Capa do livro publicado em 1989
O
livro Identidade Negra e Educação surge no contexto de retomada do movimento
negro na década de setenta. Ele é sem dúvida um desdobramento da experiência
educacional pioneira da Mini Comunidade Oba Biyi. Marco Aurélio Luz que
participou ativamente dessa experiência instala uma nova problemática teórica
na Universidade. Primeiramente na UFRJ e depois na Ufba. Na Faculdade de
Educação a pedido do professor José Arapiraca coordenador da coleção Cadernos de
Educação Política, organiza o livro convidando professores e intelectuais de
modo geral.Trata-se de um livro de vanguarda, pioneiro, que divulga uma nova problemática no cenário da Educação e que vem tendo diversos desdobramentos na atualidade.
Contra capa do livro
Autores/as no Lançamento do livro no Museu Afrobrasileiro da UFBA em 1989
Momentos de autógrafos no Museu Afrobrasileiro da UFBA em 1989
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APRESENTAÇÃO
“Identidade Negra e
Educação” reúne distintos trabalhos que procuram estabelecer uma nova percepção
sobre as políticas educacionais e o sistema no Brasil, um país caracterizado
pela pluralidade sociocultural.
Até onde e como um país
que se caracterizou historicamente como colonizado e escravista, e que adotou
uma política de embranquecimento desde a sua independência, projeta os
interesses neocoloniais e imperialistas de valores eurocêntricos no sistema de
ensino?
De que forma se
constitui o que chamamos de pedagogia do embranquecimento e em que medida essa
pedagogia é responsável pelo elevado índice de evasão escolar e do relativo
fracasso da educação no Brasil?
Esses são os principais
temas desenvolvidos que procuram demonstrar, de um lado, pujança do processo
civilizatório negro, constituinte da identidade da maioria do povo brasileiro,
e de outro, uma pedagogia assentada em paradigmas etnocêntricos,
evolucionistas, eurocêntricos e racistas que têm aprofundado o descompasso
entre a maioria da população e a sociedade “oficial”, entre a Nação e o Estado,
concorrendo para o agravamento do genocídio causado pela política de abandono e
enfraquecendo as aspirações de soberania nacional frente às correntes do
cativeiro da ordem internacional neocolonial.
Procuram, ainda,
demonstrar as formas como se processa a luta de afirmação da identidade no
âmbito escolar e sobretudo estabelecer novos caminhos para uma educação aberta
à pluralidade cultural, ao respeito à alteridade e ao direito coletivo de
existência própria.
Narcimária Luz co-autora e Marco Aurélio Luz Oganizador e co-autor do livro
Lançamento no Instituto de Pesquisa das Culturas Negras(Ipcn) no Rio e Janeiro
Presença da Professora Helena Theodoro
Lançamento no Instituto de Pesquisa das Culturas Negras(Ipcn) no Rio e Janeiro
Presença de Januário Garcia Diretor do Ipcn
Lançamento no Instituto de Pesquisa das Culturas Negras(Ipcn) no Rio e Janeiro
Presença da Professora Beatriz Nascimento
Lançamento no Instituto de Pesquisa das Culturas Negras(Ipcn) no Rio e Janeiro
Salvador, 30 de janeiro de 1989.
Marco Aurélio Luz
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Imagem disponível em http://www.jornalismo.com.br/index.php/conchinhas-do-mar-da-vida/mobile-com-conchas-do-mar1/
Por Narcimária Correia do Patrocínio Luz
O objetivo deste trabalho está ancorado numa tentativa preliminar de discussão de algumas ideias acerca do papel da escola numa sociedade eminentemente pluricultural.
Nossa preocupação central está referida à problemática da escola, que se limita a confirmar e a reforçar um habitus da cultura oficial eurocêntrica, provocando a manifestação de um universo pseudoconcreto ou de um simulacro em volta das crianças, representado por temas ideológicos como: democracia racial, bondade da princesa Isabel, as contribuições folclóricas da "raça" negra, a África projetada como primitiva etc.
Tal
discurso não corresponde às reais condições de vida do negro, lhe é
completamente estranho e não pode, portanto, relacionar-se com os seu
interesses, pois não se referem à história das civilizações africanas, aos
valores civilizatórios negros, à beleza negra, aos quilombos, aos grandes
heróis negros e, principalmente, à luta desencadeada pelas comunidades negras
no sentido de reforçar a cultura afro-brasileira. Aliás, essa cultura foi
caracteristicamente violentada, negada, oprimida e desfigurada ao longo dos anos
pelo mercantilismo escravista, pelo racismo e pela política e ideologia do
embranquecimento.
