sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

RETERRITORIALIZANDO CLARÕES A CAPOEIRA SOLO, QUE GERA VIDA, LIBERDADE E DIREITO DE SER




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Por Narcimária Correia do Patrocínio Luz

Todo o pensamento e todas as iniciativas que realizo como intelectual  estão vinculados ao cotidiano e à pulsão de vida que eles apresentam. Aprendi a escutar pacientemente os sinais desse cotidiano, e por meio dele a pensar radicalmente o lugar em que estamos e as raízes que anunciam quem somos. Como costuma dizer meu amigo Muniz Sodré: você só muda ou se transforma a partir do seu lugar, da sua comunidade. Você só se universaliza a partir da sua cidade e de seu país.
Como ser educador sem conhecer a História das civilizações da África, das Américas, do Caribe, da Ásia, da Europa e da Oceania? Que educador pode viver sem conhecer a história das suas origens?




Então, pensar com base em nosso “solo de origem” é primordial!
Faço um convite ao leitor para pensar algumas inquietações que constituem desafios do nosso tempo presente. Para isso, apelo para a filosofia e e para as linguagens da capoeira semântica tupi-guarani, que assume, a partir do século XVI, o repertório de valores e de linguagens da civilização africana. Sim, capoeira! A linguagem criativa do corpo, do jogo, da dramatização da vida, das histórias, narrativas, comunalidades.
Existem várias “explicações” a respeito da origem da capoeira. Gosto de uma em especial, que se refere à semântica tupi-guarani, “Ka puêra”. 
No processo predatório da colonização, no século XVI, as agressões à Mata Atlântica, por meio dos constantes desmatamentos para a plantação de
cana-de-açúcar ou pastos para a criação de gado, esgotava a vida do solo.
Devido a esse desgaste, os colonos buscavam sempre outras terras para continuar exaurindo. Essas terras surradas e abandonadas viravam grandes clarões bem isolados e envoltos pela mata. Depois de certo tempo, nascia nesses clarões um capim fininho e frágil chamado pelo povo tupi-guarani de
“ka puêra”.
Foram nesses clarões que os africanos (re)estabeleciam seus espaços de liberdade e de dignidade, (re)criando condições existenciais possíveis à repressão da ordem escravista.
Os clarões envoltos pela mata eram de difícil acesso para a fiscalização dos capitães do mato, que estavam a serviço da ordem escravista – a qual sempre era desestabilizada diante das estratégias de insurgência permanentes dos africanos vindos de Angola no século XVI. A capoeira foi se (re)territorializando  de modo especial em Salvador e Recôncavo da Bahia. Os clarões, ou as capoeiras, ganharam uma dinâmica existencial singular, pois se organizaram por meio de um traçado urbano eminentemente africano-brasileiro.
A (re)criação da capoeira, nos clarões da mata, significava uma  territorialidade possível, de um corpo livre e de permanente movimento criativo, além de um afirmação da  identidade profunda individual e coletiva. São as capoeiras imantadas pelo universo simbólico das territorialidades negras que desestabilizam o establichement colonial, fomentando insurgências importantes nas Américas e no Caribe.  



Chamo atenção para o fato de que os africanos provenientes do Ndongo, a atual Angola, responsáveis pelas estratégias de (re)territorialização e da  “ka puêra” no século XVI e início do XVII,  carregavam consigo vínculos de sociabilidade importantes, principalmente aqueles cujo repertório comunal vincula-se ao conhecimento  de guerrilhas instituído pela  
Rainha Nzinga, a Rainha Ginga ou Rainha Invisível, como destaca os relatórios  portugueses. Nzinga foi uma rainha, cuja autoridade  envolvia as províncias do Ndongo e Matamba, e hoje representa uma legenda primordial. Daí o termo ginga para se referir ao repertório coreográfico da capoeira.
A capoeira contemporaneamente como uma instituição reconhecidamente secular, inspira-nos a tentar compreender as tensões e os conflitos do nosso cotidiano, principalmente no que se refere às agressões institucionalizadas que fomentam as políticas genocidas e as de abandono a nossa população.
É desagradável reconhecer comportamentos que tendem a reger as instituições jurídico-políticas do nosso país e que estão nas mãos de uma elite dirigente descompromissada com a nossa territorialidade e com a identidade profunda da nossa população. São elites, extensão das relações de prolongação neocolonial, que se mantêm no poder de Estado, agredindo as territorialidades brasileiras, incentivando a política de embranquecimento, estratégia do racismo no Brasil. Infelizmente a Educação é um dos principais alvos dessa ação predatória!
Max Weber criou a expressão “desencantamento do mundo”, referindo-se às tensões e aos conflitos, ao desgaste e à anomia que envolve o nosso tempo. Esse desencantamento do mundo se caracteriza pelo jogo das aparências, geralmente atravessado pelo individualismo: a onipotência narcísica de lidar com a existência, a capacidade de acumular bens, TER em detrimento de SER.
Nessa perspectiva, “time is money”, o tempo é dinheiro, trabalho é dinheiro, vida é dinheiro, e é esse valor que irá mover políticas perversas de prolongação neocolonial sobre povos e territórios.
Professor Narciso José do Patrocínio, personalidade muito conhecida na  história da Educação na Bahia  costuma dizer:
“Acredito em Educação como um caminho valioso para superarmos as desigualdades sociais, a desesperança que toma o planeta... A Educação para mim é uma forma de aplacarmos o ponto de interrogação que temos sobre o futuro. Estamos vivendo em uma sociedade que valoriza o ter mais que o ser... O dinheiro é a máxima da vida agora, e esse valor coloca a vida por um fio... Aprendam uma coisa: todas as questões e angústias humanas precisam ser compreendidas a partir do tempo, esse princípio fundador que nos ajuda a pensar o passado o presente e o futuro.”
Daí, sair da angústia de fato e buscar a utopia que nos permite respirar vida, mesmo em uma atmosfera de vulnerabilidade.
Pensar o imaginário do século XXI é reconhecer a urgência da proposição de uma ética da coexistência entre os povos, e isso exigirá, como afirma Marco Aurélio Luz: “(...) assumir a riqueza da humanidade que é a sua diversidade e multiplicidade de formas de sociabilidade, significa abandonar a ética de subjugação e imposição de uma univocidade de ser, procurando esvaziar a identidade do outro. Implica, por outro lado, na aceitação da alteridade própria, como sendo capaz de engendrar uma ética que proporcione novas formas de negociação dos problemas emergentes em determinados contextos sociais. Essa é, para nós, a possibilidade real de uma nova ordem nacional e mundial, mais equilibrada e harmônica. E não esqueçamos: “Para além da diversidade, todo sangue é vermelho”.




