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PRODESE E ACRA



VIDA QUE SEGUE...Uma
das principais bases de inspiração do PRODESE foi a Associação Crianças Raízes
do Abaeté-Acra,espaço institucional onde concebemos composições de linguagens
lúdicas e estéticas criadas para manter seu cotidiano.A Acra foi uma iniciativa
institucional criada no bairro de Itapuã no município de Salvador na Bahia, e
referência nacional como “ponto de cultura” reconhecido pelo Ministério da
Cultura. Essa Associação durante oito anos,proporcionou a crianças e jovens
descendentes de africanos e africanas,espaços socioeducativos que legitimassem
o patrimônio civilizatório dos seus antepassados.
A Acra em parceria com o Prodese
fomentou várias iniciativas institucionais,a exemplo de publicações,eventos
nacionais e internacionais,participações exitosas em
editais,concursos,oficinas,festivais,etc vinculadas a presença africana em
Itapuã e sua expansão através das formas de sociabilidade criadas pelos
pescadores,lavadeiras e ganhadeiras,que mantiveram a riqueza do patrimônio
africano e seu contínuo na Bahia e Brasil.É através desses vínculos de
comunalidade africana, que a ACRA desenvolveu suas atividades abrindo
perspectivas de valores e linguagens para que as , crianças tenham orgulho de
ser e pertencer as suas comunalidades.
Gostaríamos de registrar o nosso
agradecimento profundo a Associação Crianças Raízes do Abaeté(Acra),na pessoa
do seu Diretor Presidente professor Narciso José do Patrocínio e toda a sua
equipe de educadores, pela oportunidade de vivenciarmos uma duradoura e valiosa
parceria durante o período de 2005 a 2012,culminando com premiações de destaque
nacional e a composição de várias iniciativas de linguagens, que influenciaram
sobremaneira a alegria de viver e ser, de crianças e jovens do bairro de
Itapuã em Salvador na Bahia,Brasil.


domingo, 14 de julho de 2013

REVOLTA SÓ POR R$ 0,20? AONDE, PAI? NUNCA!

Por Sérgio Bahialista
 
Meu povo, eu voltei

No cordel tão aprumado

Pra fazer o meu papel
E dar o meu recado

Pois minha sina sempre foi
Do povo tá sempre do lado

 

Se o gigante acordou
Bahialista nunca dormiu

Assim como as comunidades
Que costuram todo Brasil

Que sofrem com genocídio
Dos jovens negros a mil

 

Como diz Gonzaguinha
Que eu gosto de ouvir:

“O copo está cheio
Não dá mais pra engolir”.

É assim que a Nação
Brasileira logo eu vi.

 

 Junho de 2013
Mês e ano que marcou

O Movimento do Brasil
Contra tudo que passou

Disse NÃO aos corruptos
E para as ruas marchou

 
Eu fui um dos que lutou

Há 10 anos fui pra frente
Na Revolta do Buzú

Por um transporte decente

Não podia ficar em casa
No Facebook sorridente

 


Também fui para as ruas
Esganar o meu gogó

Engrossar o caldo a mil
Pra fazer um mocotó

Que dá sustança pro povo
Levantar num salto só

 
Mas digo que a revolta
Que hoje tomou o Brasil

Essa aí já começou
Há muito tempo e tu, não viu.

Resistindo a muitas coisas
Os filhos desta mãe gentil (gentil?)

 

Contra o tal Feliciano
Safado, sem vergonha

Contra a tal “cura” Gay
Essa ideia tão medonha.

Que reforça o discurso
De “pureza” que ele sonha

 

Contra a tal intolerância
Religiosa que ameaça

Invadiu a Câmara
De Vereadores, na praça,

O povo do Candomblé
Revolta do Atabaque é

O levante feito na raça

 

As ocupações indígenas

Contra os latifundiários
Cobrando com juros o roubo

Do bando de mercenários
Que historicamente

Exterminou índios lendários

 E a Revolta das Caxirolas?
O Bahia da Torcida

Da nação tricolAÇO
Com a moral ferida

Pelo presidente do Bahêa,
Tem lembrança merecida. (Fora MGF!)

 
Se eu for listar aqui

Todas as revoltas do povo
As do dia a dia, regionais,

O cordel não sai do ovo
Mas se a leitora e o leitor

Não entender o meu clamor
Explico tudinho de novo (depois)





Imagem disponível em
http://derepenteocordel.com.br/literatura-de-cordel-por-chico-de-assis/
Isso tudo é para dizer

Que o momento é histórico
2013 é o estopim

E não momento alegórico,
Por mais que a Globo diga

Que é vandalismo e briga
Com o seu jeito eufórico.

