua constituição, sua existência” (Emmanuel
Carneiro Leão). A ética é precisamente o
movimento de escuta coletiva dessa dinâmica abrangente, maior do que os limites
da subjetividade instituída, mas imanente a todo e qualquer modo de existir.
Ética é a repercussão tácita do desejo ancestral de continuidade do grupo
humano instituído. É, se quiserem, o discurso do morto sobre a imortalidade.
A atitude ética permite o trânsito de ida
e volta entre indivíduo e grupo, mas também entre grupos sociais diferenciados.
“O grande no homem – diz Nietzsche no Zaratustra – é ser uma transição e uma
passagem”. A ética pode ser compreendida como a linguagem íntegra desse
trânsito que às vezes não pretende chegar a lugar nenhum, tão-só fruir da
caminhada, da alegria da passagem.
Pela economia, nós buscamos a posse dos
meios materiais de conservação da vida. Pela política, visamos à agregação civil
de seres humanos num território. Pela ética, –– portanto, pelo apelo a valores
ancestrais –– aspiramos à clareza e à luminosidade.
À luz do senso comum, ancestral é o grande
homem do passado que, numa comunidade ou numa nação, mantém acesa a lanterna
ética, isto é, o farol de continuidade do grupo. Por compatível, eu me valho de
uma passagem de Euclides da Cunha: “O que apelidamos grande homem é sempre
alguém que tem a ventura de transfigurar a fraqueza individual, compondo-a com
as forças infinitas da humanidade”.
É quando se vislumbra a luminosidade a que
nos referimos: “Não dura a vida do homem, e é eterna. É como a luz
perpetuamente moça”.
Que ancestrais buscar nesta comunidade de
phylia intelectual denominada Academia de Letras da Bahia?
Não à toa recorri ao grande e
multifacetado escritor modernista brasileiro, mais precisamente à sua
conferência em dois de dezembro de 1907 (no Centro Acadêmico Onze de Agosto,
São Paulo) sobre aquele por ele classificado como “insigne e extraordinário
condoreiro”. Euclides foi taxativo: “Não sei de quem, como ele, entre nós,
naquele tempo, tanto se identificasse com o sentimento coletivo, revivente,
estimulando-o e aformoseando-o”.
Estamos, assim, falando do representante
notável da terceira geração romântica no Brasil, Antonio Frederico de Castro
Alves, o Poeta dos Escravos, patrono desta Cadeira 33. É sinérgica, senão
mística, a afinidade entre o patronato e a Cadeira. Há por certo o
supersensível do número, mas a cadeira, mais do que base, do que arrimo, do que
pedestal é mesmo um lugar, no sentido topológico do termo, de intersecção de
energias singulares em torno da condição do negro no Brasil.
É verdade que o Romantismo brasileiro,
desde a primeira geração, é atravessado por certa religiosidade, presente na
idealização do sobredivino, do taumaturgo, do imperecível. Euclides, porém,
atém-se à atribuição de misticismo a Castro Alves, não por profissão de fé, mas
sim pelo inexplicável de ele não ter tido precursores próximos em seu ideário
político-social. Este pareceria, antes, originar-se das conquistas éticas da
humanidade, simplesmente silenciadas em sua geração. Na energia criativa do
poeta, o “eu’ lírico-amoroso é indissociável do realismo com que ele
diagnostica a barbárie histórica, a escravatura, fonte de sua revolta e de sua
indignação. Ele foi o presidente, no Recife, de uma das primeiras sociedades
abolicionistas do Brasil.
Sabemos o quanto essa associação entre o
lirismo e o realismo, entre a criação literária e a causa político-social, é
capaz de alvoroçar a pedantaria crítica. Mas já Euclides nos adverte: “A
restrição da sua figura literária corresponde ao seu alargamento na História”.
A advertência levanta uma questão que interessa de perto aos exegetas da poesia,
aos organizadores dos manuais e das coletâneas que são dados a ler aos jovens
em formação por críticos literários e por mestres-escolas.
A questão: como lidar com o binômio
ideia poética/ideia política?
