Por Sandra Maria Bispo
A elaboração deste trabalho encontra sua plena concretude no
comportamento, comentário ou mesmo pesquisa em uma casa de tradição religiosa,
cuja relação maior se reflete na integração de seus participantes à vida da
grande sociedade.
Portanto, partindo da perspectiva de preservação, tentamos
traçar um perfil vivencial cotidiano em uma comunidade de “candomblé”, como
núcleo catalisador do espírito de insurgência, da transferência do saber e de
diferentes modos de sobrevivência.
Nessa mesma linha, refletimos sobre o resgate, através da
oralidade, e compreensão da identidade cultural religiosa das pessoas negras
participantes dos terreiros de candomblé na Bahia.
Ao elaborar um trabalho escrito, enfocando algumas reflexões
sobre a história de um terreiro, nossa intenção é que seja uma contribuição
educativa para melhor compreensão de um espaço-axé, considerando sua vinculação
com a sociedade como um todo.
Ilê Nla ni Ilê Axé Oxumarê
Foto disponível no Google
A sedimentação histórica de um terreiro mostra a estrutura
transparente e fixada como marco de força vital há vários séculos. A força do
axé é a referência existente que denota a relação com as verdadeiras raízes
culturais africanas na Bahia.
Isso significa que encontramos os valores culturais não
apenas na arquitetura da casa como em todas as formas de comunicação das
pessoas que convivem e vivenciam o espaço sagrado. E, mais ainda, na
identificação das formas de expressão e símbolos com que, em particular, a
comunidade modela a identidade dos seus membros.
Ressalto que o termo “terreiro” inclui, por força de sua
extensão, o lugar onde vive o povo de orixá e seus parentes, bem como outras
pessoas, se for o caso.
Como participante do terreiro, que é lugar sagrado,
considero todos os elementos que o compõem: o chão, o ar, as árvore, a
comunidade religiosa etc.
É inegável que a ampliação da força da comunidade em um
terreiro tem sua fonte de energia no todo que o compõe, partindo daí
inicialmente como núcleo de insurgência onde se materializa o axé através do
culto religioso.
Salão do Ile Nla
Foto disponível no Google
A ampliação do culto insere a comunidade num conjunto de
relações vitais de educação, cujo desenvolvimento caracteriza a personalidade
dos indivíduos que convivem com a transmissão e preservação dos valores
religiosos. Nesse processo de convivência e transmissão de valores, preparam-se
os indivíduos para o desempenho condigno de papéis sociais e isso ocorre tanto
no solo do culto quanto na organização social da sobrevivência.
O “candomblé”, os Ilê Axé, tem raízes profundas e
ancestrais. Portanto, qualquer mudança referente deverá ser comedida,
observando-se esse aspecto. É uma religião concreta, herança africana, com base
no real, na relação com a natureza. É uma religião viva, cheia de energia. É
força que emana da própria terra e conduz a vida e o destino dos seus filhos.
Possivelmente se fosse feita uma pesquisa de opinião pública
sobre a vida de um terreiro, certamente não faltariam indagações, dúvidas ou
talvez até medo quanto ao assunto. Essas dúvidas, indagações ou medo, por
certo, estariam vinculados ao desconhecimento ou folclorização a que tem sido
exposta a religião afro-brasileira durante todo tempo, gerando uma visão
preconceituosa diante do seu processo de recriação.
A religião dos orixás não é solta no tempo e no espaço. Ela
é expressão concreta da força de um povo, particularmente do “povo de santo”
que, através da crença e resistência, não se deixa dominar nem pelo medo, nem
pelo folclore; ou até mesmo pelas formas repressoras ao culto afro-brasileiro,
considerando sua contextualização histórica.
Foto disponível no Google
Lembrando um pouco a origem histórica da religião
afro-brasileira, revemos a função do catolicismo no Novo Mundo. O catolicismo,
frente à necessidade de possuir novos adeptos.
Que, “em nome de Deus” pudessem garantir a sua soberania e
poder, se implanta como religião obrigatória, proibindo o homem negro e seus
descendentes de praticarem a sua religião de origem, pois o negro representava
a base econômica de toda sociedade, não podendo fugir às normas de controle sociais
estabelecidas.
