Mãe Aninha, Iyalorixá
Obá Biyí que devido a pujança das religiões de matriz africana,classsificou a
Bahia de “A Roma Negra”
Um dos problemas mais
graves enfrentados pelos chamados países do Terceiro Mundo e ex-colonizados diz
respeito ao sistema de ensino.
O sistema de ensino que
foi implantado e desenvolvido nesses países em geral é uma herança do
colonialismo e, como tal, se constitui num aparelho ideológico do Estado,
voltado para reproduzir e divulgar os valores evolucionistas, etnocêntricos ou
eurocêntricos, assim como para atender às necessidades técnicas de uma economia
atrelada ao mercado de trocas comerciais neocoloniais.
Nesse sentido, o
sistema de ensino se constitui num mecanismo de tentativa de desculturação e,
portanto de despersonalização dos habitantes desses países, caracterizando-se
como sério obstáculo para uma verdadeira identidade e profunda independência
nacional.
Outro aspecto
importante a destacar é que esses países se constituíram, de modo geral, a
partir e em função dos interesses das metrópoles europeias em dividir entre si
as áreas territoriais de exploração das riquezas e da força de trabalho na
forma específica do modo de produção colonial mercantil e escravagista. Assim
sendo, muitos países ex-colonizados ainda lutam para constituir sua
nacionalidade, tentando harmonizar as diferenças dos seus diversos povos com
seus respectivos valores culturais.
Nestes casos
enquadra-se o Brasil. Seu território foi formado a partir dos interesses
colonialistas de divisão de áreas de exploração concretizados inicialmente com
o Tratado de Tordesilhas.
O seu povo se constitui
de populações originárias basicamente de três continentes: América, África, e
Europa, que dão continuidade e expandem seus processos civilizatórios
característicos. Portanto a nação brasileira se constitui e se caracteriza pela
pluralidade étnica e cultural.
As tentativas
colonialistas de desculturação, aculturação e catequese através da história,
apesar de todo reforço repressivo e mesmo genocida do sistema oficial
fracassaram. A nacionalidade brasileira se caracteriza pela diversidade e pela
pluralidade cultural do seu povo.
Ilê Axé Opô Afonjá,
fundado em 1910 por Mãe Aninha, Iyalorixá Oba Biyí
Foto de Jackeline A. Divino
No Brasil, todavia,
assim como em muitos outros países do chamado Terceiro Mundo, persiste uma
grande distância e mesmo uma grande defasagem entre o Estado e as formas de
organização socioculturais e econômicas da grande maioria da população.
O Estado oficial
brasileiro nasce da Proclamação da Independência por D. Pedro I, “antes que
algum aventureiro lançasse mão”, isto é, para que o Brasil, mesmo independente,
pudesse continuar restrito ao âmbito das políticas socioculturais e econômicas
neocoloniais.
Em verdade, passada a
época da influência hegemônica portuguesa nas relações internacionais do
Brasil, pouco houve de mudanças no que diz respeito às características do
Estado, que continuou preso às influências neocolonialistas.
Assim, o país se
caracteriza, de um lado, por uma sociedade oficial assentada no desejo de
predominância dos valores civilizatórios europeus e, por outro, de uma
sociedade não reconhecida e não legitimada oficialmente, assentada nos valores
civilizatórios de origem negro-africana e ameríndia. No que se refere, então, à
política educacional e cultural do Estado, o que vemos é a hegemonia quase
absoluta dos valores europeus.
Uma das consequências
mais graves dessa hegemonia é o índice altíssimo de evasão escolar, ainda no
primeiro grau, principalmente nas regiões Norte e Nordeste.
Esse quadro caracteriza
um sintoma dos obstáculos existentes para o aperfeiçoamento dos mecanismos de
mobilidade socioeconômica e fundamentalmente de uma verdadeira integração nacional.
DIFERENTES
FORMAS DE TRANSMISSÃO DO SABER
Enquanto, na cultura europeia,
a transmissão do saber se dá através da mediação do texto, isto é, da forma de
comunicação escrita, nas culturas negra e ameríndia a transmissão se dá deforma
direta, dinâmica, pessoal e ou intergrupal.
Comunidade do Ilê Axé Opô
Afonjá
Foto de Kabá
Se, nessas culturas,
que denominamos de culturas da participação, o tempo de transmissão se
caracteriza pela comunicação ligada a uma experiência vivida, aqui e agora, e
que culmina nas situações rituais que marcam o fortalecimento da identidade e o
lugar e a função do indivíduo na sociedade, no ensino oficial o tempo está
demarcado pelo ano letivo, ela impessoalidade das relações do ensino de massa e
pela passagem de série através dos exames que têm como referência básica o
desenvolvimento do aluno no âmbito da comunicação escrita.
Enquanto nas culturas
da participação as relações de transmissão do saber atualizam as hierarquias
sociais que situam os poderes e deveres dos mais velhos em relação aos meios
novos e vice-versa, no ensino oficial o que se legitima apenas é o meio de
comunicação, a escrita, que cristaliza o poder da Razão de Estado.