A História moderna registra duas maneiras.
Uma é a concepção nazista da política,
entendida como estética geral. Isto está resumido na frase célebre de Goebbels:
“A política é a arte plástica do Estado”. A concepção nazista pretende figurar
as massas como um instrumento do destino. A massa, em si mesma, seria um fato
estético.
Outra é a concepção revolucionária sobre
o papel dos artistas. Neste caso, a estética aparece como ação política, isto
é, a estética se realiza como finalidade na política. A concepção
revolucionária pretende atribuir às massas um destino centrado na renovação da
consciência, ou seja, na produção de um novo homem.
Um grande exemplo disso é dado por
Maiakovski, um dos maiores poetas russos do século passado. Também ator, dramaturgo, militante
político, ele se dispôs a serviço da
propaganda revolucionária, sem reduzir a criação poética a fórmulas
estereotipadas. Era chamado “O Poeta da Revolução”, mas poderíamos chamá-lo de
“poeta do coração”, pois coração é metáfora que atravessa muitos de seus
versos. Assim, “comigo a anatomia ficou louca/sou todo coração/em todas as
partes, pulsa”.
Castro Alves, o Poeta dos Escravos,
prefigura Maiakovski, no fato de que ambos instalam a ética no âmago da poesia,
pois aspiram à dignidade de um novo homem, lastreados numa idealizada
humanidade ancestral. É a tradição que funda a revolução. É o vigor humano do “antes”, do
fundacional, que sustenta o desejo
revolucionário. É esse passado que, misticamente, faz deles poetas do amanhã.
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Isso nos faz recordar que a poetisa
norte-americana Emily Dickson fala em verso de “um lugar chamado amanhã”. É uma
formulação intrigante, porque o amanhã é da ordem do tempo, e ela aí converte o
tempo ao espaço. Um lugar chamado amanhã... Emily Dickson nos convida a
visitá-lo imaginariamente e nos faz ver que já sabemos alguma coisa desse lugar
enquanto possibilidade interna de outra instalação temporal, uma chamada ao
presente do futuro que, já aí, na luz ou na sombra, parece aguardar a
emergência dos fatores de sua realização. Esse amanhã não é tempo que
remotamente virá, mas tempo que vem, disposto que está pela ancestralidade à nossa
consciência como uma direção já atribuída ou determinada.
Prezados confrades, eu gostaria de crer
esse tenha sido o auspício bem augurado por
Francisco Xavier Ferreira Marques ao inaugurar a Cadeira 33. Já no
último ano da década de 90, eu me permitia assinalar no ensaio intitulado “Claros e Escuros” que, logo
depois de “O bom crioulo” (1895), do cearense Adolfo Caminha (o primeiro
romance a reconhecer e valorizar a pessoa do negro), o baiano Xavier Marques
publica “O Feiticeiro” (1922), um romance
também naturalista, em que deixa
transparecer a atmosfera litúrgica dos terreiros baianos. São etnograficamente
aceitáveis as suas descrições, aparentemente obtidas da própria experiência do
autor com o culto nagô.
O enredo de “O Feiticeiro” equilibra
paixões amorosas e políticas com a ação do pai de santo Elesbão, príncipe
africano escravizado, áugure que usa o feitiço para conduzir os destinos dos
personagens. Aos consulentes, lia a sorte nos búzios, advertia dos perigos,
prometia os favores dos deuses e chega mesmo a assegurar a um jovem político
que “Ogum ia declarar guerra aos inimigos de D. Pedro”.
Interessante nesse romance é que, numa
época de preconceito feroz contra tudo que dissesse respeito a negros, os
personagens tratam ora com temor, ora com reverência, a liturgia
afro-brasileira. “Os negros do candomblé? Afirmo. Se há entre eles meliantes e
histriões, não são em maior número do que os do nosso credo. O prestígio de um
feiticeiro africano aos olhos dos filhos do terreiro não fica atrás do de um
prelado de qualquer igreja a quem as damas civilizadas veneram”. Além disso, o
texto inteiro contém referências respeitosas a árvores sagradas, oferendas
propiciatórias e conseqüências dos feitiços.
