Por Marco Aurélio Luz
No
momento que se realiza a ECO Rio 92, e se mobiliza de forma inusitada
tantos representantes de povos, nações e governos de diferentes partes
do mundo, somos motivados a refletir sobre as origens de um processo, em
que estamos todos inseridos, e que ora culmina na necessidade de uma reunião
de tal porte para se pensar: “Como salvar o planeta!?”
Salvar,
porque há ameaças para a vida humana, cessadas as fontes de suprimento
das necessidades dessa espécie, por conta do desgaste do ecossistema
do qual faz parte, principalmente os povos do hemisfério norte, hoje
praticamente dependentes do que permanece no hemisfério sul.
Procuraremos
responder, sumariamente, ao porque chegamos a esse ponto
indagando sobre as origens, isto é, os pontos de ancoragem epistêmica em
que se fundam as civilizações, de onde se desdobram os valores pelos quais
se
organizam, produzem e agem em todos os sentidos aqueles que as integram.
Tentaremos
ilustrar com alguns mitos fundamentais, os paradigmas de formas
de vida estabelecidos nas civilizações que constituíram nossa nacionalidade,
ou seja, as ameríndias ou aborígenes, as europeias e as africanas.
Começaremos
a nossa abordagem pela mais nova e terminaremos com as mais antigas.
A
arkhé, ou ponto de ancoragem da civilização europeia, se concentra nos
princípios originários das culturas greco-romana e judaica.
Tomaremos
como referência a ideia de um movimento pendular desta civilização
onde, de um lado, situam-se princípios prometeicos, e de outro lado,
dionisíacos. Os primeiros se desdobram do mito trágico de Prometeu, que
roubou o fogo de Zeus, e entregou aos homens, pagando por isto o castigo
de
ficar acorrentado nos penhascos, entregue a sanha dos abutres.
Como
narra o mito, é dessa forma que o fogo vem parar na mão dos homens
nas elaborações da cultura europeia. Um poder divino usurpado, que
promove o conhecimento e o desenvolvimento tecnológico, e que envolve uma
forma determinada de organização social, voltada para sua promoção.
Por
outro lado, os princípios dionisíacos estão assentados sobretudo na comunhão
ou reunião da polis, para compartilhar sentimentos e paixões características
ao culto à fertilidade da mãe terra, pródiga e misteriosa natureza, que
aplaca a angústia existencial num estar junto comunal, segundo alguns sociólogos,
origem da sociabilidade.
O
Renascimento marcará a predominância pendular dos princípios prometeicos,
ajustando princípios judaicos e cristãos às inspirações imperiais romanas,
promovendo novo ciclo de conquista de territórios e povos para além
do continente europeu em busca do “caminho das índias”, alcançando a
extensão litorânea dos continentes africano, americano e asiático.
O
livro do Gênesis 1, 28, 29, base da cultura judaica, erige referências em
relação à natureza ajustada ao impulso prometeico... crescei
e multiplicai-vos, e enchei a Terra, e tende-a sujeita a vós, e dominai sobre
os peixes do mar, sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se
movem sobre a terra. Disse-lhes também Deus: Eis, aí vos dei eu todas as
ervas, que dão as suas sementes sobre a terra; e todas as árvores, que têm
suas sementes em si mesmas... para vos servirem de sustento a vós...
Consequentemente,
vive-se um sistema de vida em que se pode dizer, segundo José Carlos
Rodrigues[2],
que “200 milhões de americanos consomem e poluem mais do que o fariam
5 bilhões de índios.”
New York city
Imagem disponível na Internet
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O
princípio prometeico se combinou não só com a ideia de “povo eleito por
Deus” do judaísmo, mas também com os valores ascéticos da noção de pecado
incorporado pelo cristianismo, a sua vocação catequética e evangélica; a
percepção do outro como “pagão” portador do pecado original a ser convertido.
Portanto, a negação do direito à alteridade própria.
A
predominância de princípios prometeicos sustentou a tensão de repressão
às pulsões dionisíacas, aos princípios femininos envolventes do mistério
da mãe terra; e, por outro lado, estimularam a vocação patriarcal, fálica,
conquistadora e avassaladora que caracteriza a bacia semântica dos valores
de organização social da modernidade.
A
chamada “era dos descobrimentos” está assentada nesses princípios. O
estímulo ao desenvolvimento científico-técnico-militar proporcionava as grandes
navegações que deram início ao processo de acumulação de poder e riqueza
à Europa. Onde houvessem territórios ocupados por “pagãos”, a igreja católica
asseguravas aos cristãos a legitimidade de sua ocupação bélica, garantia
de
exploração de trabalho e das riquezas naturais.
