Por Daniela Cidreira
A importância da introdução da História da África no currículo nacional reside no fato principal da relevante presença das raízes africanas na formação da nossa nação e da valorização da ascendência de mais da metade do povo brasileiro. A narrativa histórica sobre a África pré-colonial vai resultar na informação sobre um povo que teve sua história negada, permitindo a jovens e crianças desenvolverem uma capacidade crítica e reflexiva quanto à sua própria condição de descendente de africano.
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A Lei 10.639/03 e a 11.465/08 são resultado de uma luta histórica. Várias gerações de povos indígenas e afrobrasileiros vêm combatendo o recalque à alteridade própria de seus povos, bem como outros segmentos da sociedade que combatem a discriminação em vários âmbitos, reconhecem que tais práticas são frutos, muitas vezes, do desconhecimento.
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Por isso é imprescindível tornar possível por meio de ações e políticas educacionais, o conhecimento da história e da compreensão de sua cultura.
Ao se propor uma mudança curricular dessa dimensão, a meta, que envolve a história e a valorização de um povo, é justamente integrar este povo que vive à margem das políticas educacionais e dos currículos práticos ou vive das marcas de um passado ainda não revelado e valorizado para os seus descendentes. Por isso, essas proposições jurídicas se impõem como um grande desafio para o educador contemporâneo, que assume a responsabilidade também de transformar a realidade da pedagogia racista e do recalque, pensando em estratégias mais profícuas que integrem essas histórias e perspectivas de mundo nos currículos escolares.
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O projeto Dayó: compartilhando a alegria socioexistencial em comunalidades africano-brasileiras nos aproximou da Associação Crianças Raízes do Abaeté – ACRA localizada no bairro de Itapuã em Salvador.
Aproximarmo-nos de Itapuã por conta da monitoria de pesquisa, bem como toda pulsão das comunalidades que ali existem, tornou ainda maior o desejo de conhecer e registrar alguns aspectos sobre Educação a partir do conhecimento acumulado nessa territorialidade de base aborígine e africana.
Nosso desafio: destacar através do universo dos contos indígenas e africanos aspectos que promovem os laços de sociabilidade nessa territorialidade, resgatando assim a história do lugar como forma de fortalecer as identidades socioculturais das crianças dessas comunalidades presentes em Itapuã.
IIº Festival Afrobrasileiro de Arte e Educação da ACRA em dezembro de 2010
A opção de trabalhar a partir da linguagem do universo simbólico dos contos originários desses povos surge da inquietação em perceber que essa e tantas outras formas de expressão aborígine e africana são excluídas da prática pedagógica da maioria de nossas escolas e, por conseqüência disso, nossas crianças ficam sem uma referência que as remetam à sua ancestralidade e com uma grande lacuna no que se refere à construção de sua identidade.
Toda a conjuntura ideológica de recalque à alteridade civilizatória aborígine e africana que vem sendo praticada ao longo de séculos atinge de forma profunda e cruel a consciência identitária de várias gerações no Brasil, sobretudo as crianças. A riqueza cultural e formas de expressão próprias dessas civilizações milenares se constituem estratégias possíveis e viáveis para serem trabalhadas com as crianças de forma a promover situações de resgate e afirmação de sua identidade civilizatória.
A Associação Crianças Raízes do Abaeté – ACRA- Associação Crianças raízes do Abaeté é uma instituição não-governamental que atende crianças e jovens da territorialidade de Itapuã. Surge como iniciativa de personalidades importantes e expressivas do local, no intuito de intervir nos aspectos social, econômico e cultural da comunidade, que vivencia em seu cotidiano situações bastante adversa, dentre elas a violência e a desvalorização e deterioração do patrimônio cultural e natural que caracteriza Itapuã.
Daniela Cidreira realizando uma oficina de contos afrobrasileiros no Departamento de Educação do Campus I UNEB
A partir desse contexto sócio-cultural constatado na territorialidade de Itapuã, surge a inquietação e necessidade de estudar de que forma os contos indígenas e africano-brasileiros, enquanto linguagem didático-pedagógica podem abrir perspectivas de resgate e valorização do legado histórico-cultural das civilizações que caracterizam Itapuã.