Por menos conhecido que seja o romance de
Xavier Marques (a consagração lhe veio com a novela “Jana e Joel”), não se pode
deixar de registrar que essa mesma liturgia sedutora e seus desdobramentos
lúdicos, culinários, medicinais e éticos correspondiam ao patamar posteriormente transvalorado pela narrativa
literária de Jorge Amado.
Prezados confrades, admitindo-se a hipótese
de que um fio vital costure ou perpasse a Cadeira 33, não sei se terá sido mera coincidência o fato de que, no mesmo ano em que Xavier Marques
publicava “O Feiticeiro” (1922), formava-se, pela Faculdade de Medicina da
Bahia, Heitor Praguer Fróes, o segundo ocupante da Cadeira.
Medicina e Letras, como se articulam?
Neste caso, a resposta pode ser
inicialmente dada por uma notícia do importante jornal Washington Post, em sua
edição de 23 de julho de 1943, a propósito da visita do médico baiano à capital
norte-americana: “Ser proficiente em dois assuntos tão amplamente distintos
como a medicina e a literatura é incomum, para dizer o mínimo. Mas o doutor
Heitor Praguer Fróes, da Bahia, Brasil, parece ter dominado os dois ramos do
saber com igual sucesso”.
Neste ponto, parecem-me esclarecedores
alguns dados biográficos: Poucos anos depois de formado, mais precisamente
entre 1925 –– período em que a medicina
e a ciência alemãs eram influentes nos círculos médicos científicos brasileiros
– Praguer Fróes freqüentou o Instituto
Tropical de Hamburgo, diplomando-se em patologia tropical e parasitologia
médica. De volta ao Brasil, assumiu a cátedra de Clínica de Doenças Infecciosas
da Faculdade de Medicina da Bahia. Em novembro de 1945, foi nomeado secretário
de Educação da Bahia pelo governador João Vicente Bulcão Viana.
Mas então já era um cientista de prestígio,
considerado como autoridade no campo da saúde pública. Além disso, era presidente da Associação
Cultural Brasil-Estados Unidos, razão de um convite, por parte da Divisão de
Relações Culturais do Departamento de Estado, para uma viagem de intercâmbio
cultural entre julho e outubro de 1943, no contexto da política de boa
vizinhança. Viajou por 30 cidades norte-americanas, conheceu as principais
universidades e instituições médicas do país e proferiu 24 conferências sobre
assuntos médicos e sanitários, além de outras oito sobre literatura e temas
gerais.
Suas palestras sobre febre amarela e
malária repercutiram nas instituições médicas norte-americanas encarregadas de
cursos sobre doenças tropicais e epidemiologia. Em New Bedford, o Standard
Times, inclusive, saudou-o em editorial: “Hoje New Bedford tem um visitante,
que merece as mais sinceras saudações da cidade. Trata-se do Dr. Heitor P.
Fróes, do Brasil, um cientista especializado em doenças tropicais (...) Dr.
Fróes merece as mais calorosas boas-vindas de New Bedford por duas boas razões.
Como cientista, ele tem trabalhado para vencer as doenças tropicais que são
pouco conhecidas em nosso país (...) Como autor e palestrante, ele tem
compartilhado os frutos de sua pesquisa com cientistas norte-americanos
(...) Quando um homem de tal eminência
dedica seu tempo e as suas habilidades ao estudo dos seus vizinhos, nós podemos
ter certeza de que a causa da política da boa vizinhança do estabelecimento de
melhores relações mundiais está avançando”.
Ademais de sua produção ficcional
(contos, fábulas) e científica (“Lições de medicina tropical”), Praguer Fróes
foi principalmente um militante do pensamento erradicacionista, voltado para a
extinção dos focos de doenças tropicais. Nisso, foi moderno, eu diria mesmo,
pós-moderno, no sentido de associar saúde a desenvolvimento econômico-social.
Economistas de renome internacional como Gunnar Myrdall e Celso Furtado
alinham-se a esta práxis. A sua atualidade comprova-se em sua participação
ativa nas articulações para a campanha de erradicação do mosquito Aedes Egypti
nas Américas.