 

Não me resumo à Rede
Esgoto de Televisão (pra bom entendedor, meio verso basta)

Vou pra rua, reivindico
Sempre foi assim, meu irmão

Ensino isso aos educandos
Pratico o que digo, sangue bão

 

Mas tudo com criticidade

E aqui quero avaliar
Esse Movimento e toda

A manobra que aí está
Quase um golpe de Estado

Que está a manipular

 
Vi muita gente no oba-oba
Só tirando foto demais

Só para postar no Facebook
E outras redes sociais

Bebendo cerveja, abusando
Pra ficar bêbado, agitando

“Ela não anda, desfila demais”.

 
Tudo bem, faz parte né?
O gigante mal acordou

Ai já pedir demais.
O que passou, passou.

Mas o propósito geral
Valeu mais porque marcou.

 

Como em qualquer movimento

Sempre há infiltração
Os Atos de vandalismo

Vão sujando a condução
Ética do propósito

De procurar confusão

 
Apesar de se mostrar
Movimento ainda imaturo

Valeu a pena mesmo
Lutar pelo futuro

E aprender com os erros
Pra encarar o jogo duro

 
Ainda mais com uma policia

Preparada só pra matar
E para cada vez mais

Não entender o popular
Impor o Poder do Estado

Sobre o do povo a chorar
 

Deixem dessa besteira
De Impeachment Dilma

O buraco é mais embaixo
É o que a Globo não filma

A merda tá no Congresso
No senado tão regresso

E carniça tá por cima

 
E a FIFA veio aqui

Ditar o que tem que fazer
Assim a revolta sobe

E o estopim vem por querer
Pra acreditar afoito

Que nem o Maio de 68
Na França fez estremecer.

 
O movimento é revolução?
Talvez um primeiro passo

O que vi no manifesto,

Nas ruas, saiu do compasso,

Pois PM é truculenta

A luta só se sustenta

Com estratégia e arregaço

 
Ok, o gigante acordou.
Acordamos a mais de mil

Nós “panhamos” em alta
Filhos do solo, mãe gentil.

É hora do próximo passo
Pátria amada, Brasil!

E qual será? AVANTE!

 

terça-feira, 2 de julho de 2013

EDUCAÇÃO E PLURICULTURA NACIONAL



Mãe Aninha, Iyalorixá Obá Biyí que devido a pujança das religiões de matriz africana,classsificou a Bahia de “A Roma Negra”



Por Marco Aurélio Luz


Um dos problemas mais graves enfrentados pelos chamados países do Terceiro Mundo e ex-colonizados diz respeito ao sistema de ensino.
O sistema de ensino que foi implantado e desenvolvido nesses países em geral é uma herança do colonialismo e, como tal, se constitui num aparelho ideológico do Estado, voltado para reproduzir e divulgar os valores evolucionistas, etnocêntricos ou eurocêntricos, assim como para atender às necessidades técnicas de uma economia atrelada ao mercado de trocas comerciais neocoloniais.
Nesse sentido, o sistema de ensino se constitui num mecanismo de tentativa de desculturação e, portanto de despersonalização dos habitantes desses países, caracterizando-se como sério obstáculo para uma verdadeira identidade e profunda independência nacional.
Outro aspecto importante a destacar é que esses países se constituíram, de modo geral, a partir e em função dos interesses das metrópoles europeias em dividir entre si as áreas territoriais de exploração das riquezas e da força de trabalho na forma específica do modo de produção colonial mercantil e escravagista. Assim sendo, muitos países ex-colonizados ainda lutam para constituir sua nacionalidade, tentando harmonizar as diferenças dos seus diversos povos com seus respectivos valores culturais.
Nestes casos enquadra-se o Brasil. Seu território foi formado a partir dos interesses colonialistas de divisão de áreas de exploração concretizados inicialmente com o Tratado de Tordesilhas.
O seu povo se constitui de populações originárias basicamente de três continentes: América, África, e Europa, que dão continuidade e expandem seus processos civilizatórios característicos. Portanto a nação brasileira se constitui e se caracteriza pela pluralidade étnica e cultural.
As tentativas colonialistas de desculturação, aculturação e catequese através da história, apesar de todo reforço repressivo e mesmo genocida do sistema oficial fracassaram. A nacionalidade brasileira se caracteriza pela diversidade e pela pluralidade cultural do seu povo.




