terça-feira, 2 de julho de 2013

EDUCAÇÃO E PLURICULTURA NACIONAL



Mãe Aninha, Iyalorixá Obá Biyí que devido a pujança das religiões de matriz africana,classsificou a Bahia de “A Roma Negra”



Por Marco Aurélio Luz


Um dos problemas mais graves enfrentados pelos chamados países do Terceiro Mundo e ex-colonizados diz respeito ao sistema de ensino.
O sistema de ensino que foi implantado e desenvolvido nesses países em geral é uma herança do colonialismo e, como tal, se constitui num aparelho ideológico do Estado, voltado para reproduzir e divulgar os valores evolucionistas, etnocêntricos ou eurocêntricos, assim como para atender às necessidades técnicas de uma economia atrelada ao mercado de trocas comerciais neocoloniais.
Nesse sentido, o sistema de ensino se constitui num mecanismo de tentativa de desculturação e, portanto de despersonalização dos habitantes desses países, caracterizando-se como sério obstáculo para uma verdadeira identidade e profunda independência nacional.
Outro aspecto importante a destacar é que esses países se constituíram, de modo geral, a partir e em função dos interesses das metrópoles europeias em dividir entre si as áreas territoriais de exploração das riquezas e da força de trabalho na forma específica do modo de produção colonial mercantil e escravagista. Assim sendo, muitos países ex-colonizados ainda lutam para constituir sua nacionalidade, tentando harmonizar as diferenças dos seus diversos povos com seus respectivos valores culturais.
Nestes casos enquadra-se o Brasil. Seu território foi formado a partir dos interesses colonialistas de divisão de áreas de exploração concretizados inicialmente com o Tratado de Tordesilhas.
O seu povo se constitui de populações originárias basicamente de três continentes: América, África, e Europa, que dão continuidade e expandem seus processos civilizatórios característicos. Portanto a nação brasileira se constitui e se caracteriza pela pluralidade étnica e cultural.
As tentativas colonialistas de desculturação, aculturação e catequese através da história, apesar de todo reforço repressivo e mesmo genocida do sistema oficial fracassaram. A nacionalidade brasileira se caracteriza pela diversidade e pela pluralidade cultural do seu povo.




Ilê Axé Opô Afonjá, fundado em 1910 por Mãe Aninha, Iyalorixá Oba Biyí
Foto de Jackeline A. Divino

No Brasil, todavia, assim como em muitos outros países do chamado Terceiro Mundo, persiste uma grande distância e mesmo uma grande defasagem entre o Estado e as formas de organização socioculturais e econômicas da grande maioria da população.
O Estado oficial brasileiro nasce da Proclamação da Independência por D. Pedro I, “antes que algum aventureiro lançasse mão”, isto é, para que o Brasil, mesmo independente, pudesse continuar restrito ao âmbito das políticas socioculturais e econômicas neocoloniais.
Em verdade, passada a época da influência hegemônica portuguesa nas relações internacionais do Brasil, pouco houve de mudanças no que diz respeito às características do Estado, que continuou preso às influências neocolonialistas.
Assim, o país se caracteriza, de um lado, por uma sociedade oficial assentada no desejo de predominância dos valores civilizatórios europeus e, por outro, de uma sociedade não reconhecida e não legitimada oficialmente, assentada nos valores civilizatórios de origem negro-africana e ameríndia. No que se refere, então, à política educacional e cultural do Estado, o que vemos é a hegemonia quase absoluta dos valores europeus.
Uma das consequências mais graves dessa hegemonia é o índice altíssimo de evasão escolar, ainda no primeiro grau, principalmente nas regiões Norte e Nordeste.
Esse quadro caracteriza um sintoma dos obstáculos existentes para o aperfeiçoamento dos mecanismos de mobilidade socioeconômica e fundamentalmente de uma verdadeira integração nacional.


DIFERENTES FORMAS DE TRANSMISSÃO DO SABER


Enquanto, na cultura europeia, a transmissão do saber se dá através da mediação do texto, isto é, da forma de comunicação escrita, nas culturas negra e ameríndia a transmissão se dá deforma direta, dinâmica, pessoal e ou intergrupal.




Comunidade do Ilê Axé Opô Afonjá 
Foto de Kabá 


Se, nessas culturas, que denominamos de culturas da participação, o tempo de transmissão se caracteriza pela comunicação ligada a uma experiência vivida, aqui e agora, e que culmina nas situações rituais que marcam o fortalecimento da identidade e o lugar e a função do indivíduo na sociedade, no ensino oficial o tempo está demarcado pelo ano letivo, ela impessoalidade das relações do ensino de massa e pela passagem de série através dos exames que têm como referência básica o desenvolvimento do aluno no âmbito da comunicação escrita.
Enquanto nas culturas da participação as relações de transmissão do saber atualizam as hierarquias sociais que situam os poderes e deveres dos mais velhos em relação aos meios novos e vice-versa, no ensino oficial o que se legitima apenas é o meio de comunicação, a escrita, que cristaliza o poder da Razão de Estado.
O exercício da legitimação desse poder culmina na universidade, onde as bibliografias, as citações, principalmente de autores europeus, dão legitimação a “verdades” e resultam em poderes institucionais aos que escrevem dessa forma artigos e teses. Portanto, o que é legitimado, na verdade, é o próprio poder impessoal do Estado através da escrita.
No que se refere à cultura negra, que é predominante na maioria do povo brasileiro, ela se caracteriza por constituir sua visão de mundo através de uma complexa e riquíssima simbologia.




