Por Narcimária Correia do Patrocínio Luz
O objetivo deste trabalho está ancorado numa tentativa preliminar de discussão de algumas ideias acerca do papel da escola numa sociedade eminentemente pluricultural.
Nossa preocupação central está referida à problemática da escola, que se limita a confirmar e a reforçar um habitus da cultura oficial eurocêntrica, provocando a manifestação de um universo pseudoconcreto ou de um simulacro em volta das crianças, representado por temas ideológicos como: democracia racial, bondade da princesa Isabel, as contribuições folclóricas da "raça" negra, a África projetada como primitiva etc.
Tal
discurso não corresponde às reais condições de vida do negro, lhe é
completamente estranho e não pode, portanto, relacionar-se com os seu
interesses, pois não se referem à história das civilizações africanas, aos
valores civilizatórios negros, à beleza negra, aos quilombos, aos grandes
heróis negros e, principalmente, à luta desencadeada pelas comunidades negras
no sentido de reforçar a cultura afro-brasileira. Aliás, essa cultura foi
caracteristicamente violentada, negada, oprimida e desfigurada ao longo dos anos
pelo mercantilismo escravista, pelo racismo e pela política e ideologia do
embranquecimento.
IIº Festival Afrobrasileiro da ACRA 2009
As crianças dramatizando o conto "Itapuã a Canção do Infinito" de autoria de Narcimária Luz sob a coordenação do Professor Sidney Argolo,Professoras Rosângela Accioly e Daniela Cidreira
O
universo escolar parece estranho e alheio aos negros, porque repete, reforça,
prolonga e valoriza as condições do mundo branco.
A
constatação básica da qual parte a nossa crítica é que:
(...) a imagem da África e do
africano promulgada pelas escolas anglo e latino-americanas é uma imagem
grotesca, humilhante, além de falsa, que mina ou impossibilita toda aspiração
da criança negra à realização humana. Na própria África ,essas distorções
prevalecem nos sistemas educativos herdados do colonialismo. Contestar e banir
este sistema de mitos racistas na educação da criança negra, e substituí-lo com
uma afirmação autentica da identidade verdadeira e positiva do africano, é uma
função orgânica e primária da organização política, porque, como um sistema,
ele corrói diretamente o potencial de um povo rumo à realização do seu
protagonismo histórico.[1]
Por
consequência, a escola que se proclama única e democrática constitui-se numa
mistificação; não há qualquer relação entre o que ela afirma fazer e o que
realmente faz;; a sua ideologia democrática é o oposto da sua existência
reprodutiva. A escola consegue dissimular muito bem a função que desempenha.
Trata-se de uma escola montada, maquinada para confortar e fortalecer aqueles
que se submetam à visão eurocêntrica de mundo.
IIº Festival Afrobrasileiro da ACRA 2009
As crianças dramatizando o conto "Itapuã a Canção do Infinito" de autoria de Narcimária Luz sob a coordenação do Professor Sidney Argolo,Professoras Rosângela Accioly e Daniela Cidreira
Tudo
isso mostra que a escola, tal como está construída, é um reflexo da política de
desculturação, entendida como:
(...)
processo consciente mediante o qual, com
fins de exploração econômica, se procede a desagregar a cultura de um grupo,
para facilitar a expropriação de riquezas naturais do território em que está
estabelecido e ou para utilizá-lo como força de trabalho barata não
qualificada. O processo de desculturação é inerente a toda forma de exploração
colonial ou neocolonial (...) [2]
“Acrescentaríamos:
não só com fins de exploração econômica, mas também de dominação política,
cultural e étnica.”[3]
Portanto
a escola tem por função vedar a expressão direta, em relação à criança negra,
do seu mundo e da sua vida. É em redor desta repressão que se organizam todas
as práticas pedagógicas, aqui a destacar “de certa forma, o valor próprio da
cultura negro-brasileira, a sua real dimensão, e a complexidade e riqueza do
processo civilizatório negro”[4].
Aniversário do Programa Descolonização e Educação-PRODESE em 2005 no auditório da UNEB
Apresentação do Grupo As Ganhadeiras de Itapuã
A
expressão falada da criança negra, é desencadeada muitas vezes no seio de sua
família, através da tradição oral comunitária, a partir de textos e contos que “ são transmitidos e
apreendidos lentamente através da convivência e da iniciação ritualística”.
Como forma pedagógica específica negra, os textos e contos das comunidades têm
uma finalidade e uma função:
(...) antes de serem formas de arte, [os textos]
são formas que levam a carga de significar as múltiplas relações do homem com
seu meio técnico e ético. Eles ilustram uma maneira pela qual os nagô procuram
promover a adaptação ou socialização de seus integrantes, através do aspecto
pedagógico, assegurando, assim, uma forma própria de obter a coesão social. Os contos
ilustram o acervo de textos místicos, acontecimentos históricos (inclusive os
ocorridos na órbita da sociedade global com seus integrantes) que marcados por
sua intemporalidade narrativa e sua característica fantástica de
representações, reforçam e ensinam os padrões indicativos dos comportamentos
necessários à coesão do grupo.[5]
Todo
esse acervo de comunicação oral é mutilado pela escola, que lhe nega todo valor
e penaliza a criança negra.