A territorialidade na qual as crianças do ACRA estão inseridas é marcada pela ancestralidade indígena tupinambá, africana e africano-brasileira a qual permeia todo o viver cotidiano da comunalidade de Itapuã. Porém o conjunto de valores urbano-industriais tem adentrado nesse contexto e ameaçado os vínculos de sociabilidade de seus integrantes. Surge daí a necessidade de se resgatar e fortalecer os valores identitários, herança milenar desses povos inaugurais, sobretudo com as crianças, gerações herdeiras e sucessoras dessa territorialidade.
O recurso lúdico-estético dos contos se constitui em excelente e prazeroso meio para se trabalhar com crianças questões ligadas a valores identitários e culturais em comunalidades africano-brasileiras e indígenas. Os contos assumem um lugar especial no âmbito educacional da cultura de origem desses povos, que traduzida na tradição oral é uma importante estratégia didático-pedagógica para comunicar e transmitir valores.
Daniela Cidreira confraternizando-se com Narcimária Luz ao final da oficina de contos afrobrasileiros
A análise do trabalho a partir dos contos originários dos povos constituidores dessa territorialidade com crianças da ACRA é de grande relevância no que tange à afirmação e valorização do continuum civilizatório africano e ameríndio nessas comunalidades.
Por isso este trabalho tem por objetivo principal constituir linguagens pedagógicas alicerçadas nos contos indígenas e africano-brasileiros, afirmando os valores dessas civilizações que caracterizam a identidade das comunalidades de Itapuã. Para isso torna-se necessário conhecer seus aspectos históricos, sociais e culturais, analisando e explorando a diversidade de linguagens que as compõem. Para isso selecionamos do acervo de contos dos povos indígenas e africano-brasileiros temas que aproximem as crianças das suas comunalidades, além da composição de uma abordagem teórico-metodológica que recomende a sua utilização nos diversos espaços de Educação em Salvador.
A pesquisa foi desenvolvida na ACRA- Associação Crianças Raízes do Abaeté, situada no Parque Metropolitano do Abaeté e se constitui como um espaço socioeducativo que desde 2005 atende cerca de 120 crianças e jovens com idade entre 6 e 17 anos, moradores de Itapuã e que cursam o Ensino Fundamental e o Ensino Médio em escolas públicas da localidade.
Partimos de uma descrição e análise das atividades que foram desenvolvidas ao longo do período da monitoria na ACRA e que se inserem na perspectiva de constituição de linguagens a partir dos contos nas mais diversas iniciativas socioeducativas desenvolvidas na Associação.
A Associação Crianças Raízes do Abaeté- ACRA acolhe perspectivas de linguagens lúdico-estéticas que afirmam a dinâmica sócio-histórica e cultural do bairro de Itapuã, buscando prover crianças e adolescentes de uma ambiência socioeducativa que fortaleça suas identidades culturais e permita-lhes exercer sua cidadania. Para isso oferece cursos e busca resgatar com ações constantes os aspectos culturais e a herança africana e aborígine.
Aliado às metas e perspectivas da ACRA, o Dayó enquanto projeto teórico-metodológico se propõe a acolher iniciativas e ações que visem realçar a percepção socioexistencial das civilizações africanas e aborígines, bem como suas comunalidades, modos de sociabilidade, elaboração de mundo, formas de resistência e continuidade de seu patrimônio civilizatório. Para isso parte das elaborações do rico repertório lúdico-estético dessa comunalidade.
A perspectiva metodológica adotada é etnográfica de natureza qualitativa, visto que lida com a subjetividade das inter-relações culturais levando em consideração o contexto em que são geradas. A opção metodológica atendeu às necessidades da pesquisa por meio de uma observação participante que permitiu a inserção e contato com a vida da comunidade e da cultura, possibilitando ricas vivências e revelando valores, significados, vínculos de sociabilidade e perspectivas de mundo. Foram utilizados métodos etnográficos como pesquisa de campo, pesquisa documental, pesquisa iconográfica, entrevistas semi-estruturadas e pesquisa bibliográfica ancorada nas perspectivas de autores como: Narcimária Correia do Patrocínio Luz, Marco Aurélio Luz, Daniel Munduruku, Mestre Didi e Hampâté Bâ.
