http://www.sodetox.com.br/wp-content/uploads/2016/02/capoeira.jpg
Por
Narcimária Correia do Patrocínio Luz
Todo o pensamento e todas as iniciativas
que realizo como intelectual estão vinculados
ao cotidiano e à pulsão de vida que eles apresentam. Aprendi a escutar
pacientemente os sinais desse cotidiano, e por meio dele a pensar radicalmente
o lugar em que estamos e as raízes que anunciam quem somos. Como costuma dizer
meu amigo Muniz Sodré: você só muda ou se transforma a partir do seu lugar, da
sua comunidade. Você só se universaliza a partir da sua cidade e de seu país.
Como ser educador sem conhecer a
História das civilizações da África, das Américas, do Caribe, da Ásia, da Europa
e da Oceania? Que educador pode viver sem conhecer a história das suas origens?
Então, pensar com base em nosso “solo
de origem” é primordial!
Faço um convite ao leitor para pensar
algumas inquietações que constituem desafios do nosso tempo presente. Para isso,
apelo para a filosofia e e para as linguagens da capoeira semântica tupi-guarani,
que assume, a partir do século XVI, o repertório de valores e de linguagens da
civilização africana. Sim, capoeira! A linguagem criativa do corpo, do jogo, da
dramatização da vida, das histórias, narrativas, comunalidades.
Existem várias “explicações” a respeito
da origem da capoeira. Gosto de uma em especial, que se refere à semântica
tupi-guarani, “Ka puêra”.
No processo predatório da colonização,
no século XVI, as agressões à Mata Atlântica, por meio dos constantes
desmatamentos para a plantação de
cana-de-açúcar ou pastos para a criação de gado, esgotava a vida do solo.
Devido a esse desgaste, os colonos
buscavam sempre outras terras para continuar exaurindo. Essas terras surradas e
abandonadas viravam grandes clarões bem isolados e envoltos pela mata. Depois de certo
tempo, nascia nesses
clarões um capim fininho e frágil chamado pelo povo tupi-guarani de
“ka puêra”. Foram nesses clarões
que os africanos (re)estabeleciam seus espaços de liberdade e de dignidade,
(re)criando condições existenciais possíveis à repressão da ordem escravista.
Os clarões envoltos pela mata eram de
difícil acesso para a fiscalização dos capitães do mato, que estavam a serviço
da ordem escravista – a qual sempre era desestabilizada diante das estratégias
de insurgência permanentes dos africanos vindos de Angola no século XVI. A
capoeira foi se (re)territorializando de
modo especial em Salvador e Recôncavo da Bahia. Os clarões, ou as capoeiras,
ganharam uma dinâmica existencial singular, pois se organizaram por meio de um traçado urbano eminentemente
africano-brasileiro.
A (re)criação da capoeira, nos clarões
da mata, significava uma territorialidade possível, de um corpo livre e
de permanente movimento criativo, além de um afirmação da identidade
profunda individual e coletiva. São as capoeiras imantadas pelo universo
simbólico das territorialidades negras que desestabilizam o establichement colonial, fomentando
insurgências importantes nas Américas e no Caribe.
Chamo atenção para o fato de que os
africanos provenientes do Ndongo, a atual Angola, responsáveis pelas
estratégias de (re)territorialização e da
“ka puêra” no século XVI e início do XVII, carregavam consigo vínculos de sociabilidade
importantes, principalmente aqueles cujo repertório comunal vincula-se ao
conhecimento de guerrilhas instituído
pela
Rainha Nzinga, a Rainha Ginga ou
Rainha Invisível, como destaca os relatórios
portugueses. Nzinga foi uma rainha, cuja autoridade envolvia as províncias do Ndongo e Matamba, e
hoje representa uma legenda primordial. Daí o termo ginga para se referir ao
repertório coreográfico da capoeira.
A capoeira contemporaneamente como uma
instituição reconhecidamente secular, inspira-nos a tentar compreender as
tensões e os conflitos do nosso cotidiano, principalmente no que se refere às
agressões institucionalizadas que fomentam as políticas genocidas e as de
abandono a nossa população.
É desagradável reconhecer
comportamentos que tendem a reger as instituições jurídico-políticas do nosso
país e que estão nas mãos de uma elite dirigente descompromissada com a nossa
territorialidade e com a identidade profunda da nossa população. São elites,
extensão das relações de prolongação neocolonial, que se mantêm no poder de
Estado, agredindo as territorialidades brasileiras, incentivando a política de embranquecimento,
estratégia do racismo no Brasil. Infelizmente a Educação é um dos principais
alvos dessa ação predatória!
Max Weber criou a expressão
“desencantamento do mundo”, referindo-se às tensões e aos conflitos, ao
desgaste e à anomia que envolve o nosso tempo. Esse desencantamento do mundo se
caracteriza pelo jogo das aparências, geralmente atravessado pelo individualismo:
a onipotência narcísica de lidar com a existência, a capacidade de acumular
bens, TER em detrimento de SER.
Nessa perspectiva, “time is money”, o
tempo é dinheiro, trabalho é dinheiro, vida é dinheiro, e é esse valor que irá
mover políticas perversas de prolongação neocolonial sobre povos e territórios.
Professor Narciso José do Patrocínio,
personalidade muito conhecida na
história da Educação na Bahia
costuma dizer:
“Acredito em Educação como um caminho
valioso para superarmos as desigualdades sociais, a desesperança que toma o
planeta... A Educação para mim é uma forma de aplacarmos o ponto de
interrogação que temos sobre o futuro. Estamos vivendo em uma sociedade que
valoriza o ter mais que o ser... O dinheiro é a máxima da vida agora, e esse valor
coloca a vida por um fio... Aprendam uma coisa: todas as questões e angústias
humanas precisam ser compreendidas a partir do tempo, esse princípio fundador
que nos ajuda a pensar o passado o presente e o futuro.”
