sábado, 31 de agosto de 2013

IDENTIDADE NEGRA E EDUCAÇÃO.


 
Capa do livro publicado em 1989
O livro Identidade Negra e Educação surge no contexto de retomada do movimento negro na década de setenta. Ele é sem dúvida um desdobramento da experiência educacional pioneira da Mini Comunidade Oba Biyi. Marco Aurélio Luz que participou ativamente dessa experiência instala uma nova problemática teórica na Universidade. Primeiramente na UFRJ e depois na Ufba. Na Faculdade de Educação a pedido do professor José Arapiraca coordenador da coleção Cadernos de Educação Política, organiza o livro convidando professores e intelectuais de modo geral.Trata-se de um livro de vanguarda, pioneiro, que divulga uma nova problemática no cenário da Educação e que vem tendo diversos desdobramentos na atualidade.
Contra capa do livro
 
 
 
Autores/as no Lançamento do livro no Museu Afrobrasileiro da UFBA em 1989
 
 
 
 
Momentos de autógrafos no Museu Afrobrasileiro da UFBA em 1989
 
 
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APRESENTAÇÃO

Identidade Negra e Educação” reúne distintos trabalhos que procuram estabelecer uma nova percepção sobre as políticas educacionais e o sistema no Brasil, um país caracterizado pela pluralidade sociocultural.
Até onde e como um país que se caracterizou historicamente como colonizado e escravista, e que adotou uma política de embranquecimento desde a sua independência, projeta os interesses neocoloniais e imperialistas de valores eurocêntricos no sistema de ensino?
De que forma se constitui o que chamamos de pedagogia do embranquecimento e em que medida essa pedagogia é responsável pelo elevado índice de evasão escolar e do relativo fracasso da educação no Brasil?
Esses são os principais temas desenvolvidos que procuram demonstrar, de um lado, pujança do processo civilizatório negro, constituinte da identidade da maioria do povo brasileiro, e de outro, uma pedagogia assentada em paradigmas etnocêntricos, evolucionistas, eurocêntricos e racistas que têm aprofundado o descompasso entre a maioria da população e a sociedade “oficial”, entre a Nação e o Estado, concorrendo para o agravamento do genocídio causado pela política de abandono e enfraquecendo as aspirações de soberania nacional frente às correntes do cativeiro da ordem internacional neocolonial.
Procuram, ainda, demonstrar as formas como se processa a luta de afirmação da identidade no âmbito escolar e sobretudo estabelecer novos caminhos para uma educação aberta à pluralidade cultural, ao respeito à alteridade e ao direito coletivo de existência própria.
 
 
 
Narcimária Luz co-autora e Marco Aurélio Luz Oganizador e co-autor do livro
Lançamento no Instituto de Pesquisa das Culturas Negras(Ipcn) no Rio e Janeiro
 
 
Presença da Professora Helena Theodoro
Lançamento no Instituto de Pesquisa das Culturas Negras(Ipcn) no Rio e Janeiro
 
 
Presença de Januário Garcia Diretor do Ipcn
Lançamento no Instituto de Pesquisa das Culturas Negras(Ipcn) no Rio e Janeiro
 
 
Presença da Professora Beatriz Nascimento
Lançamento no Instituto de Pesquisa das Culturas Negras(Ipcn) no Rio e Janeiro
 
Salvador, 30 de janeiro de 1989.
Marco Aurélio Luz
 
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 POR UMA EDUCAÇÃO PLURICULTURAL

 Por Narcimária Correia do Patrocínio Luz
O objetivo deste trabalho está ancorado numa tentativa preliminar de discussão de algumas ideias acerca do papel da escola numa sociedade eminentemente pluricultural.
Nossa preocupação central está referida à problemática da escola, que se limita a confirmar e a reforçar um habitus da cultura oficial eurocêntrica, provocando a manifestação de um universo pseudoconcreto ou de um simulacro em volta das crianças, representado por temas ideológicos como: democracia racial, bondade da princesa Isabel, as contribuições folclóricas da "raça" negra, a África projetada como primitiva etc.
 
Tal discurso não corresponde às reais condições de vida do negro, lhe é completamente estranho e não pode, portanto, relacionar-se com os seu interesses, pois não se referem à história das civilizações africanas, aos valores civilizatórios negros, à beleza negra, aos quilombos, aos grandes heróis negros e, principalmente, à luta desencadeada pelas comunidades negras no sentido de reforçar a cultura afro-brasileira. Aliás, essa cultura foi caracteristicamente violentada, negada, oprimida e desfigurada ao longo dos anos pelo mercantilismo escravista, pelo racismo e pela política e ideologia do embranquecimento.
 