O exercício da
legitimação desse poder culmina na universidade, onde as bibliografias, as
citações, principalmente de autores europeus, dão legitimação a “verdades” e
resultam em poderes institucionais aos que escrevem dessa forma artigos e
teses. Portanto, o que é legitimado, na verdade, é o próprio poder impessoal do
Estado através da escrita.
No que se refere à
cultura negra, que é predominante na maioria do povo brasileiro, ela se
caracteriza por constituir sua visão de mundo através de uma complexa e
riquíssima simbologia.
Pinturas das crianças
da Mini Comunidade Obá Biyí. Derivadas das composições de arraias. A
predominância de triângulos deriva da simbologia de expansão de famílias, o
casal e o terceiro nascido em movimento de sucessivas expansões.
Foto de M A. Luz
Essa simbologia se
apresenta principalmente no âmbito das instituições religiosas posto que no
sistema cultural negro a religião se caracteriza como núcleo central e
irradiador de valores civilizatórios.
A linguagem das
instituições religiosas constitui-se numa arte sacra negra, que combina, de
forma própria, dramatização, dança, música, poemas, código de cores, emblemas,
esculturas, vestuário, parafernália que contribui para magnificar o sagrado.
Essa linguagem, que
comunica o saber da visão de mundo negra, em muito se diferencia dos elementos
de comunicação que caracterizam a transmissão do saber no sistema de ensino
oficial.
Nesse sistema,
sobressai a nudez da sala de aula com suas carteiras, o quadro de giz,
aparelhagem eletrônica, onde a palavra escrita e “oralizada” é o único elemento
simbólico que participa da comunicação.
O professor,
individualmente, legitima o poder do Estado e caracteriza-se em geral por ser
mero tradutor ou transmissor dos conteúdos dos livros adotados, enfim um
mediador da palavra impressa.
DIFERENÇA
DOS CONTEÚDOS
Evidentemente que há
muita diferença entre os conteúdos que formam a visão de mundo negra e a
projeção ideológica neocolonialista da escola oficial, caracterizada
especificamente pelo recalcamento da presença dos processos civilizatórios
constituintes da Nação, elegendo como universal o processo civilizatório
europeu.
Desenho das crianças da
Mini-comunidade Obá Biyí, referente a história da Criação do Mundo.
Foto de M.A. Luz
Assim é que nos materiais
didáticos utilizados não há possibilidade alguma de identificação para a grande
maioria das crianças brasileiras. Há uma grande defasagem entre sua realidade
nacional, representada como se o país fosse uma nação caracteristicamente europeia,
com o predomínio absoluto dos valores estéticos, éticos e científicos do
Ocidente. Essa representação, contudo, está em mora com os fatos.
Desenho das crianças da
Minicomunidade Oba Biyí.
Baba Egun, ancestral masculino.
Foto de M.A. Luz
Na realidade, ela é a
grande responsável pela evasão escolar, pois a criança não se vê contemplada
nesse contexto, nem a sua família, sua religião, sua comunidade, nem sua
sociedade.
Para manter, então sua
integridade psicossocial, a criança, sentindo-se rejeitada, evade-se e prefere
perder algumas possibilidades de mobilidade social individual, a submeter-se a
padrões culturais exógenos ao seu próprio contexto.
Há, todavia uma pequena
minoria que resolve enfrentar essas condições; tornam-se, porém, almas no
exílio, acabando por se afastarem da própria família e da comunidade a que
pertenciam e carregam consigo a sequela dos complexos advindos de uma
identidade fracionada.
SUPERAÇÃO
DOS OBSTÁCULOS ETNOCÊNTRICOS NA EDUCAÇÃO
Dentre as tentativas
existentes para superar a gravidade da situação enfrentada pela educação no
Brasil, no que se refere à pluralidade cultural, sobressai a experiência piloto
e pioneira, da Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil, em convênio com
o Ilê Axé Opô Afonjá e a Prefeitura de Salvador.
A experiência denominada Mini Comunidade Obá
Biyí visa harmonizar o fortalecimento da identidade cultural comunitária aos
interesses e necessidades de mobilidade econômica e social e de conquista de
maiores espaços na sociedade oficial. Em funcionamento desde abril de 1978, o
projeto vem alcançando resultados altamente satisfatórios, em que pesem as
dificuldades de recursos para sua manutenção.
Crianças com professora,Educação Infantil
Foto de A. Ikissima
O projeto que assiste a
cerca de 130 crianças e jovens, desde o maternal à alfabetização e
desenvolvimento integrado, atendendo até a idade limite de quatorze anos,
caracteriza-se por implantar e desenvolver um currículo pluricultural, baseado
nos valores culturais comunitários da tradição dos orixás, constituindo uma
nova linguagem pedagógica.
A coordenação do
projeto foi constituída pelo GTE, Grupo de Trabalho em Educação da Secneb,
Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil.
Encenação do auto
coreográfico Odé e os Orixá do Mato de Mestre Didi
Fotos de M. A. Luz
Em linhas gerais, essa
nova pedagogia se caracteriza pela escolha de um tema semestral relacionado com
o calendário cultural e religioso da comunidade. Embora o projeto não esteja
comprometido com nenhuma orientação religiosa, são do universo simbólico
específico da comunidade, de seus valores culturais, que são extraídos os
diversos temas.