A monografia está organizada em quatro capítulos que intercambiam e consolidam nossas reflexões. O primeiro capítulo trata das perspectivas e espaços para a construção de uma educação pluricultural. Nele nos dedicamos a apresentar ao leitor as iniciativas, perspectivas e espaços que impulsionaram e deram forma à pesquisa, destacando o PRODESE e o projeto Dayó como iniciativas âncoras em Educação para se compreender e restituir a compreensão e dignidade da alteridade civilizatória aos descendentes das populações aborígines e africanas.
Esse capítulo busca também explorar a arkhé de Itapuã, visando aproximar o leitor da dinâmica sócio-existencial das comunalidades presentes no bairro, além de caracterizar a ACRA como importante pólo constituidor de perspectivas e linguagens das culturas de raiz e revelar emocionantes histórias de vida de personalidades destacadas em Itapuã.
O segundo capítulo aborda os aspectos metodológicos da pesquisa, descrevendo o contexto em que esta foi gerada, seu tempo de duração, desenvolvimento, as perspectivas metodológicas adotadas, bem como os instrumentos utilizados, dentre eles entrevistas, fotos e outros. Além de caracterizar a população envolvida e destacar os critérios utilizados na seleção dos contos e o que buscamos explorar através deles.
O terceiro capítulo mostra o universo simbólico dos contos indígenas e africano-brasileiros, revelando a visão de mundo dessas civilizações e a importância da tradição oral na cultura desses povos. A ideologia da escrita e o recalque à alteridade própria são questões que também foram abordadas no capítulo, bem como as diferenciadas formas de comunicação nessas culturas, reveladas e destacadas na dimensão ético-estética dos contos.
O quarto e último capítulo dedica-se a relatar as construções e vivências dos contos e de seus desdobramentos metodológicos com as crianças na ACRA. Contemplando, assim, as linguagens, territorialidades, estética, elementos éticos, filosofia e as impressões das crianças ao longo dessa experiência. Por fim, a conclusão que trouxe aspectos que evidenciaram as nossas impressões diante das inúmeras e enriquecedoras possibilidades pedagógicas a partir da perspectiva dos contos, que valorizam e resgatam linguagens e heranças civilizatórias milenares dos povos aborígines e africanos.
O tema desenvolvido nesta pesquisa assume grande relevância, sobretudo devido à urgência de se afirmar os valores identitários civilizatórios dessas comunalidades que se constituem um pólo irradiador de novas e transformadoras perspectivas às gerações futuras locais e outras além de seus limites territoriais. Esta análise tem a intenção e responsabilidade de intervir de forma significativa e reflexiva, nos campos de debate a cerca das possibilidades estratégicas lúdico-estéticas a serem desenvolvidas em âmbitos educacionais, de forma a contemplar a diversidade cultural de nossa nação.
Equipe PRODESE no encerramento da oficina DAYÓ:Pluralidade Cultural e Educação na Bahia.Da esquerda para direita:Daniela Cidreira,Jackeline Pinto do A. Divino,Narcimária Luz,Sara Soares e Magno Santos.
Pretendemos, portanto, a partir do que foi anunciado da trajetória de “Compondo linguagens e valores para a educação através dos contos indígenas e africano-brasileiros”, proporcionar ao leitor(a) a percepção da riqueza civilizatória herança desses povos, aproximando o educador contemporâneo de perspectivas metodológicas e práticas didático-pedagógicas que contemplem e valorizem as linguagens constituídas a partir do universo simbólico aborígine e africano-brasileiro. Além de aprofundar a arkhé da territorialidade de Itapuã, promovendo assim o fortalecimento da auto-estima e identidade das nossas crianças, geração sucessora e herdeira desse imenso patrimônio cultural.