domingo, 5 de junho de 2016

MUHAMED ALI, A BORBOLETA E A ABELHA




Por Marco Aurélio Luz

Muhamed Ali é considerado o maior lutador de boxe de todos os tempos por sua eficiência técnica e capaz de Ter conquistado por três vezes o título de campeão mundial. Motivos referentes ao contexto histórico em que se deu sua trajetória motivaram a perda do título fora do ringue por punições e condutas que perturbavam e contestavam as políticas totalizantes do establishment.  De um lado a luta de busca e afirmação da identidade negro-americana e de outro a convocação da guerra do Vietnã que ele não aceitou por motivos éticos e religiosos.
O movimento negro-americano erigiu o islamismo como fator de afirmação identitária, especificamente a facção liderada por Malcom X, e, Cassius Clay aderiu, convertendo-se e renegando esse nome, para ele com as conotações do tempo da escravidão, adotando um novo que conotaria libertação, Muhamed Ali.
Essa conversão com todo o envolvimento de luta ideológica de afirmação da comunidade negro-americano causava lesões e rachaduras ideológicas num sistema anglo-saxônico puritano monogâmico como o da formação social dos EUA.
As conseqüências desta adesão, aos movimentos de afirmação da comunalidade negra, provocavam a reação do establishment.
Mas o que mais ressalta na trajetória de Muhamed Ali, para nós foi à expressão, em sua performance, dos princípios da linguagem da tradição africana, onde o que é útil, bom e eficaz está indissociado ao belo, à expressão estética.
Da arte que magnifica o sagrado das religiões negro-africanas, que tão bem conhecemos, aos seus desdobramentos estéticos a nível profano, como o jazz até a indústria cultural e, portanto aos esportes, enfim a economia e a política do espetáculo, Muhamed Ali foi agente transformador na linguagem de boxe, até então um esporte onde a técnica objetivava basicamente atingir pela força física o nocaute.
Muhamed Ali introduz na luta a dimensão do jogo, do lúdico, e da sedução que tangencia o sagrado, sua dimensão estética. Ele critica lutadores como George Foremann, grandalhão, que visa só a bater e nocautear. Ele diz nas vésperas da luta com Foremann que há muito ele não escuta o anúncio de quarto, quinto, sexto, oitavo, décimo segundo round, e que com ele, irá ouvir. Porque para Muhamed Ali, a luta é jogo, é deleite lúdico e prazer estético.

Por outro lado ele adotou a estratégia característica dos africanos desde o tempo da rainha Ginga, a rainha invisível do Ndongo que na guerra de movimento derrotava os portugueses, e que se irradiou pelos quilombos nas Américas.
Suas esquivas combinadas com seu jogo de pernas, dança, deixavam o adversário socando o vazio. Era o encantamento de beleza da borboleta inatingível. Pela primeira vez que conquistou o título derrotando Sony Lishon, este deslocou o ombro socando o vazio.
Quando se apresentava a ocasião em que o adversário se descuidava pensando estar perseguindo-o vinham então seus golpes fulminantes, cuja continuidade da “jabs” anunciavam. Era a hora da ferroada da abelha.


Era com metáfora poética da borboleta e da abelha que ele resumia seu estilo; beleza, sedução, eficácia e prazer, trabalho socializado e mel.
Sua constante auto-afirmação de que era lindo, podemos interpretar, não se restringia apenas a seu aspecto físico, apesar de estar em evidência o lema “black is beautiful” que marcava o momento de afirmação de auto-estima do movimento negro, mas, sobretudo porque ele se colocava como expressão de uma linguagem em que o belo não se separa da eficiência e se dá de forma contextualizada por ações pertinentes aos fatores da comunidade.
Imagem disponível na Internet

Muhamed Ali e Malcom X
Além de seu estilo, acrescentando ao boxe novos repertórios da linguagem, adornava suas lutas com poemas e aparições dramáticas na mídia, procurando sempre aproveitar para colocar em evidência valores de afirmação da identidade afro-americana.

Suas últimas lutas foram realizadas na África e na Ásia, forçando a mídia americana se deslocar de seu eixo anglo saxônico. Esta alteração é também um índice de que é na expressão de valores das civilizações destes continentes que se alimentou, no que refere ao legado africano dos EUA, para criar sua linguagem, que o colocou no pedestal de maior lutador de boxe de todos os tempos.
Quando enfrentou a “última esperança branca” ele brincou com o lutador, infantilizando-o, como que mostrasse que diante do repertório dos valores culturais milenares africanos a cultura branca anglo-saxônica estava engatinhando em terreno emocional eivado de hipocrisia e prepotência.

Por essa e outras lições, sobretudo de integridade e coerência com seus valores, Muhamed Ali, mais recentemente recebeu o título de Doutor Honoris Causa em Ciências Humanas por uma universidade dos EUA.
O que queremos sublinhar e destacar é que a sabedoria que adquiriu emerge da contextualidade da comunalidade afro-americana, de seu contínuo de valores e linguagem, e que ele soube tão bem compreender expressando-o na metáfora da borboleta e da abelha, como se diz em nagô, odara pupo.

 







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