Os temas se constituem
de referências aos princípios que regem o universo conforme a visão de mundo da
comunidade. De acordo com esses princípios é selecionado um conto de Mestre
Didi que integra o patrimônio cultural e adaptado pelo GTE em indicações
didáticas e em auto coreográfico, constituindo-se no núcleo irradiador das
atividades criativas e pedagógicas.
Reunido com os
funcionários e professores, o grupo de trabalho coordena e acompanha as ações
que visam estabelecer a programação semestral. A partir do tema e do conto
escolhidos, os integrantes do projeto deverão adaptar os conhecimentos e
informações do currículo oficial. No que concerne à forma de comunicação,
deverão procurar aproximar-se da pedagogia comunitária, que não se baseia na
mediação do texto escrito.
É aí que a montagem do
auto coreográfico ganha em significado pedagógico, posto que se baseia nas
formas dramáticas e simbólicas comunitárias. A montagem atinge a característica
de aprendizagem da comunidade, na qual a relação vivido- concebido se dá aqui e
agora; aprende-se vivendo a experiência da montagem.
Encenação do conto O
Presente de Xangô à Boa Menina de Mestre Didi
Foto de A. Ikissima
Assim, a leitura dos
textos, desenhos, colagens, esculturas, feitura de figurinos e cenários,
compreendendo processos de tintura de tecidos, confecção de roupas, fabricação
de instrumentos, aprendizagem de cantigas, danças e músicas polirrítmicas,
constituem um processo nuclear das atividades curriculares e só possível com a
participação imprescindível de Mestre Didi.
Exposição de trabalhos
das crianças no Festival de Arte Integrada Mini comunidade Obá Biyí.
Foto de M. A. Luz
Essas atividades
culminam, no encerramento de cada semestre, com o Festival de Arte Integrada Mini
comunidade Oba Biyí, quando são convidados os pais, parentes e integrantes da
comunidade e do bairro adjacente para compartilharem dos resultados alcançados.
Encenação do auto
coreográfico A Chuva Dos Poderes de Mestre Didi
Fotos de M.A. Luz
De modo bastante
sumário, é este o âmago da proposta de um projeto que já pode oferecer os
seguintes resultados, divulgados pelo GTE, no Evento Secneb 83:
A Mini comunidade Oba
Biyí concorre efetivamente para um desenvolvimento harmônico da criança, ao
incentivar uma percepção valorizada de seu próprio mundo cultural, que lhe
permite colocar-se melhor na escola oficial e na sociedade que a cerca.
Entre as crianças que frequentam ou
frequentaram a mini comunidade, houve sensível diminuição do índice de evasão
escolar e melhor aproveitamento da escola pública, tendo alguns jovens
ultrapassado à barreira das primeiras séries, cursando agora o segundo grau.
Os jovens maiores de
quatorze anos, desejando continuar integrados ao projeto, formaram um Grupo de
Jovens da Obá Biyí e já realizaram curso de artes cênicas, com adaptação e
montagem da peça “A Vendedora de Acaçá”, do conto de Mestre Didi (Deoscoredes
M. dos Santos), curso de projeção de cinema, cine clube com sessões semanais, curso
de fotografia com exposições etc. Alguns desses jovens começam a atuar como
monitores na Mini comunidade Obá Biyí.
Grupo de Jovens da Obá
Biyí
Foto de A. Jorge M. Dos Santos
Através dos trabalhos
de pintura, colagem, escultura, dramatização, dança música, visitas a museus,
acesso a peças de teatro etc., as crianças vêm percebendo novas oportunidades e
desenvolvendo, com maior amplitude, suas possibilidades e interesses.
Observações:
Este texto integra o
livro IDENTIDADE NEGRA E EDUCAÇÃO, organizado por Marco Aurélio Luz e faz parte
da coleção Cadernos de Educação Política do saudoso e memorável professor José
Arapiraca. O livro publicado em 1989, Ianamá, reúne trabalhos de Sandra Maria
Bispo, Ilê Aiyê, Narcimária Correia do Patrocínio Luz, Ana Célia da Silva,
Vanda Machado, Florentina Souza, Hamilton Vieira, Januária Avelina Correia do
Patrocínio. Contou também com a participação especial do eminente educador e
escritor, artista, sacerdote o Alapini Deoscoredes M. dos Santos, Mestre Didi
Asipa.
Mãe Aninha, Iyalorixá
Obá Biyí, fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá, foi quem lançou as sementes para
instalarmos a problemática da Educação Pluricultural quando lançou o desafio: “
Quero ver as crianças de hoje, no dia de
amanhã de anel no dedo e aos pés de Xangô”.
O projeto
Mini-Comunidade Obá Biyí denomina-se em sua homenagem, e teve como principal
mentor seu “neto” Mestre Didi.
Muito bom esse trabalho, uma pesquisa muito importante no campo da descolonização. Parabéns professor!
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