Basta olhar, prezados confrades, para o
panorama devastado dos espaços urbanos de hoje por endemias de febre amarela,
dengue, zyka, chikungunya e não se sabe quantas mais doenças epidêmicas
negligenciadas, para se ter uma ideia, ainda que diminuta, da relevância de
cientistas como Praguer Fróes. A sua ação sanitarista teve, tem e terá
importância transnacional. Passado, presente e futuro enfeixados num gesto, eis
a marca da temporalidade ancestral, a pregnância do saber imbuído de vigor
ético.
Mas essa é também a temporalidade da
memória transindividual ou coletiva. Por isso, eu vou ousar inserir nessa categoria, ou melhor, nessa
gaveta classificatória, dois dos sucessores de Praguer Fróes na Cadeira 33:
Waldemar Magalhães Mattos e Ubiratan Castro de Araujo.
“Memória” não designa aqui nenhuma função
psicológica, seja coletiva ou individual, mas a criação, pela narratividade
presente, de um passado ou uma ancestralidade politicamente afirmativa. Considerada do ponto de vista da inserção dos
indivíduos num agrupamento complexo, a narração ao mesmo tempo constrói e faz
parte da forma de vida sociologicamente identificada com a forma social.
Forma social é a maneira singular e
sensível de ver a sociedade. Não é uma
essência, nem uma substância, nem mero efeito de uma invenção, mas “realidades
mediadoras que têm a ver tanto conosco quanto com o que não somos. Elas exprimem
uma relação e desempenham ainda nesta perspectiva o papel mediador que lhes foi
reconhecido. Não têm apenas um estatuto intermediário entre o concreto e o
abstrato, o sensível e o inteligível, o individual e o universal, são também
intermediárias entre os dois pólos da relação existencial” (Raymond Ledrut).
O conceito de forma social parece-nos
aqui operativo, porque pressupõe tanto “forma de vida” como “maneira” enquanto
figurações da lógica da existência que identificamos nos dois “prosadores da
memória”, em Waldemar Magalhães Mattos e Ubiratan Castro de Araujo. A forma
deixa transparecer uma modalidade individual e coletiva da existência humana,
sem separar radicalmente a ação da representação ou da consciência. Pela forma
social, reconhecemos a objetividade da vida em sociedade sem desconsiderar o
vivido (subjetivo) dos indivíduos.
Por meio do relato, seja historiográfico ou
memorialístico –– como faz Waldemar Mattos em “Panorama Econômico da Bahia”,
“Palácio da Associação Comercial” e em “A Bahia de Castro Alves” ––, seja
historiográfico –– como faz Ubiratan
Araujo em “A Guerra da Bahia” ou literário em “Sete histórias de negros”
–– a forma social baiana é apreendida de tal modo que a sua
interpretação epocal pode constituir-se em processo de criação de realidade
social e assim ser transmitida para as novas gerações. A narrativa garante a
memória coletiva como forma de vida, isto é, como manifestação de uma
historicidade particular.
A noção de historicidade, referida a
monumentos e documentos, equivale para o
filósofo Paul Ricoeur à de
temporalidade: “A fonte de autoridade do documento enquanto instrumento desta
memória (a memória coletiva) é a significância reconhecida ao traço. Só se pode
dizer que os arquivos são instituídos e os documentos recolhidos e conservados
a partir do pressuposto segundo o qual o passado deixou um traço, constituído
graças a monumentos e documentos como testemunha do passado”. O traço aparece,
nesse viés, como “signo presente de um passado ausente”, isto é, como um
registro com estatuto ontológico dúplice, porque referido a tempos
heterogêneos. Num primeiro nível, o traço é algo físico que vem do passado. Num
segundo, a existência desse “algo” depende do reconhecimento de alguém, a
exemplo de um grupo intelectual que afirme a sua continuidade histórica, como
estamos fazendo aqui e agora.