O grupo católico tem, entre si, as mesmas ideias, encara a
religião afro-brasileira como aquela em que se praticam coisas diferentes, de
forma tal que não conseguem, os católicos, reconhecê-las como prática cultural.
Por outro lado, o grupo de praticantes da religião afro-brasileira sobrevive à
sua maneira, ocupa espaço natural e descobre formas de sobrevivência,
resistindo através dos tempos.
Acreditam em deuses aos quais designam orixás e prestam todo
um ritual de crença, fé e energia vinculado à natureza. Nesse processo a
formação e a prática do indivíduo implicam a consciência do saber, as vantagens
e formas de participação, despertando perspectivas cada vez melhores na sua
interação com o meio ambiente.
A ialorixá ou o babalorixá, em geral exerce o papel de articulador e organizador cultural de fato, pois religião é cultura e, portanto, trabalho e organização.
A ialorixá ou o babalorixá, em geral exerce o papel de articulador e organizador cultural de fato, pois religião é cultura e, portanto, trabalho e organização.
A violência contra a religião afro se concretiza na necessidade
da criação de irmandades negras que acomodariam uma relação onde há
predominância da cultura oficial, que ainda hoje é branca. Assim, associando-se
aos santos da igreja católica, a comunidade de raízes afro- brasileira era
aceita porque a fé cristã constituía uma das condições mais importantes para
que o negro fosse visto como um ser dotado de alma.
Em verdade cada grupo traduzia nos termos de sua própria
cultura o significado dos objetos, cujo sentido original foi forjado na cultura
do povo católico. Vemos assim, a religião afro-brasileira e a religião
católica, oriundas de culturas diferentes, resultando, até certo ponto, em
choque cultural. Vale reafirmar que não houve sincretismo, visto o não
amalgamento entre essas duas religiões.
É evidente que o homem, para sobreviver, antes de mais nada,
precisa utilizar-se da natureza de forma racional, pois precisa comer, beber e
abrigar-se. Por outro lado, forças exteriores e, sobretudo da natureza dominam
a vida cotidiana.
Nesse processo, os homens se agrupam, organizam seu universo, apreendendo e interpretando sua realidade. Particularmente, o negro africano e seus descendentes participantes de um terreiro, organizam-se não somente na sua correlação com o sagrado, como também com o ambiente natural e humano e assim com a ordem cultural e social.
Nesse processo, os homens se agrupam, organizam seu universo, apreendendo e interpretando sua realidade. Particularmente, o negro africano e seus descendentes participantes de um terreiro, organizam-se não somente na sua correlação com o sagrado, como também com o ambiente natural e humano e assim com a ordem cultural e social.
Claro está que, se, por um lado, o homem incorpora a
natureza para sobreviver, esse mesmo homem sente a necessidade de organizar o
mundo a partir de um esquema interpretativo cultural de valores. Desse esquema
emerge o conhecimento enquanto consciência.
O referencial de aprendizagem dos mais velhos dá-se a partir
de sua relação constante com o real, com elementos naturais, como o ferro, as
pedras, ori, o mar, as árvores, a chuva, enfim tudo que emana do natural. Cada
elemento natural corresponderá a um referencial de crença que, como um todo,
possui mecanismos, formas, caminhos e razão, os quais para aqueles que não têm
a vivência e convivência com a realidade processual religiosa, poderão passar
despercebidos ou mesmo gerar toda uma gama de preconceitos decorrentes de
profundas distorções que se perpetuam nas emoções, pensamentos e
representações.
Essas distorções, uma vez que interferem nas emoções,
poderão dar a ideia de medo daquilo que não se conhece, portanto, o medo do
desconhecido o que possivelmente ocorreria em qualquer situação normal.
Apesar
de tais distorções que se perpetuam através de representações negativas e
folclorizadas, a religião afro-brasileira traz em si o seu próprio discurso,
isto é, desfruta de uma linguagem própria para dizer algo de si mesma. Fala por
si através de todo um processo iniciático, toques, cânticos e atitudes,
possuindo autonomia necessária ao traduzir-se por representações e símbolos.