São Paulo e os automóveis
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O
que se segue nesses quase quinhentos anos de predomínio dos princípios
prometeicos, e chega até os nossos dias, é o mercantilismo, o colonialismo,
o tráfico escravagista e a escravidão, a exploração exaustiva e poluição
da natureza, o imperialismo, guerras e genocídios...
Bomba atômica sobre o Japão, IIª guerra mundial
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Tudo
isso está representado condensadamente pela acumulação de capital
ou dinheiro, forma abstrata de valor que caracteriza o poder hegemônico daquelas
nações que impulsionam este processo derivado dos princípios prometeicos
que englobam também a bacia semântica dos positivismos.
São Paulo Rio Tietê poluído
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Mas
deixemos nossa herança europeia que sustenta as bases do paradigma
prometeico-positivista do Estado brasileiro, “ordem e progresso”, e passemos
a nossa herança aborígine.
Bahia caboclo da independência,o dono da terra.
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Um
mito de vários povos, especificamente os Nambikwara, narra como o
fogo foi parar nas mãos da humanidade.Imagem disponível na Internet
Povo Nambikwara
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O
tio levou o sobrinho pela primeira vez à floresta para caçar. Logo, ele avistou
no alto de uma rocha um ninho de araras. Colocou um tronco encostado
na pedra e falou para o sobrinho subir e lançar lhe os ovos.
Chegando
no
ninho, o sobrinho teve dó dos filhotes e se negou a fazer o que o tio pedia.
Este,
depois de insistir um pouco se aborreceu, e tirando o tronco deixou o sobrinho
pra lá. Foi então que apareceu a arara, vendo o menino perto do ninho
não gostou, protestou, fazendo cocô em cima dele e causando tanto alvoroço
que chamou a atenção da onça que por ali passava. Esta, vendo o menino
naquela situação resolveu ajudá-lo, colocando o tronco, para que descesse
e levou-o para sua casa. Lá chegando, preveniu-o do mal humor da sogra
e deu-lhe o arco e a flecha para se defender e foi-se mata a dentro.
O
menino
viu a sogra da onça comendo um moqueado de carne. Depois que ela comeu,
ele que estava com fome, resolveu se servir da carne que já estava muito
assada e na sua boca fazia nhec, nhec, o que irritou a onça. Ela começou
a
rosnar mostrando os dentes.
Foi
então que ele lançou uma flecha e fugiu levando um tição com fogo. Caminhou,
caminhou, até que se deparou com a aldeia. Surpreendidos com o fogo, os
guerreiros lhe indagaram, e cientes de tudo foram até a toca da
onça, onde pegaram todo o fogo, passando de uns pros outros, de mão
em mão, trazendo para a aldeia.
Uma
pequena brasa que restou o sapo cuspiu e apagou, de modo que
foi
assim que, só a humanidade detém o uso do fogo.[3]
Crianças aborígines
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Meditando
sobre a história, a antropologia nos indica ser uma representação
e elaboração dos limites entre sociedade e natureza, envolvendo o
processo de iniciação-socialização, que faz do menino um adulto, diferenciando-se
da natureza, integrando-se às regras de cooperação e convivência social.
Xingu
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Povo Matipu
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Moitará
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Povo Matipu
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Moitará
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Mas
o que desejo ressaltar é que o fogo, neste contexto, pode representar a
pulsão da sociabilidade, o estar junto em volta da fogueira compartilhando
sabedoria
e emoções, a harmonização de convivência social humana, e a diferença
da espécie, o cru e o cozido...
Guerreiros Kalapalo
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Esta
satisfação comunal está distante dos valores individuais da mítica do
self made man, dos heróis à Marco Polo que caracterizam o ideal de ego prometeico
do processo civilizatório europeu, da mítica tecnológica, em que um
pode destruir milhares, como o piloto que lançou a bomba atômica em Hiroxima...
Hiroxima durante a IIª guerra mundial
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Mas
avancemos em torno de outra herança, a dos povos africanos que para
aqui vieram trazidos pelo tráfico escravagista, principal fator econômico
do
mercantilismo das Companhias das índias.
Um
ditado nagô afirma: “Kosi ewe, Kosi orixá”, sem folhas não há
orixá,
não há existência. O conto “Odé e os Orixá do Mato”[4]
narrado em livro por Mestre Didi, Alapini, adaptado por ele
para um auto coreográfico, se tornou a peça principal da
experiência de educação pluricultural da Sociedade de Estudo da Cultura Negra
no Brasil – SECNEB, denominada Mini Comunidade Oba-Biyi.
Festival da Mini Comunidade Oba Biyi. Odé e os Orixá do Mato, de Mestre Didi.