Traço significa presença da
ancestralidade e ausência do presente na
contínua passagem do passado para o futuro. Não é um conceito historiográfico,
mas fenomenológico, no sentido de que suspende, por meio do tempo passado, a
referência presente, abrindo espaço para outra referência, criadora de um signo da mudança, objeto do
tempo histórico. O traço é, assim, um conector histórico, uma espécie de fio
intergeracional que preserva os valores éticos de um passado pronto a ser
narrado. Por isso, gostaria de assinalar a passagem de Waldemar Mattos e
Ubiratan Araujo pela Cadeira 33 como
“prosadores de traços da memória”.
Antes de discorrer sobre a ocupante número cinco da Cadeira, não posso
deixar de deter-me um pouco sobre o número três ( 33, desdobrado). É um número
de fundamento. Descrito pela filosofia hindu, o três “é uma onda, uma curva
senoidal, uma vibração à luz ou ao som. Quando duas ondas colidem, um novo
fenômeno é criado. Essa é a criatividade inerente da natureza. Mesmo no nível
mais sutil da vibração e das partículas subatômicas, a oscilação intrínseca da
natureza desencadeia um ciclo infinito de criação, destruição e recriação. Do
número três se originam muitos” (B.K.S. Iyengar).
Este é um número conhecido nessa mesma
profundidade pelo povo de santo, pelas comunidades litúrgicas afrobrasileiras,
porque é o mesmo do primogênito mítico, mas também do pai-ancestral, denominado
Exu.
Não tenho dúvida de que o número três
abriu o caminho para que o número cinco, afim à divindade Oxóssi, cultuada
por Mãe Stella de Oxóssi, ajudasse em
sua instalação na Cadeira 33 como quinta ocupante. Uma biografia simbolicamente
exemplar: Maria Stella de Azevedo Santos nasceu no quinto mês de 1925, na
cidade de Salvador e formou-se em Enfermagem pela Escola de Saúde Pública da
Bahia, em 1945. Ficou 41 anos à frente
do Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, uma das três casas matriciais dos cultos
afrobrasileiros.
O que haveria de muito auspicioso, no
reconhecimento ético-político que se presta a uma zeladora de orixás como Mãe
Stella de Oxóssi?
É que existe um forte sentido
ético-político nos modos de persistência dos cultos, ao combinarem a força
interna de sua liturgia com as alianças simbólicas implícitas entre eles e
determinados segmentos da sociedade global. O desafio de toda ética é recusar
as abstrações universalistas em favor de uma determinação concreta do sujeito.
Para o indivíduo da comunidade litúrgica, sempre se tratou de uma luta ética e
política (embora não político-partidária) para inscrever a singularidade
afro-brasileira no espaço da coexistência nacional.
Para os africanos e os descendentes de
africanos no Brasil, recém-saídos de uma Abolição que lhes negara qualquer
assistência econômica e social, que os deixara sem terras, para esses
aspirantes à cidadania, era imperioso um lugar que lhes garantisse ao menos a
soberania do espírito.
Era
uma preocupação que ia além da própria comunidade negra. Rui Barbosa, o grande
tribuno patrício, dizia que “a escravidão gera a escravidão, não só nos fatos
sociais como nos espíritos”. Joaquim Nabuco, seu confrade pernambucano, o
secundava: “Não basta acabar com a escravidão, é preciso acabar com a obra da
escravidão”
A experiência da cultura jeje-nagô-ketu
reflete exemplarmente a ancestralidade e a visão-de-mundo características da
civilização africana. Em torno da família-de-santo ou das comunidades
litúrgicas de origem africana, conhecidas como candomblés, criou-se um modelo
singular de organização social da gente negra. Fundou-se aqui, portanto, num
espaço privilegiado, destinado a se tornar uma metáfora espacial da África
mística, um egbé, uma comunidade litúrgica, um terreiro, onde habitariam as
divindades, os homens, as mulheres e seus frutos. Mas onde também,
implicitamente, se resistiria à violência da assimilação cultural que tentava
sempre exercer a consciência esclarecida pela monocultura européia. Portanto,
comunidade litúrgica e quilombo.