IIº Festival Afrobrasileiro da ACRA 2009
As crianças dramatizando o conto "Itapuã a Canção do Infinito" de autoria de Narcimária Luz sob a coordenação do Professor Sidney Argolo,Professoras Rosângela Accioly e Daniela Cidreira
O universo escolar parece estranho e alheio aos negros, porque repete, reforça, prolonga e valoriza as condições do mundo branco.
A constatação básica da qual parte a nossa crítica é que:
(...) a imagem da África e do africano promulgada pelas escolas anglo e latino-americanas é uma imagem grotesca, humilhante, além de falsa, que mina ou impossibilita toda aspiração da criança negra à realização humana. Na própria África ,essas distorções prevalecem nos sistemas educativos herdados do colonialismo. Contestar e banir este sistema de mitos racistas na educação da criança negra, e substituí-lo com uma afirmação autentica da identidade verdadeira e positiva do africano, é uma função orgânica e primária da organização política, porque, como um sistema, ele corrói diretamente o potencial de um povo rumo à realização do seu protagonismo histórico.[1]
 Por consequência, a escola que se proclama única e democrática constitui-se numa mistificação; não há qualquer relação entre o que ela afirma fazer e o que realmente faz;; a sua ideologia democrática é o oposto da sua existência reprodutiva. A escola consegue dissimular muito bem a função que desempenha. Trata-se de uma escola montada, maquinada para confortar e fortalecer aqueles que se submetam à visão eurocêntrica de mundo.
 
IIº Festival Afrobrasileiro da ACRA 2009
As crianças dramatizando o conto "Itapuã a Canção do Infinito" de autoria de Narcimária Luz sob a coordenação do Professor Sidney Argolo,Professoras Rosângela Accioly e Daniela Cidreira
 
Tudo isso mostra que a escola, tal como está construída, é um reflexo da política de desculturação, entendida como:
(...) processo consciente mediante o qual, com fins de exploração econômica, se procede a desagregar a cultura de um grupo, para facilitar a expropriação de riquezas naturais do território em que está estabelecido e ou para utilizá-lo como força de trabalho barata não qualificada. O processo de desculturação é inerente a toda forma de exploração colonial ou neocolonial (...) [2]
Acrescentaríamos: não só com fins de exploração econômica, mas também de dominação política, cultural e étnica.”[3]
Portanto a escola tem por função vedar a expressão direta, em relação à criança negra, do seu mundo e da sua vida. É em redor desta repressão que se organizam todas as práticas pedagógicas, aqui a destacar “de certa forma, o valor próprio da cultura negro-brasileira, a sua real dimensão, e a complexidade e riqueza do processo civilizatório negro”[4].
 
Aniversário do Programa Descolonização e Educação-PRODESE em 2005 no auditório da UNEB
Apresentação do Grupo As Ganhadeiras de Itapuã
A expressão falada da criança negra, é desencadeada muitas vezes no seio de sua família, através da tradição oral comunitária, a partir de  textos e contos que “ são transmitidos e apreendidos lentamente através da convivência e da iniciação ritualística”. Como forma pedagógica específica negra, os textos e contos das comunidades têm uma finalidade e uma função:
(...) antes de serem formas de arte, [os textos] são formas que levam a carga de significar as múltiplas relações do homem com seu meio técnico e ético. Eles ilustram uma maneira pela qual os nagô procuram promover a adaptação ou socialização de seus integrantes, através do aspecto pedagógico, assegurando, assim, uma forma própria de obter a coesão social. Os contos ilustram o acervo de textos místicos, acontecimentos históricos (inclusive os ocorridos na órbita da sociedade global com seus integrantes) que marcados por sua intemporalidade narrativa e sua característica fantástica de representações, reforçam e ensinam os padrões indicativos dos comportamentos necessários à coesão do grupo.[5]
Todo esse acervo de comunicação oral é mutilado pela escola, que lhe nega todo valor e penaliza a criança negra.
Isso significa que se corta sistematicamente apalavra a quem a quiser tomar sem obedecer às leis do texto escrito. Assim, se exige o imobilismo destas crianças, criando-lhes um sentimento de culpa, muitas vezes relacionando o fracasso escolar à própria criança e à sua família. A repressão exercitada por parte da escola sobre a linguagem comunitária e, simultaneamente, da sua representação e forma de vida, leva as crianças negras a recalcarem-se diante dos desafios  e a  viverem-nos como problemas relacionados à sua origem familiar de ancestralidade africana, inculcando um complexo de inferioridade que tende a levá-la anão acreditar em si, no seu jeito de ser e na sua história etnocultural.
 