Ilê Axé Opô Afonjá, fundado em 1910 por Mãe Aninha, Iyalorixá Oba Biyí
Foto de Jackeline A. Divino

No Brasil, todavia, assim como em muitos outros países do chamado Terceiro Mundo, persiste uma grande distância e mesmo uma grande defasagem entre o Estado e as formas de organização socioculturais e econômicas da grande maioria da população.
O Estado oficial brasileiro nasce da Proclamação da Independência por D. Pedro I, “antes que algum aventureiro lançasse mão”, isto é, para que o Brasil, mesmo independente, pudesse continuar restrito ao âmbito das políticas socioculturais e econômicas neocoloniais.
Em verdade, passada a época da influência hegemônica portuguesa nas relações internacionais do Brasil, pouco houve de mudanças no que diz respeito às características do Estado, que continuou preso às influências neocolonialistas.
Assim, o país se caracteriza, de um lado, por uma sociedade oficial assentada no desejo de predominância dos valores civilizatórios europeus e, por outro, de uma sociedade não reconhecida e não legitimada oficialmente, assentada nos valores civilizatórios de origem negro-africana e ameríndia. No que se refere, então, à política educacional e cultural do Estado, o que vemos é a hegemonia quase absoluta dos valores europeus.
Uma das consequências mais graves dessa hegemonia é o índice altíssimo de evasão escolar, ainda no primeiro grau, principalmente nas regiões Norte e Nordeste.
Esse quadro caracteriza um sintoma dos obstáculos existentes para o aperfeiçoamento dos mecanismos de mobilidade socioeconômica e fundamentalmente de uma verdadeira integração nacional.


DIFERENTES FORMAS DE TRANSMISSÃO DO SABER


Enquanto, na cultura europeia, a transmissão do saber se dá através da mediação do texto, isto é, da forma de comunicação escrita, nas culturas negra e ameríndia a transmissão se dá deforma direta, dinâmica, pessoal e ou intergrupal.




Comunidade do Ilê Axé Opô Afonjá 
Foto de Kabá 


Se, nessas culturas, que denominamos de culturas da participação, o tempo de transmissão se caracteriza pela comunicação ligada a uma experiência vivida, aqui e agora, e que culmina nas situações rituais que marcam o fortalecimento da identidade e o lugar e a função do indivíduo na sociedade, no ensino oficial o tempo está demarcado pelo ano letivo, ela impessoalidade das relações do ensino de massa e pela passagem de série através dos exames que têm como referência básica o desenvolvimento do aluno no âmbito da comunicação escrita.
Enquanto nas culturas da participação as relações de transmissão do saber atualizam as hierarquias sociais que situam os poderes e deveres dos mais velhos em relação aos meios novos e vice-versa, no ensino oficial o que se legitima apenas é o meio de comunicação, a escrita, que cristaliza o poder da Razão de Estado.
O exercício da legitimação desse poder culmina na universidade, onde as bibliografias, as citações, principalmente de autores europeus, dão legitimação a “verdades” e resultam em poderes institucionais aos que escrevem dessa forma artigos e teses. Portanto, o que é legitimado, na verdade, é o próprio poder impessoal do Estado através da escrita.
No que se refere à cultura negra, que é predominante na maioria do povo brasileiro, ela se caracteriza por constituir sua visão de mundo através de uma complexa e riquíssima simbologia.




Pinturas das crianças da Mini Comunidade Obá Biyí. Derivadas das composições de arraias. A predominância de triângulos deriva da simbologia de expansão de famílias, o casal e o terceiro nascido em movimento de sucessivas expansões. 

 Foto de M A. Luz

Essa simbologia se apresenta principalmente no âmbito das instituições religiosas posto que no sistema cultural negro a religião se caracteriza como núcleo central e irradiador de valores civilizatórios.
A linguagem das instituições religiosas constitui-se numa arte sacra negra, que combina, de forma própria, dramatização, dança, música, poemas, código de cores, emblemas, esculturas, vestuário, parafernália que contribui para magnificar o sagrado.
Essa linguagem, que comunica o saber da visão de mundo negra, em muito se diferencia dos elementos de comunicação que caracterizam a transmissão do saber no sistema de ensino oficial.
Nesse sistema, sobressai a nudez da sala de aula com suas carteiras, o quadro de giz, aparelhagem eletrônica, onde a palavra escrita e “oralizada” é o único elemento simbólico que participa da comunicação.
O professor, individualmente, legitima o poder do Estado e caracteriza-se em geral por ser mero tradutor ou transmissor dos conteúdos dos livros adotados, enfim um mediador da palavra impressa.