Na verdade, tudo sempre foi um empenho por
bom senso e por dignidade, como transparece em algumas das frases de Ana
Eugênia dos Santos, Mãe Aninha, fundadora do Axé Opô Afonjá, nas cartas que
escreveu às suas filhas-de-santo Agripina e Filhinha entre os anos de 35 e 37.
Uma dessas é especialmente marcante: “Depois de eu ter folha no chão, não vou
apanhar estrume com a mão”.
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Nada disso pode ser entendido pela pura
abordagem culturalista ou folclorista, e sim como um agir político grupal, de
natureza civilizatória. Há de fato um singular agir político na transmissão
patrimonial da liturgia negra. Nenhum patrimônio cultural socialmente operativo
se transmite como um pacote inerte, um estoque de ativos dados para sempre, mas
como algo que é preciso reinserir na História presente, atribuindo-lhe novos
contornos, revivificando-o.
Mãe Stella de Oxóssi foi um ponto alto e
intelectualizado na governança litúrgica. Em 1981 criou o Museu Ilê Ohun
Lailai, preservando a memória do culto africano. Em 1986 foi eleita na
Conferência Internacional de Tradição dos Orixás e Cultura, em New York,
representante do Brasil. Publicou livros marcantes como “Epé Laiyé- terra viva” (2009), “Owé –
Provérbios” (2007), “Òsósi – O Caçador de Alegrias” (2006), “Meu Tempo é Agora”
(1993), “E Dai Aconteceu o Encanto” (1988).
O Terreiro do Axé Opô Afonjá é África
reterritorializada, reinventada. Um exemplo notável dessa reinvenção é o Corpo
dos Obás ou Doze Ministros de Xangô,
inspirado na instituição palaciana de Oió, Nigéria. Divididos em duas falanges
–– seis da direita (Otun) e seis da esquerda (Osi), assim como o machado duplo
de Xangô ––, os obás têm assento ao lado da ialorixá, como ministros ao lado do
rei. Não é uma recriação aleatória: caberia ao obá, cabe de fato ainda hoje ao
obá, lutar por aquela “folha no chão” de que falava Mãe Aninha, isto é, lutar pela dignificação
da comunidade litúrgica.
Ao suceder Mãe Stella na Cadeira 33,
como sexto ocupante (seis é número do orixá Xangô), permito-me reiterar a
declaração de grande alegria existencial por integrar com o nome honorífico de
Obá Aressá, o Corpo dos Obás. Acho que
fui o primeiro obá a ser confirmado dentro da regência de Mãe Stella. Um obá,
digamos, “kekerê” (pequeno) quando penso em outros nomes, outras personalidades
( Obá Kankanfô, Miguel Santana, Camafeu de Oxossi, tantos outros...) irmanadas
nesse Corpo. Um obá de escasso saber iniciático, mas com fé e muita abertura
para o aprendizado com velhos e novos.
Mas eu que dormi por obrigação na
esteira ritual, perto da folha no chão, sigo agora na esteira acadêmica de Mãe
Stella de Oxóssi, estendida pela generosidade desta comunidade de Letras.
O que aqui me traz?
Eu peço licença para reiterar a
resposta à chamada que ensaiei anos atrás, ao ser distinguido com o título de
Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia, onde me graduei. Eu me
oriento intelectualmente pela pesquisa do sentido forte da cultura. Essa busca,
marcada por empenhos diversos, comporta
uma vicissitude que atravessa, em modalidades diversas, a minha vida acadêmica
e minhas próprias motivações existenciais.
O primeiro empenho refere-se à temática
da realidade da informação pública –– isso que se tem chamado de “mídia” sob o
influxo dos tempos neoliberais –– ,
evidenciado em minha atividade universitária, livros, artigos e conferências
tanto no Brasil como no exterior. É algo que me envolve desde os quinze anos de
idade quando comecei no “Jornal da Bahia” ao lado de jovens como Glauber Rocha,
João Ubaldo Ribeiro e Wilter Santiago, sob a tutela de jornalistas veteranos
como João Batista de Lima e Silva, Ariovaldo Matos, João Carlos Teixeira Gomes,
Flavio Costa, José Gorender, Otacilio Fonseca e outros, liderados pelo
empresário, ativista e escritor João Falcão. O jornal foi a minha primeira
universidade.