Intercâmbio entre a Acra e o Grupo Boca em Cena
Samba de Roda envolvendo jovens e crianças
Organizada pelo Estado, esta escola possui uma linguagem que só foi criada para esse fim, configurando-se como verdadeira barreira social. Procura-se domesticar e eliminar valores civilizatórios negros através de um
(...) neologismo aparentemente simples: “civilização”, nascido, curiosamente, apenas na metade do século XVIII simultaneamente na França e Inglaterra, derivado do verbo “civilizar”,[que] se transformaria, em centúria e meia, em arma e em  instrumento ou ideologia de dominação. Dessa arma ou instrumento ou ideologia de dominação surgiria o colonialismo, as guerras colonialistas na África e Ásia, a escravidão de povos inteiros para a exploração econômica e humana. E como atua a violência instrumental da arma ou ideologia? Buscando primeiro, a obnulação da memória e, em seguida, a implantação das próprias formas culturais das potências civilizadoras nos povos submetidos. Não é outra a ação e o efeito da chamada aculturação. (...) O negro foi aculturado dentro de linhas específicas de pressão espiritual. Sua religião e sua cultura, seus valores e sua concepção do mundo foram pulverizados até sua redução a matéria de folclore e antropologia, através da deformação pitoresca do sincretismo.[6]
Através desse supremacismo ariano, que procura suprimir e silenciar a consciência negra, parece-nos que a escola,
(...) seus métodos, os locais, a arrumação do espaço reduzem o aluno à passividade, habituando-o a trabalhar sem prazer(apesar das pretensões de um “ensino vivo” e de algumas tentativas de renovação). O espaço pedagógico é regressivo, mas esta “estrutura” tem um significado mais vasto que a repressão local: o saber imposto “engolido” pelos alunos, “vomitado” nos exames corresponde à divisão do trabalho na sociedade burguesa, serve-lhe portanto de suporte.[7]
Daqui se conclui que
(...) as práticas escolares e seu ritual são um aspecto essencial do processo de inculcação ideológica; deveres, disciplina, castigos e recompensas, atrás de sua aparente função educativa técnica, asseguram a função essencial ainda que oculta de realizar na escola a ideologia burguesa, de submeter a ela todos os indivíduos e neste sentido de representar a seu modo a produção, o direito, o Estado burguês.[8]
Mas a escola é, também, e ao mesmo tempo, um local de lutas, onde emergem constantemente múltiplas forças contraditórias. Trata-se de um terreno de luta entre opressor e oprimido,  onde se defrontam forças progressistas e conservadoras, onde se refletem também a exploração e a luta contra a exploração. “(...) A escola é simultaneamente reprodução das estruturas existentes, correia de transmissão da ideologia oficial, domesticação, mas também ameaça à ordem estabelecida e possibilidade de libertação.”[9]
 Seu papel reprodutor não a aniquila, pelo contrário, indica pistas para o combate que já foi desencadeado e como continua-lo, observando as relações de força, acompanhando o momento histórico, que possibilitará uma instabilidade mais ou menos aberta à nossa ação.
Resta-nos ressaltar a viabilidade, onde a criança negra deixa de ser um corpo estranho, destinada ao fracasso escolar. O Brasil é o segundo país negro do mundo, com mis de 80 milhões de pessoas de ascendência africana. Daí a necessidade de transformar a escola em local de luta, o terreno em que se procurará desenvolver no negro uma auto consciência histórica e política, ou uma comunicação e solidariedade prática com o resto do mundo africano. O papel da escola passa a ser o de oferecer ao negro brasileiro uma fonte de informações para começar a preencher o vazio resultante do isolamento que lhe foi imposto por essas táticas de dominação.