O
universo escolar parece estranho e alheio aos negros, porque repete, reforça,
prolonga e valoriza as condições do mundo branco.
A
constatação básica da qual parte a nossa crítica é que:
(...) a imagem da África e do
africano promulgada pelas escolas anglo e latino-americanas é uma imagem
grotesca, humilhante, além de falsa, que mina ou impossibilita toda aspiração
da criança negra à realização humana. Na própria África ,essas distorções
prevalecem nos sistemas educativos herdados do colonialismo. Contestar e banir
este sistema de mitos racistas na educação da criança negra, e substituí-lo com
uma afirmação autentica da identidade verdadeira e positiva do africano, é uma
função orgânica e primária da organização política, porque, como um sistema,
ele corrói diretamente o potencial de um povo rumo à realização do seu
protagonismo histórico.[1]
Por
consequência, a escola que se proclama única e democrática constitui-se numa
mistificação; não há qualquer relação entre o que ela afirma fazer e o que
realmente faz;; a sua ideologia democrática é o oposto da sua existência
reprodutiva. A escola consegue dissimular muito bem a função que desempenha.
Trata-se de uma escola montada, maquinada para confortar e fortalecer aqueles
que se submetam à visão eurocêntrica de mundo.
Tudo
isso mostra que a escola, tal como está construída, é um reflexo da política de
desculturação, entendida como:
(...)
processo consciente mediante o qual, com
fins de exploração econômica, se procede a desagregar a cultura de um grupo,
para facilitar a expropriação de riquezas naturais do território em que está
estabelecido e ou para utilizá-lo como força de trabalho barata não
qualificada. O processo de desculturação é inerente a toda forma de exploração
colonial ou neocolonial (...) [2]
“Acrescentaríamos:
não só com fins de exploração econômica, mas também de dominação política,
cultural e étnica.”[3]
Portanto
a escola tem por função vedar a expressão direta, em relação à criança negra,
do seu mundo e da sua vida. É em redor desta repressão que se organizam todas
as práticas pedagógicas, aqui a destacar “de certa forma, o valor próprio da
cultura negro-brasileira, a sua real dimensão, e a complexidade e riqueza do
processo civilizatório negro”[4].
Aniversário do Programa Descolonização e Educação-PRODESE em 2005 no auditório da UNEB
Apresentação do Grupo As Ganhadeiras de Itapuã
A
expressão falada da criança negra, é desencadeada muitas vezes no seio de sua
família, através da tradição oral comunitária, a partir de textos e contos que “ são transmitidos e
apreendidos lentamente através da convivência e da iniciação ritualística”.
Como forma pedagógica específica negra, os textos e contos das comunidades têm
uma finalidade e uma função:
(...) antes de serem formas de arte, [os textos]
são formas que levam a carga de significar as múltiplas relações do homem com
seu meio técnico e ético. Eles ilustram uma maneira pela qual os nagô procuram
promover a adaptação ou socialização de seus integrantes, através do aspecto
pedagógico, assegurando, assim, uma forma própria de obter a coesão social. Os contos
ilustram o acervo de textos místicos, acontecimentos históricos (inclusive os
ocorridos na órbita da sociedade global com seus integrantes) que marcados por
sua intemporalidade narrativa e sua característica fantástica de
representações, reforçam e ensinam os padrões indicativos dos comportamentos
necessários à coesão do grupo.[5]
Todo
esse acervo de comunicação oral é mutilado pela escola, que lhe nega todo valor
e penaliza a criança negra.
Isso
significa que se corta sistematicamente apalavra a quem a quiser tomar sem
obedecer às leis do texto escrito. Assim, se exige o imobilismo destas
crianças, criando-lhes um sentimento de culpa, muitas vezes relacionando o
fracasso escolar à própria criança e à sua família. A repressão exercitada por
parte da escola sobre a linguagem comunitária e, simultaneamente, da sua
representação e forma de vida, leva as crianças negras a recalcarem-se diante
dos desafios e a viverem-nos como problemas relacionados à sua
origem familiar de ancestralidade africana, inculcando um complexo de
inferioridade que tende a levá-la anão acreditar em si, no seu jeito de ser e
na sua história etnocultural.