Desse modo, temos assistido formas de insurgências contemporâneas, desdobramentos das capoeiragens dos nossos ancestrais, como as recentes ocupações das escolas em todo o Brasil, por alunos, pais e comunidades, devido ao total abandono e sucateamento que esses espaços públicos de educação há muito vêm sofrendo.
Vejam que não estamos no século XVI, não estamos falando do ciclo da
cana-de-açucar ou da criação de gado voltado para a acumulação de capital, levando o solo à exaustão e explorando o trabalho forçado de africanos. Não! Estamos nos referindo ao fato de crianças, jovens e adultos se sentirem agredidos cotidianamente quando não encontram as condições mínimas e necessárias para terem direito a uma educação de qualidade.
Apelando para a metáfora da capoeira, percebo que as escolas públicas e universidades se tornaram solos esgotados, doentes e sem vida! O establishment usa esses espaços na lógica de uma geografia civilizatória anglo-saxônica, que organiza a arquitetura, as metanarrativas do currículo geralmente racista, patriarcal, homofóbico, eivado de intolerância religiosa.
A dinâmica institucional que se impõe tem uma estrutura e organização que não reconhece as linguagens e os valores civilizatórios que imantam as territorialidades em que essas escolas e universidades são implantadas. A população não se identifica e nem se encontra representada nessas instituições.
O jeito é reterritorializar as escolas e universidades, que agora se constituem como clarões, uma boa capoeira que forma uma roda de alunos, pais, professores e toda a comunidade, recriando com altivez uma  nova forma de pensar e fazer educação.
 Estamos nos referindo a uma alusão simbólica e política da capoeira, que carrega a imponência e a altivez característica da nossa população, a qual não abre mão do direito à sua alteridade civilizatória.
Assim, destaco dois documentos fundamentais que estabelecem políticas públicas as quais podem servir como polos de reflexão para as nossas capoeiras.
O primeiro foi elaborado no âmbito do Congresso Internacional de Cultura e Desenvolvimento em Havana, em junho de 2001 e investe na noção de desenvolvimento, que nos é tão caro contemporaneamente.
“[...] o desenvolvimento supõe a capacidade de cada povo para informar-se, aprender e comunicar suas experiências; um número cada vez maior de mulheres e homens deseja um mundo melhor, perseguindo não apenas a satisfação das necessidades fundamentais, mas a possibilidade de convivência solidária com todos os povos. Seu objetivo não é a produção, a ganância, o consumo, mas a plena realização individual, coletiva e a preservação da natureza; toda política cultural deve resgatar o sentido profundo e humano do desenvolvimento, requerendo novos modelos no âmbito da cultura e da educação; o desenvolvimento equilibrado deve integrar os fatores culturais e as estratégias para alcançá-lo em consequência, tais estratégias deverão levar sempre em conta a dimensão histórica, social e cultural de cada sociedade.”
Então, a noção de desenvolvimento deve ser reconsiderada para a expansão da vida no século XXI!
O outro documento mais recente é a Declaração de Incheon, na Coreia do Sul, com orientações legais de políticas para a educação, mobilizando todos os países para o período de 2016 a 2030. Nesse se afirma: o direito à vida, à saúde, à educação; o direito de brincar, à vida familiar, à proteção contra a violência,  a discriminação, o racismo, a homofobia, a intolerância religiosa e, ainda, a preocupação de formar gerações que contribuam para o desarmamento nuclear.
O imaginário do século XXI está em cada um de nós!
Insistindo: é preciso dar valor às nossas territorialidades, ao povo que nela vive. É necessário aprendermos a recorrer a esses arquivos vivos de sabedoria e memória para falarmos a respeito do nosso solo de origem, sobre quem nós somos e o impacto desses valores para as gerações sucessoras.
Encerro com uma legenda da capoeira angola por meio da metáfora do Mestre João Grande:
“Sou como fruta madura que cai lentamente. Procuro terra fértil para me transformar em semente e virar fruta novamente.”
Essa é a manha, a ginga de um bom capoeira! A ideia é exatamente essa! Cair no mato! Identificar os clarões para reterritorializá-los com os valores e as linguagens que devolvem à nossa população a dignidade de  SER e VIVER, o direito à alteridade civilizatória.
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