   Nesta perspectiva
(...) Nunca é demasiado destacar o valor e o lugar que a religião ocupa no processo civilizatório negro. A religião se caracteriza como um eixo, um elemento central (...) deste processo. A religião é ponto básico, é fonte de afirmação dos valores civilizatórios negros e núcleo de resistência às variadas formas de aspirações neocolonialistas (...). Em relação ao processo cultural a religião é fonte dinamizadora de um ethos, indicadora de comportamentos e hábitos, enfim de uma maneira negra de ser. Ela estabelece e proporciona uma ética própria. Imprime formas de relações sociais, estipulando formas próprias de organização e hierarquias, estimula a vida comunal. Estabelece padrões estéticos próprios e formas específicas de comunicação e de acesso ao riquíssimo sistema simbólico, pleno de conhecimentos e sabedorias, caracterizando uma pedagogia negra iniciática (...) A religião negra constitui-se num ponto de resistência de luta do homem negro em busca de sua libertação e de real e universal integração.[10]
É importante notar que essa referência civilizatória negra, dispensada pela escola, está comprometida com a verdade e a luta por uma sociedade mais justa, em que se respeite a diversidade cultural. A cultura negra é um dos fatores que pode impedir a escola de pender para a ideologia colonial do supremacismo branco, desde que a pressão e as experiências vividas pelas crianças negras sejam um obstáculo ao disfarce democrático escolar.
Portanto, a cultura negra é o ponto de chegada e de partida, a luta real, possível e necessária no cotidiano escolar. Lutar para desmitificar os conteúdos veiculados na escola, lutar para denunciar e esmagar a segregação no interior da escola, pela conscientização dos agentes pedagógicos sobre a referência histórico-cultural afro-brasileira, pela recuperação da memória   ancestral africana, para minar a ideologia da democracia racial, enfim, para reconstruir a verdadeira história do negro, distorcida pela política de desculturação.
IIº Festival Afrobrasileiro da ACRA 2009
As crianças dramatizando o conto "Itapuã a Canção do Infinito" de autoria de Narcimária Luz sob a coordenação do Professor Sidney Argolo,Professoras Rosângela Accioly e Daniela Cidreira
 

Mas há mais coisas a serem observadas. Não se pode adotar uma postura de consciência  ingênua nessa questão, esquecendo-se de que
(...) a escola é um dos organismos da superestrutura e, como tal, é uma das instâncias onde a prática social global se processa. A prática educativa escolar é portanto, uma das modalidades dessa prática social global e não uma “entidade” à parte desta prática mais ampla, uma entidade que estaria precedendo à prática social como um todo. Se as transformações sociais se dão na prática social global, dão-se em toda e qualquer de suas modalidades, inclusive na prática educativa(...). Por outro lado, é preciso lembrar ainda que o comportamento do indivíduo é determinado pelas múltiplas circunstâncias que constituem a prática social global na qual se encontra. No entanto, não se pode esquecer que essa determinação não é absoluta na formação da consciência do indivíduo. Existe uma relativa autonomia em relação a essa determinação, levando-o a reagir sobre elas. As lutas sociais mostram bem esse fenômeno.[11]
É preciso enfatizar aqui a necessidade de compreender a prática educativa como uma atividade mediadora no seio de uma prática social global. Uma prática educativa que pretenda instrumentar o indivíduo, enquanto ser social, para atuar na circunstância histórico-geográfica na qual está inserido.
 
Espaço da ACRA com grafite feito pelas crianças sob a coordenação do Professor Tácio Vasconcelos
Considerando-se esses aspectos, podemos propor um que fazer pedagógico que proporcione uma educação em que a sistematização do conhecimento nasça da experiência pluricultural da nossa sociedade e permaneça em continuidade com ela. Onde o aluno use a sua experiência pessoal completada, enriquecida com o que aprende.
Assim a escola passará a ser a síntese do patrimônio coletivo pluricultural.
NOTAS:
1 Elisa Larkin Nascimento, Pan-africanismo na América do Sul, Petrópolis, Vozes, 1983, p. 36.
2 Manuel Fraginals apud Marco Aurélio Luz, Cultura negra e ideologia do recalque, Rio de Janeiro, Achiamé, 1983, p. 67.
3 Marco Aurélio luz, op. Cit., p. 67.
4 Idem, ibidem, p. 27.
5 Marco Aurélio Luz, op. cit. pp. 42-43.
6 Elisa Larkin Nascimento, op. cit., p. 13.
7 Henri Lefebrve, “ A Reprodução das Relações Sociais”, s/l. n/d. (mimeo), pp. 58-59.
8 Chistian Baudelot e Roger Establet, L´ecole capitaliste, Paris, Maspéro, p. 59.
9 Georges Snyders, Escola, classe e luta de classes, Morais, Rio de Janeiro, 1981, p. 106.
10 Marco Aurélio Luz, op. cit., p. 38.
11 Betty Oliveira, “A Prática Social Global como Ponto de Partida e de Chegada da Prática Educativa”, Tecnologia educacional, Rio de Janeiro, n. 66-67 nov.-dez. 1985.

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