Pinturas das crianças da Mini Comunidade Obá Biyí. Derivadas das composições de arraias. A predominância de triângulos deriva da simbologia de expansão de famílias, o casal e o terceiro nascido em movimento de sucessivas expansões. 

 Foto de M A. Luz

Essa simbologia se apresenta principalmente no âmbito das instituições religiosas posto que no sistema cultural negro a religião se caracteriza como núcleo central e irradiador de valores civilizatórios.
A linguagem das instituições religiosas constitui-se numa arte sacra negra, que combina, de forma própria, dramatização, dança, música, poemas, código de cores, emblemas, esculturas, vestuário, parafernália que contribui para magnificar o sagrado.
Essa linguagem, que comunica o saber da visão de mundo negra, em muito se diferencia dos elementos de comunicação que caracterizam a transmissão do saber no sistema de ensino oficial.
Nesse sistema, sobressai a nudez da sala de aula com suas carteiras, o quadro de giz, aparelhagem eletrônica, onde a palavra escrita e “oralizada” é o único elemento simbólico que participa da comunicação.
O professor, individualmente, legitima o poder do Estado e caracteriza-se em geral por ser mero tradutor ou transmissor dos conteúdos dos livros adotados, enfim um mediador da palavra impressa.

DIFERENÇA DOS CONTEÚDOS

Evidentemente que há muita diferença entre os conteúdos que formam a visão de mundo negra e a projeção ideológica neocolonialista da escola oficial, caracterizada especificamente pelo recalcamento da presença dos processos civilizatórios constituintes da Nação, elegendo como universal o processo civilizatório europeu.




Desenho das crianças da Mini-comunidade Obá Biyí, referente a história da Criação do Mundo.
Foto de M.A. Luz

Assim é que nos materiais didáticos utilizados não há possibilidade alguma de identificação para a grande maioria das crianças brasileiras. Há uma grande defasagem entre sua realidade nacional, representada como se o país fosse uma nação caracteristicamente europeia, com o predomínio absoluto dos valores estéticos, éticos e científicos do Ocidente. Essa representação, contudo, está em mora com os fatos.





Desenho das crianças da Minicomunidade Oba Biyí.

 Baba Egun, ancestral masculino.
Foto de M.A. Luz

Na realidade, ela é a grande responsável pela evasão escolar, pois a criança não se vê contemplada nesse contexto, nem a sua família, sua religião, sua comunidade, nem sua sociedade.
Para manter, então sua integridade psicossocial, a criança, sentindo-se rejeitada, evade-se e prefere perder algumas possibilidades de mobilidade social individual, a submeter-se a padrões culturais exógenos ao seu próprio contexto.
Há, todavia uma pequena minoria que resolve enfrentar essas condições; tornam-se, porém, almas no exílio, acabando por se afastarem da própria família e da comunidade a que pertenciam e carregam consigo a sequela dos complexos advindos de uma identidade fracionada.


SUPERAÇÃO DOS OBSTÁCULOS ETNOCÊNTRICOS NA EDUCAÇÃO


Dentre as tentativas existentes para superar a gravidade da situação enfrentada pela educação no Brasil, no que se refere à pluralidade cultural, sobressai a experiência piloto e pioneira, da Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil, em convênio com o Ilê Axé Opô Afonjá e a Prefeitura de Salvador.
 A experiência denominada Mini Comunidade Obá Biyí visa harmonizar o fortalecimento da identidade cultural comunitária aos interesses e necessidades de mobilidade econômica e social e de conquista de maiores espaços na sociedade oficial. Em funcionamento desde abril de 1978, o projeto vem alcançando resultados altamente satisfatórios, em que pesem as dificuldades de recursos para sua manutenção.




Crianças com professora,Educação Infantil
Foto de A. Ikissima

O projeto que assiste a cerca de 130 crianças e jovens, desde o maternal à alfabetização e desenvolvimento integrado, atendendo até a idade limite de quatorze anos, caracteriza-se por implantar e desenvolver um currículo pluricultural, baseado nos valores culturais comunitários da tradição dos orixás, constituindo uma nova linguagem pedagógica.
A coordenação do projeto foi constituída pelo GTE, Grupo de Trabalho em Educação da Secneb, Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil.