O segundo empenho diz respeito ao sentido
de cultura e ao vigor da diversidade cultural. Não se trata da diversidade
prolífica de “objetos” culturais (software, canções, filmes, livros etc.), que
se multiplicam na dita “sociedade da informação” e que concorrem para a
mitologia de um novo tipo de democracia, definida pelo acesso a esses objetos.
Eu me preocupo, antes, com “sujeitos de cultura”. De fato, concebo outro sentido para a
cultura, um sentido pleno ou forte, em que a cultura se investe de outra
economia, cujos bens não circulem prioritariamente no mercado, e sim num
“tecido intersticial que separa e religa os sujeitos”. Cultura, como essa
capacidade que tem o sujeito de inscrever no tempo a sua relação imaginária com
todos os outros sujeitos por meio de operações simbólicas.
O sujeito da cultura seria, assim, um
sujeito da memória (a memória de sua inserção específica no mundo) e um sujeito
da promessa, no sentido de sua fidelidade ou sua vinculação a um mundo em
comum. Seria, portanto, um sujeito político, no melhor sentido que esta palavra
possa ter. Sujeitos da cultura, individuais ou coletivos, claros ou escuros,
são aqueles que no passado e ainda hoje imprimem a marca da transformação nas
relações sociais brasileiras.
Trata-se de uma perspectiva que concebe o
presente de uma cultura como o vir-a-ser humano na criação de um sentido
continuamente refeito entre o passado e o futuro, e não como mero
“presenteísmo” implicado na hipertrofia consumista do instante. Não concebo cultura como opressão do iletrado,
nem escrita como chicote da oralidade, nem pensamento como xadrez do espírito jogado por esnobes.
O que me atrai é a visceralidade
comunitária, onde a vida em si mesma, em seu todo, é feita de solidariedade e fé. É isto o que me faz não
abrir mão do discernimento crítico. É isto que, ao mesmo tempo, me faz buscar
na cultura negro-brasileira um sentido para o estar-no-mundo de amplas frações
da população nacional, sempre atento aos interstícios, às fendas e às dobras no
tecido do discurso social hegemônico.
Meu trabalho versa principalmente sobre aspectos problemáticos das
identificações nacionais.
Pessoalmente, quero crer ter sido fortemente marcado pela
experiência de associar liturgia à habitação da cidade de Salvador. Algo assim
como o Quasímodo de “Notre-Dame de Paris”, para quem, na narrativa de Victor
Hugo, a catedral tinha sido “o ovo, a casa, o ninho, a pátria, o universo”. Em
imagens mais intensas: “Poder-se-ia quase dizer que ele havia tomado a sua
forma como o caracol toma a forma de sua concha. Ela era sua morada, sua toca,
seu invólucro... Ele estava, por assim dizer, colado a ela, como a tartaruga à
sua casca. A rugosa catedral era sua carapaça”.
Ser é originariamente morar. Salvador é uma
cidade-ninho, onde desfruto a intimidade
de uma velha casa. Uma cidade que se
oferece como uma toca, como uma
roupagem, de gala para uns, em farrapos para outros, mas sempre uma vestidura,
ainda quando se experimenta o
desconforto da morada. De fato, as cidades podem ter algo que chamamos de “espírito”: espírito é o invisível atuante na
cidade. É o seu potencial ético, que nos permite ver o invisível nas coisas
visíveis, isto é, que se escute a voz da fundação, do Pai Morto, do Egun da
Cidade. É uma voz que educa. Aqui, como o Riobaldo de “Grande sertão, veredas”,
“eu me inventei no gosto de especular ideias”. Para isso, tenho procurado
seguir o preceito do Terreiro: “Quem joga água no caminho anda em areia macia”.
Prezados confrades, de pé na trilha das
Iyás ou sentado na Cadeira 33, eu
espero zelar aqui também pela folha no chão.
Muito obrigado!