Isso
significa que se corta sistematicamente apalavra a quem a quiser tomar sem
obedecer às leis do texto escrito. Assim, se exige o imobilismo destas
crianças, criando-lhes um sentimento de culpa, muitas vezes relacionando o
fracasso escolar à própria criança e à sua família. A repressão exercitada por
parte da escola sobre a linguagem comunitária e, simultaneamente, da sua
representação e forma de vida, leva as crianças negras a recalcarem-se diante
dos desafios e a viverem-nos como problemas relacionados à sua
origem familiar de ancestralidade africana, inculcando um complexo de
inferioridade que tende a levá-la anão acreditar em si, no seu jeito de ser e
na sua história etnocultural.
Intercâmbio entre a Acra e o Grupo Boca em Cena
Samba de Roda envolvendo jovens e crianças
Organizada
pelo Estado, esta escola possui uma linguagem que só foi criada para esse fim,
configurando-se como verdadeira barreira social. Procura-se domesticar e
eliminar valores civilizatórios negros através de um
(...) neologismo aparentemente
simples: “civilização”, nascido, curiosamente, apenas na metade do século XVIII
simultaneamente na França e Inglaterra, derivado do verbo “civilizar”,[que] se
transformaria, em centúria e meia, em arma e em instrumento ou ideologia de dominação. Dessa
arma ou instrumento ou ideologia de dominação surgiria o colonialismo, as
guerras colonialistas na África e Ásia, a escravidão de povos inteiros para a
exploração econômica e humana. E como atua a violência instrumental da arma ou
ideologia? Buscando primeiro, a obnulação da memória e, em seguida, a
implantação das próprias formas culturais das potências civilizadoras nos povos
submetidos. Não é outra a ação e o efeito da chamada aculturação. (...) O negro
foi aculturado dentro de linhas específicas de pressão espiritual. Sua religião
e sua cultura, seus valores e sua concepção do mundo foram pulverizados até sua
redução a matéria de folclore e antropologia, através da deformação pitoresca
do sincretismo.[6]
Através
desse supremacismo ariano, que procura suprimir e silenciar a consciência
negra, parece-nos que a escola,
(...) seus métodos, os locais, a
arrumação do espaço reduzem o aluno à passividade, habituando-o a trabalhar sem
prazer(apesar das pretensões de um “ensino vivo” e de algumas tentativas de
renovação). O espaço pedagógico é regressivo, mas esta “estrutura” tem um
significado mais vasto que a repressão local: o saber imposto “engolido” pelos
alunos, “vomitado” nos exames corresponde à divisão do trabalho na sociedade
burguesa, serve-lhe portanto de suporte.[7]
Daqui
se conclui que
(...) as práticas escolares e seu
ritual são um aspecto essencial do processo de inculcação ideológica; deveres,
disciplina, castigos e recompensas, atrás de sua aparente função educativa
técnica, asseguram a função essencial ainda que oculta de realizar na escola a
ideologia burguesa, de submeter a ela todos os indivíduos e neste sentido de
representar a seu modo a produção, o direito, o Estado burguês.[8]
Mas
a escola é, também, e ao mesmo tempo, um local de lutas, onde emergem
constantemente múltiplas forças contraditórias. Trata-se de um terreno de luta
entre opressor e oprimido, onde se
defrontam forças progressistas e conservadoras, onde se refletem também a
exploração e a luta contra a exploração. “(...) A escola é simultaneamente
reprodução das estruturas existentes, correia de transmissão da ideologia
oficial, domesticação, mas também ameaça à ordem estabelecida e possibilidade
de libertação.”[9]
Seu papel reprodutor não a aniquila, pelo contrário, indica
pistas para o combate que já foi desencadeado e como continua-lo, observando as
relações de força, acompanhando o momento histórico, que possibilitará uma
instabilidade mais ou menos aberta à nossa ação.
Resta-nos
ressaltar a viabilidade, onde a criança negra deixa de ser um corpo estranho,
destinada ao fracasso escolar. O Brasil é o segundo país negro do mundo, com
mis de 80 milhões de pessoas de ascendência africana. Daí a necessidade de
transformar a escola em local de luta, o terreno em que se procurará
desenvolver no negro uma auto consciência histórica e política, ou uma
comunicação e solidariedade prática com o resto do mundo africano. O papel da
escola passa a ser o de oferecer ao negro brasileiro uma fonte de informações
para começar a preencher o vazio resultante do isolamento que lhe foi imposto
por essas táticas de dominação.
Nesta perspectiva
(...)