Encenação do auto coreográfico Odé e os Orixá do Mato de Mestre Didi
Fotos de M. A. Luz

Em linhas gerais, essa nova pedagogia se caracteriza pela escolha de um tema semestral relacionado com o calendário cultural e religioso da comunidade. Embora o projeto não esteja comprometido com nenhuma orientação religiosa, são do universo simbólico específico da comunidade, de seus valores culturais, que são extraídos os diversos temas.
Os temas se constituem de referências aos princípios que regem o universo conforme a visão de mundo da comunidade. De acordo com esses princípios é selecionado um conto de Mestre Didi que integra o patrimônio cultural e adaptado pelo GTE em indicações didáticas e em auto coreográfico, constituindo-se no núcleo irradiador das atividades criativas e pedagógicas.
Reunido com os funcionários e professores, o grupo de trabalho coordena e acompanha as ações que visam estabelecer a programação semestral. A partir do tema e do conto escolhidos, os integrantes do projeto deverão adaptar os conhecimentos e informações do currículo oficial. No que concerne à forma de comunicação, deverão procurar aproximar-se da pedagogia comunitária, que não se baseia na mediação do texto escrito.
É aí que a montagem do auto coreográfico ganha em significado pedagógico, posto que se baseia nas formas dramáticas e simbólicas comunitárias. A montagem atinge a característica de aprendizagem da comunidade, na qual a relação vivido- concebido se dá aqui e agora; aprende-se vivendo a experiência da montagem.




Encenação do conto O Presente de Xangô à Boa Menina de Mestre Didi
Foto de A. Ikissima

Assim, a leitura dos textos, desenhos, colagens, esculturas, feitura de figurinos e cenários, compreendendo processos de tintura de tecidos, confecção de roupas, fabricação de instrumentos, aprendizagem de cantigas, danças e músicas polirrítmicas, constituem um processo nuclear das atividades curriculares e só possível com a participação imprescindível de Mestre Didi.





Exposição de trabalhos das crianças no Festival de Arte Integrada Mini comunidade Obá Biyí.
Foto de M. A. Luz

Essas atividades culminam, no encerramento de cada semestre, com o Festival de Arte Integrada Mini comunidade Oba Biyí, quando são convidados os pais, parentes e integrantes da comunidade e do bairro adjacente para compartilharem dos resultados alcançados.






Encenação do auto coreográfico A Chuva Dos Poderes de Mestre Didi
Fotos de M.A. Luz

De modo bastante sumário, é este o âmago da proposta de um projeto que já pode oferecer os seguintes resultados, divulgados pelo GTE, no Evento Secneb 83:
A Mini comunidade Oba Biyí concorre efetivamente para um desenvolvimento harmônico da criança, ao incentivar uma percepção valorizada de seu próprio mundo cultural, que lhe permite colocar-se melhor na escola oficial e na sociedade que a cerca.
 Entre as crianças que frequentam ou frequentaram a mini comunidade, houve sensível diminuição do índice de evasão escolar e melhor aproveitamento da escola pública, tendo alguns jovens ultrapassado à barreira das primeiras séries, cursando agora o segundo grau.
Os jovens maiores de quatorze anos, desejando continuar integrados ao projeto, formaram um Grupo de Jovens da Obá Biyí e já realizaram curso de artes cênicas, com adaptação e montagem da peça “A Vendedora de Acaçá”, do conto de Mestre Didi (Deoscoredes M. dos Santos), curso de projeção de cinema, cine clube com sessões semanais, curso de fotografia com exposições etc. Alguns desses jovens começam a atuar como monitores na Mini comunidade Obá Biyí.




Grupo de Jovens da Obá Biyí
Foto de A. Jorge M. Dos Santos

Através dos trabalhos de pintura, colagem, escultura, dramatização, dança música, visitas a museus, acesso a peças de teatro etc., as crianças vêm percebendo novas oportunidades e desenvolvendo, com maior amplitude, suas possibilidades e interesses.


Observações:

Este texto integra o livro IDENTIDADE NEGRA E EDUCAÇÃO, organizado por Marco Aurélio Luz e faz parte da coleção Cadernos de Educação Política do saudoso e memorável professor José Arapiraca. O livro publicado em 1989, Ianamá, reúne trabalhos de Sandra Maria Bispo, Ilê Aiyê, Narcimária Correia do Patrocínio Luz, Ana Célia da Silva, Vanda Machado, Florentina Souza, Hamilton Vieira, Januária Avelina Correia do Patrocínio. Contou também com a participação especial do eminente educador e escritor, artista, sacerdote o Alapini Deoscoredes M. dos Santos, Mestre Didi Asipa.
Mãe Aninha, Iyalorixá Obá Biyí, fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá, foi quem lançou as sementes para instalarmos a problemática da Educação Pluricultural quando lançou o desafio: “ Quero ver as crianças de hoje, no dia de amanhã de anel no dedo e aos pés de Xangô”.
O projeto Mini-Comunidade Obá Biyí denomina-se em sua homenagem, e teve como principal mentor seu “neto” Mestre Didi.



Um comentário:

  1. Muito bom esse trabalho, uma pesquisa muito importante no campo da descolonização. Parabéns professor!

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