Bahia, 1980.
Foto M. A. Luz
O
conto narra que uma vez um famoso caçador, possuidor de poderes extraordinários,
certo dia não conseguiu um só bicho. Pior é que nos dias que se
seguiram também, até que seus suprimentos acabaram e ele teve que retornar
da
mata.
Então
ele foi direto consultar o babalawô – pai do mistério – para saber o
que se passava na floresta. Cabia então ele oferecer aos pés de Iroko,
Gameleira Soube que a razão de tudo era que havia muito tempo que
ele nada sagrada, uma oferenda de fumo, aguardente e mel, e pedir
ao orixá sua proteção para devolver-lhe seus poderes.
Depois
de ter pago ao babalawô e feito as oferendas prescritas ao pé de Iroko,
logo apareceram vários bichos a sua volta. O caçador se pôs a caçá-los, e
eufórico foi matando a todos que apareciam, arrastando-os para uma choupana
improvisada.
Exausto
e com fome, escolheu uma ave abatida para assar. Foi quando, de
repente, apareceu um pinto molhado.
O
caçador ficou perplexo e assustado quando o viu, e mais ainda quando ouviu
uma voz saindo do fundo da mata:
Estevão,
Estevão...
O
pinto respondia:
–
Oi, home.
–
Venha e traga os outros.
– E
ele também?
–
Ele deixa pra depois.
Em
seguida, ele foi chamando um por um a todos os bichos, que seguindo o
pinto se adentraram pela mata.
O
caçador, apavorado, pegou o que lhe restava, a ave assada e seus pertences,
dizendo que jamais voltaria à mata, e foi para a cidade.
Mitos
milenares da tradição africana no Brasil nos alertam o que pode acontecer
com o abuso dos poderes. O mistério que envolve a existência, a restituição,
a renovação, a continuidade e expansão.
Pedra de Xangô
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O mistério que envolve a existência, a restituição, a renovação, a continuidade e expansão.
Oferenda ao orixá Oxum.
Pintura de Januz, Januária Avelina Correia do Patrocínio.
Foto M.A. Luz
Na
origem de sua denominação, nosso país é concebido como Santa Cruz
e logo Brasil, demonstrando que os valores do mercantilismo se
sobrepuseram aos religiosos que legitimaram a conquista europeia pelo Papa.
No
contexto mercantilista, o pau-brasil, matéria-prima para manufatura europeia,
hoje está praticamente extinto.
Árvore Pau Brasil
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Será
essa, inexoravelmente, nossa vocação. Território de exploração de matéria-prima
para enriquecimento dos europeus na Europa ou nas Américas, em
detrimento de sua própria população; país que não cessa de exportar o que
tem progressivamente.
E, os europeus agora começam a se perguntar, e se extinguir-se
essa fonte de alimento e energia, como ocorreu com o pau-brasil, e
pior, com a biodiversidade em seus próprios territórios?!
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Desmatamento na Amazônia
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Estará
na hora de refletirmos sobre a adequação do nome Brasil, resultante
do paradigma mercantilista positivista dos tempos modernos, agora em
crise, no alvorecer pós-moderno das preocupações ecológicas, tendências dionisíacas!?
Poderíamos
então sugerir Pindorama, a terra das Palmeiras, como denominaram
aqueles que aqui estavam quando da chegada dos europeus.
Ou
ainda Ilê Axé, terra de axé, de dinamização dos princípios cósmicos que regem
o universo, característico dos valores de nossa herança africana.
Opo Baba Nla Wa
Bahia, monumento em homenagem à ancestralidade africana de Mestre Didi Asipa Alapini
Foto M.A. Luz
Ou ainda
numa homenagem aos princípios o universo e aos povos fundadores do território,
simplesmente Amazônia, você sugere, você decide...
Cacique Raoni
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[1]
Ensaio publicado no Caderno
Cultural do Jornal A Tarde, 1992.Publicado também no livro Cultura Negra em
Tempos Pós-Modernos.Salvador:EDUFBA, 3ª edição 2008.Vale ressaltar que este ensaio inspirou a concepção do Programa Descolonização e Educação e seus desdobramentos
institucionais na Graduação,Pós-graduação,atividades de pesquisa e extensão da Universidade do Estado da
Bahia-Uneb.
[2] Rodrigues, José Carlos. O Tabu da
Morte, Achiamé, Rio de Janeiro, 1983, p. 247.
[3] Cf. Melatti, Júlio César, in Mito e
Linguagem Social, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1970.
[4] Cf. Santos, M. Deoscoredes, Mestre
Didi, in Identidade Negra e Educação, Ianamá, Salvador, 1989
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