Organizada
pelo Estado, esta escola possui uma linguagem que só foi criada para esse fim,
configurando-se como verdadeira barreira social. Procura-se domesticar e
eliminar valores civilizatórios negros através de um
(...) neologismo aparentemente
simples: “civilização”, nascido, curiosamente, apenas na metade do século XVIII
simultaneamente na França e Inglaterra, derivado do verbo “civilizar”,[que] se
transformaria, em centúria e meia, em arma e em instrumento ou ideologia de dominação. Dessa
arma ou instrumento ou ideologia de dominação surgiria o colonialismo, as
guerras colonialistas na África e Ásia, a escravidão de povos inteiros para a
exploração econômica e humana. E como atua a violência instrumental da arma ou
ideologia? Buscando primeiro, a obnulação da memória e, em seguida, a
implantação das próprias formas culturais das potências civilizadoras nos povos
submetidos. Não é outra a ação e o efeito da chamada aculturação. (...) O negro
foi aculturado dentro de linhas específicas de pressão espiritual. Sua religião
e sua cultura, seus valores e sua concepção do mundo foram pulverizados até sua
redução a matéria de folclore e antropologia, através da deformação pitoresca
do sincretismo.[6]
Através
desse supremacismo ariano, que procura suprimir e silenciar a consciência
negra, parece-nos que a escola,
(...) seus métodos, os locais, a
arrumação do espaço reduzem o aluno à passividade, habituando-o a trabalhar sem
prazer(apesar das pretensões de um “ensino vivo” e de algumas tentativas de
renovação). O espaço pedagógico é regressivo, mas esta “estrutura” tem um
significado mais vasto que a repressão local: o saber imposto “engolido” pelos
alunos, “vomitado” nos exames corresponde à divisão do trabalho na sociedade
burguesa, serve-lhe portanto de suporte.[7]
Daqui
se conclui que
(...) as práticas escolares e seu
ritual são um aspecto essencial do processo de inculcação ideológica; deveres,
disciplina, castigos e recompensas, atrás de sua aparente função educativa
técnica, asseguram a função essencial ainda que oculta de realizar na escola a
ideologia burguesa, de submeter a ela todos os indivíduos e neste sentido de
representar a seu modo a produção, o direito, o Estado burguês.[8]
Mas
a escola é, também, e ao mesmo tempo, um local de lutas, onde emergem
constantemente múltiplas forças contraditórias. Trata-se de um terreno de luta
entre opressor e oprimido, onde se
defrontam forças progressistas e conservadoras, onde se refletem também a
exploração e a luta contra a exploração. “(...) A escola é simultaneamente
reprodução das estruturas existentes, correia de transmissão da ideologia
oficial, domesticação, mas também ameaça à ordem estabelecida e possibilidade
de libertação.”[9]
Seu papel reprodutor não a aniquila, pelo contrário, indica
pistas para o combate que já foi desencadeado e como continua-lo, observando as
relações de força, acompanhando o momento histórico, que possibilitará uma
instabilidade mais ou menos aberta à nossa ação.
Resta-nos ressaltar a viabilidade, onde a criança negra deixa de ser um corpo estranho, destinada ao fracasso escolar. O Brasil é o segundo país negro do mundo, com mis de 80 milhões de pessoas de ascendência africana. Daí a necessidade de transformar a escola em local de luta, o terreno em que se procurará desenvolver no negro uma auto consciência histórica e política, ou uma comunicação e solidariedade prática com o resto do mundo africano. O papel da escola passa a ser o de oferecer ao negro brasileiro uma fonte de informações para começar a preencher o vazio resultante do isolamento que lhe foi imposto por essas táticas de dominação.
Resta-nos ressaltar a viabilidade, onde a criança negra deixa de ser um corpo estranho, destinada ao fracasso escolar. O Brasil é o segundo país negro do mundo, com mis de 80 milhões de pessoas de ascendência africana. Daí a necessidade de transformar a escola em local de luta, o terreno em que se procurará desenvolver no negro uma auto consciência histórica e política, ou uma comunicação e solidariedade prática com o resto do mundo africano. O papel da escola passa a ser o de oferecer ao negro brasileiro uma fonte de informações para começar a preencher o vazio resultante do isolamento que lhe foi imposto por essas táticas de dominação.
Nesta perspectiva
(...)
Nunca é demasiado destacar o valor e o
lugar que a religião ocupa no processo civilizatório negro. A religião se
caracteriza como um eixo, um elemento central (...) deste processo. A religião
é ponto básico, é fonte de afirmação dos valores civilizatórios negros e núcleo
de resistência às variadas formas de aspirações neocolonialistas (...). Em
relação ao processo cultural a religião é fonte dinamizadora de um ethos, indicadora de comportamentos e hábitos, enfim de uma maneira negra de ser.