Nunca é demasiado destacar o valor e o
lugar que a religião ocupa no processo civilizatório negro. A religião se
caracteriza como um eixo, um elemento central (...) deste processo. A religião
é ponto básico, é fonte de afirmação dos valores civilizatórios negros e núcleo
de resistência às variadas formas de aspirações neocolonialistas (...). Em
relação ao processo cultural a religião é fonte dinamizadora de um ethos, indicadora de comportamentos e hábitos, enfim de uma maneira negra de ser.
Ela estabelece e proporciona uma ética própria. Imprime formas de relações
sociais, estipulando formas próprias de organização e hierarquias, estimula a
vida comunal. Estabelece padrões estéticos próprios e formas específicas de
comunicação e de acesso ao riquíssimo sistema simbólico, pleno de conhecimentos
e sabedorias, caracterizando uma pedagogia negra iniciática (...) A religião
negra constitui-se num ponto de resistência de luta do homem negro em busca de
sua libertação e de real e universal integração.[10]
É
importante notar que essa referência civilizatória negra, dispensada pela
escola, está comprometida com a verdade e a luta por uma sociedade mais justa,
em que se respeite a diversidade cultural. A cultura negra é um dos fatores que
pode impedir a escola de pender para a ideologia colonial do supremacismo
branco, desde que a pressão e as experiências vividas pelas crianças negras
sejam um obstáculo ao disfarce democrático escolar.
Portanto,
a cultura negra é o ponto de chegada e de partida, a luta real, possível e
necessária no cotidiano escolar. Lutar para desmitificar os conteúdos
veiculados na escola, lutar para denunciar e esmagar a segregação no interior
da escola, pela conscientização dos agentes pedagógicos sobre a referência
histórico-cultural afro-brasileira, pela recuperação da memória ancestral africana, para minar a ideologia
da democracia racial, enfim, para reconstruir a verdadeira história do negro,
distorcida pela política de desculturação.
IIº Festival Afrobrasileiro da ACRA 2009
As crianças dramatizando o conto "Itapuã a Canção do Infinito" de autoria de Narcimária Luz sob a coordenação do Professor Sidney Argolo,Professoras Rosângela Accioly e Daniela Cidreira
Mas
há mais coisas a serem observadas. Não se pode adotar uma postura de
consciência ingênua nessa questão,
esquecendo-se de que
(...) a escola é um dos organismos
da superestrutura e, como tal, é uma das instâncias onde a prática social
global se processa. A prática educativa escolar é portanto, uma das modalidades
dessa prática social global e não uma “entidade” à parte desta prática mais
ampla, uma entidade que estaria precedendo à prática social como um todo. Se as
transformações sociais se dão na prática social global, dão-se em toda e
qualquer de suas modalidades, inclusive na prática educativa(...). Por outro
lado, é preciso lembrar ainda que o comportamento do indivíduo é determinado
pelas múltiplas circunstâncias que constituem a prática social global na qual
se encontra. No entanto, não se pode esquecer que essa determinação não é
absoluta na formação da consciência do indivíduo. Existe uma relativa autonomia
em relação a essa determinação, levando-o a reagir sobre elas. As lutas sociais
mostram bem esse fenômeno.[11]
É
preciso enfatizar aqui a necessidade de compreender a prática educativa como
uma atividade mediadora no seio de uma prática social global. Uma prática
educativa que pretenda instrumentar o indivíduo, enquanto ser social, para
atuar na circunstância histórico-geográfica na qual está inserido.
Espaço da ACRA com grafite feito pelas crianças sob a coordenação do Professor Tácio Vasconcelos
Considerando-se
esses aspectos, podemos propor um que fazer pedagógico que proporcione uma
educação em que a sistematização do conhecimento nasça da experiência
pluricultural da nossa sociedade e permaneça em continuidade com ela. Onde o
aluno use a sua experiência pessoal completada, enriquecida com o que aprende.
Assim
a escola passará a ser a síntese do patrimônio coletivo pluricultural.
NOTAS:
1
Elisa Larkin Nascimento, Pan-africanismo
na América do Sul, Petrópolis, Vozes, 1983, p. 36.
2
Manuel Fraginals apud Marco Aurélio
Luz, Cultura negra e ideologia do
recalque, Rio de Janeiro, Achiamé, 1983, p. 67.
3
Marco Aurélio luz, op. Cit., p. 67.
4
Idem, ibidem, p. 27.
5
Marco Aurélio Luz, op. cit. pp.
42-43.
6
Elisa Larkin Nascimento, op. cit., p.
13.
7
Henri Lefebrve, “ A Reprodução das Relações Sociais”, s/l. n/d. (mimeo), pp.
58-59.
8
Chistian Baudelot e Roger Establet, L´ecole
capitaliste, Paris, Maspéro, p. 59.
9
Georges Snyders, Escola, classe e luta de
classes, Morais, Rio de Janeiro, 1981, p. 106.
10
Marco Aurélio Luz, op. cit., p. 38.
11
Betty Oliveira, “A Prática Social Global como Ponto de Partida e de Chegada da
Prática Educativa”, Tecnologia
educacional, Rio de Janeiro, n. 66-67 nov.-dez. 1985.
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