Parece-nos claro que a religião dos orixás distancia-se do
conceito de religião como ópio do povo, por sua natureza construtiva, que
afirma a identidade do indivíduo, ao tempo que organiza o grupo como modelador
dessa identidade. Considerando a possibilidade de aproveitamento da tradição
oral como veículo de transmissão de fundamentos religiosos e da identidade
cultural, presto-me ao testemunho de que, em geral, as comunidades religiosas
afro-brasileiras vêm tentando manter, há anos, a tradição de seu axé com
seriedade e zelo, por isso mesmo, têm merecido o respeito dos adeptos. Vale
ressaltar que os dirigentes das casas religiosas, em geral, exercem o papel de
guardiões dos nossos valores culturais, com autoridade e poder de mantenedores
da religião.
Daí a necessidade de preservação e resgate da memória
sacro-cultural da comunidade de um terreiro, que, além de ser um testemunho
vivo de insurgência e afirmação da identidade cultural afro-brasileira, é,
sobretudo, um monumento histórico e cultural brasileiro e, como tal, deve ser
respeitado e preservado por todos, inclusive pelos órgãos oficiais competentes.
A própria necessidade que o homem tem de organizar-se a
partir de um esquema interpretativo de valores constitui forte razão, segundo
Rubem Alves, em “O Suspiro Dos Oprimidos”, para que os homens criem os
universos simbólicos, a religião, e façam a história.
Na verdade, os universos simbólicos, a religião e a própria
história são expressões do esforço humano no sentido de condicionar a natureza,
o tempo e o espaço em função de si mesmo.
Ao centro a Iya Kekere Sandra Maria Bispo
Foto do acervo de M. A. Luz
No resgate de sua história, o negro afro-brasileiro utiliza
uma linguagem também simbólica, baseada na concepção do homem e do seu papel no
seio do universo, isso na medida em que pleiteia fugir ao estudo
contextualizado. Portanto faz sentido o nosso apoio à afirmação Marco Aurélio
Luz:
A civilização negra se
caracteriza por exprimir uma concepção espiritualista do mundo, onde a
constituição da individualidade, as relações sociais, as relações com a
natureza e o universo estão revestidas de uma dimensão sagrada, acompanham até
mesmo as inúmeras atuações profanas daqueles que vivem este universo cultural,
estejam eles vinculados a esferas políticas, sociais ou econômicas...(LUZ,M.A.Rio de Janeiro:Achiamé,1983,3p.8)
Zelando pela integridade do culto aos orixás, alguns
babalorixás e ialorixás definem seus filhos na sociedade, mantendo a dimensão e
a dinâmica própria das heranças que lhe são conferidas.
Apoiados na herança da oralidade africana funcionam como
conservatório da acumulação cultural, garantindo a fiel transmissão dos fundamentos
da religião, numa linguagem emocional e também reflexiva.
A memória da sociedade é a comunidade viva de gerações
sucessivas, é o que anima o universo humano e religioso na mesma medida. A religião em si, por sua
própria base cultural, às vezes ajuda a explicar, ocultar ou mesmo inculcar de
geração a geração a necessidade da existência de sua ordem.
No Brasil, a similaridade entre os costumes de vários grupos
de nações de origem africana que aqui se encontravam, tem sido mais forte que
as diferenças e esse princípio aponta uma unidade na diversidade.
Digo isso porque, através desse princípio de unidade na
diversidade, tem-se conhecimento de que grupos negros se organizaram fazendo
surgir novos terreiros de “candomblé” a exemplo da casa de Oxumaré, muito
antiga e famosa, cujo patrono é esse orixá, conforme citação de Vasconcelos
Maia em seu livro “ABC do Candomblé”.
Sandra Maria Bispo Iyá Keker nile Axé Oxumarê recebe as homenagens em cerimônia da Assembléia Legislativa.
Foto M. A. Luz
Finalizo lembrando a necessidade da continuidade e
aprofundamento das discussões a respeito da religião afro-brasileira, pela sua
função religiosa, social, política e econômica, reafirmando e divulgando o seu
grande valor, pois: ¨A escrita é uma coisa e o saber, outra. A escrita é a
fotocópia do saber, mas não o saber em si... é herança de tudo aquilo que
nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos
transmitiram¨... (Tierno Bokar).
Texto publicado no livro IDENTIDADE NEGRA E EDUCAÇÃO, ed. Ianamá, 1989, Salvador
Texto publicado no livro IDENTIDADE NEGRA E EDUCAÇÃO, ed. Ianamá, 1989, Salvador
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