Daí, sair da angústia de fato e buscar
a utopia que nos permite respirar vida, mesmo em uma atmosfera de
vulnerabilidade.
Pensar o imaginário do século XXI é
reconhecer a urgência da proposição de uma ética da coexistência entre os povos,
e isso exigirá, como afirma Marco Aurélio Luz: “(...) assumir a riqueza da
humanidade que é a sua diversidade e multiplicidade de formas de sociabilidade,
significa abandonar a ética de subjugação e imposição de uma univocidade de
ser, procurando esvaziar a identidade do outro. Implica, por outro lado, na
aceitação da alteridade própria, como sendo capaz de engendrar uma ética que
proporcione novas formas de negociação dos problemas emergentes em determinados
contextos sociais. Essa é, para nós, a possibilidade real de uma nova ordem
nacional e mundial, mais equilibrada e harmônica. E não esqueçamos: “Para além
da diversidade, todo sangue é vermelho”.
Desse modo, temos assistido formas de
insurgências contemporâneas, desdobramentos das capoeiragens dos nossos
ancestrais, como as recentes ocupações das escolas em todo o Brasil, por alunos,
pais e comunidades, devido ao total abandono e sucateamento que esses espaços
públicos de educação há muito vêm sofrendo.
Vejam que não estamos no século XVI,
não estamos falando do ciclo da
cana-de-açucar ou da criação de gado voltado para a acumulação de capital, levando
o solo à exaustão e explorando o trabalho forçado de africanos. Não! Estamos
nos referindo ao fato de crianças, jovens e adultos se sentirem agredidos
cotidianamente quando não encontram as condições mínimas e necessárias para terem
direito a uma educação de qualidade.
Apelando para a metáfora da capoeira, percebo
que as escolas públicas e universidades se tornaram solos esgotados, doentes e
sem vida! O establishment usa esses
espaços na lógica de uma geografia civilizatória anglo-saxônica, que organiza a
arquitetura, as metanarrativas do currículo geralmente racista, patriarcal, homofóbico,
eivado de intolerância religiosa.
A dinâmica institucional que se impõe
tem uma estrutura e organização que não reconhece as linguagens e os valores civilizatórios
que imantam as territorialidades em que essas escolas e universidades são
implantadas. A população não se identifica e nem se encontra representada
nessas instituições.
O jeito é reterritorializar as escolas
e universidades, que agora se constituem como clarões, uma boa capoeira que
forma uma roda de alunos, pais, professores e toda a comunidade, recriando com
altivez uma nova forma de pensar e fazer
educação.
Estamos
nos referindo a uma alusão simbólica e política da capoeira, que carrega a
imponência e a altivez característica da nossa população, a qual não abre mão
do direito à sua alteridade civilizatória.
Assim, destaco dois documentos
fundamentais que estabelecem políticas públicas as quais podem servir como polos
de reflexão para as nossas capoeiras.
O primeiro foi elaborado no âmbito do
Congresso Internacional de Cultura e Desenvolvimento em Havana, em junho de 2001
e investe na noção de desenvolvimento, que nos é tão caro contemporaneamente.
“[...] o desenvolvimento supõe a
capacidade de cada povo para informar-se, aprender e comunicar suas
experiências; um número cada vez maior de mulheres e homens deseja um mundo
melhor, perseguindo não apenas a satisfação das necessidades fundamentais, mas
a possibilidade de convivência solidária com todos os povos. Seu objetivo não é
a produção, a ganância, o consumo, mas a plena realização individual, coletiva
e a preservação da natureza; toda política cultural deve resgatar o sentido
profundo e humano do desenvolvimento, requerendo novos modelos no âmbito da
cultura e da educação; o desenvolvimento equilibrado deve integrar os fatores culturais
e as estratégias para alcançá-lo em consequência, tais estratégias deverão
levar sempre em conta a dimensão histórica, social e cultural de cada
sociedade.”
Então, a noção de desenvolvimento deve
ser reconsiderada para a expansão da vida no século XXI!
O outro documento mais recente é a Declaração
de Incheon, na Coreia do Sul, com orientações legais de políticas para a
educação, mobilizando todos os países para o período de 2016 a 2030. Nesse se afirma:
o direito à vida, à saúde, à educação; o direito de brincar, à vida familiar, à
proteção contra a violência, a discriminação,
o racismo, a homofobia, a intolerância religiosa e, ainda, a preocupação de
formar gerações que contribuam para o desarmamento nuclear.
O imaginário do século XXI está em cada
um de nós!
Insistindo: é preciso dar valor às nossas
territorialidades, ao povo que nela vive. É necessário aprendermos a recorrer a
esses arquivos vivos de sabedoria e memória para falarmos a respeito do nosso
solo de origem, sobre quem nós somos e o impacto desses valores para as
gerações sucessoras.
Encerro com uma legenda da capoeira
angola por meio da metáfora do Mestre João Grande:
“Sou como fruta madura que cai
lentamente. Procuro terra fértil para me transformar em semente e virar fruta
novamente.”
Essa é a manha, a ginga de um bom
capoeira! A ideia é exatamente essa! Cair no mato! Identificar os clarões para
reterritorializá-los com os valores e as linguagens que devolvem à nossa
população a dignidade de SER e VIVER, o
direito à alteridade civilizatória.
*******************
Nenhum comentário:
Postar um comentário