Ela estabelece e proporciona uma ética própria. Imprime formas de relações
sociais, estipulando formas próprias de organização e hierarquias, estimula a
vida comunal. Estabelece padrões estéticos próprios e formas específicas de
comunicação e de acesso ao riquíssimo sistema simbólico, pleno de conhecimentos
e sabedorias, caracterizando uma pedagogia negra iniciática (...) A religião
negra constitui-se num ponto de resistência de luta do homem negro em busca de
sua libertação e de real e universal integração.[10]
É
importante notar que essa referência civilizatória negra, dispensada pela
escola, está comprometida com a verdade e a luta por uma sociedade mais justa,
em que se respeite a diversidade cultural. A cultura negra é um dos fatores que
pode impedir a escola de pender para a ideologia colonial do supremacismo
branco, desde que a pressão e as experiências vividas pelas crianças negras
sejam um obstáculo ao disfarce democrático escolar.
Portanto,
a cultura negra é o ponto de chegada e de partida, a luta real, possível e
necessária no cotidiano escolar. Lutar para desmitificar os conteúdos
veiculados na escola, lutar para denunciar e esmagar a segregação no interior
da escola, pela conscientização dos agentes pedagógicos sobre a referência
histórico-cultural afro-brasileira, pela recuperação da memória ancestral africana, para minar a ideologia
da democracia racial, enfim, para reconstruir a verdadeira história do negro,
distorcida pela política de desculturação.
IIº Festival Afrobrasileiro da ACRA 2009
As crianças dramatizando o conto "Itapuã a Canção do Infinito" de autoria de Narcimária Luz sob a coordenação do Professor Sidney Argolo,Professoras Rosângela Accioly e Daniela Cidreira
Mas há mais coisas a serem observadas. Não se pode adotar uma postura de consciência ingênua nessa questão, esquecendo-se de que
Mas há mais coisas a serem observadas. Não se pode adotar uma postura de consciência ingênua nessa questão, esquecendo-se de que
(...) a escola é um dos organismos
da superestrutura e, como tal, é uma das instâncias onde a prática social
global se processa. A prática educativa escolar é portanto, uma das modalidades
dessa prática social global e não uma “entidade” à parte desta prática mais
ampla, uma entidade que estaria precedendo à prática social como um todo. Se as
transformações sociais se dão na prática social global, dão-se em toda e
qualquer de suas modalidades, inclusive na prática educativa(...). Por outro
lado, é preciso lembrar ainda que o comportamento do indivíduo é determinado
pelas múltiplas circunstâncias que constituem a prática social global na qual
se encontra. No entanto, não se pode esquecer que essa determinação não é
absoluta na formação da consciência do indivíduo. Existe uma relativa autonomia
em relação a essa determinação, levando-o a reagir sobre elas. As lutas sociais
mostram bem esse fenômeno.[11]
É
preciso enfatizar aqui a necessidade de compreender a prática educativa como
uma atividade mediadora no seio de uma prática social global. Uma prática
educativa que pretenda instrumentar o indivíduo, enquanto ser social, para
atuar na circunstância histórico-geográfica na qual está inserido.
Considerando-se
esses aspectos, podemos propor um que fazer pedagógico que proporcione uma
educação em que a sistematização do conhecimento nasça da experiência
pluricultural da nossa sociedade e permaneça em continuidade com ela. Onde o
aluno use a sua experiência pessoal completada, enriquecida com o que aprende.
Assim
a escola passará a ser a síntese do patrimônio coletivo pluricultural.
NOTAS:
1
Elisa Larkin Nascimento, Pan-africanismo
na América do Sul, Petrópolis, Vozes, 1983, p. 36.
2
Manuel Fraginals apud Marco Aurélio
Luz, Cultura negra e ideologia do
recalque, Rio de Janeiro, Achiamé, 1983, p. 67.
3
Marco Aurélio luz, op. Cit., p. 67.
4
Idem, ibidem, p. 27.
5
Marco Aurélio Luz, op. cit. pp.
42-43.
6
Elisa Larkin Nascimento, op. cit., p.
13.
7
Henri Lefebrve, “ A Reprodução das Relações Sociais”, s/l. n/d. (mimeo), pp.
58-59.
8
Chistian Baudelot e Roger Establet, L´ecole
capitaliste, Paris, Maspéro, p. 59.
9
Georges Snyders, Escola, classe e luta de
classes, Morais, Rio de Janeiro, 1981, p. 106.
10
Marco Aurélio Luz, op. cit., p. 38.
11
Betty Oliveira, “A Prática Social Global como Ponto de Partida e de Chegada da
Prática Educativa”, Tecnologia
educacional, Rio de Janeiro, n. 66-67 nov.-dez. 1985.
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