DIFERENÇA DOS CONTEÚDOS

Evidentemente que há muita diferença entre os conteúdos que formam a visão de mundo negra e a projeção ideológica neocolonialista da escola oficial, caracterizada especificamente pelo recalcamento da presença dos processos civilizatórios constituintes da Nação, elegendo como universal o processo civilizatório europeu.




Desenho das crianças da Mini-comunidade Obá Biyí, referente a história da Criação do Mundo.
Foto de M.A. Luz

Assim é que nos materiais didáticos utilizados não há possibilidade alguma de identificação para a grande maioria das crianças brasileiras. Há uma grande defasagem entre sua realidade nacional, representada como se o país fosse uma nação caracteristicamente europeia, com o predomínio absoluto dos valores estéticos, éticos e científicos do Ocidente. Essa representação, contudo, está em mora com os fatos.





Desenho das crianças da Minicomunidade Oba Biyí.

 Baba Egun, ancestral masculino.
Foto de M.A. Luz

Na realidade, ela é a grande responsável pela evasão escolar, pois a criança não se vê contemplada nesse contexto, nem a sua família, sua religião, sua comunidade, nem sua sociedade.
Para manter, então sua integridade psicossocial, a criança, sentindo-se rejeitada, evade-se e prefere perder algumas possibilidades de mobilidade social individual, a submeter-se a padrões culturais exógenos ao seu próprio contexto.
Há, todavia uma pequena minoria que resolve enfrentar essas condições; tornam-se, porém, almas no exílio, acabando por se afastarem da própria família e da comunidade a que pertenciam e carregam consigo a sequela dos complexos advindos de uma identidade fracionada.


SUPERAÇÃO DOS OBSTÁCULOS ETNOCÊNTRICOS NA EDUCAÇÃO


Dentre as tentativas existentes para superar a gravidade da situação enfrentada pela educação no Brasil, no que se refere à pluralidade cultural, sobressai a experiência piloto e pioneira, da Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil, em convênio com o Ilê Axé Opô Afonjá e a Prefeitura de Salvador.
 A experiência denominada Mini Comunidade Obá Biyí visa harmonizar o fortalecimento da identidade cultural comunitária aos interesses e necessidades de mobilidade econômica e social e de conquista de maiores espaços na sociedade oficial. Em funcionamento desde abril de 1978, o projeto vem alcançando resultados altamente satisfatórios, em que pesem as dificuldades de recursos para sua manutenção.




Crianças com professora,Educação Infantil
Foto de A. Ikissima

O projeto que assiste a cerca de 130 crianças e jovens, desde o maternal à alfabetização e desenvolvimento integrado, atendendo até a idade limite de quatorze anos, caracteriza-se por implantar e desenvolver um currículo pluricultural, baseado nos valores culturais comunitários da tradição dos orixás, constituindo uma nova linguagem pedagógica.
A coordenação do projeto foi constituída pelo GTE, Grupo de Trabalho em Educação da Secneb, Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil.







Encenação do auto coreográfico Odé e os Orixá do Mato de Mestre Didi
Fotos de M. A. Luz

Em linhas gerais, essa nova pedagogia se caracteriza pela escolha de um tema semestral relacionado com o calendário cultural e religioso da comunidade. Embora o projeto não esteja comprometido com nenhuma orientação religiosa, são do universo simbólico específico da comunidade, de seus valores culturais, que são extraídos os diversos temas.
Os temas se constituem de referências aos princípios que regem o universo conforme a visão de mundo da comunidade. De acordo com esses princípios é selecionado um conto de Mestre Didi que integra o patrimônio cultural e adaptado pelo GTE em indicações didáticas e em auto coreográfico, constituindo-se no núcleo irradiador das atividades criativas e pedagógicas.
Reunido com os funcionários e professores, o grupo de trabalho coordena e acompanha as ações que visam estabelecer a programação semestral. A partir do tema e do conto escolhidos, os integrantes do projeto deverão adaptar os conhecimentos e informações do currículo oficial. No que concerne à forma de comunicação, deverão procurar aproximar-se da pedagogia comunitária, que não se baseia na mediação do texto escrito.
É aí que a montagem do auto coreográfico ganha em significado pedagógico, posto que se baseia nas formas dramáticas e simbólicas comunitárias. A montagem atinge a característica de aprendizagem da comunidade, na qual a relação vivido- concebido se dá aqui e agora; aprende-se vivendo a experiência da montagem.




Encenação do conto O Presente de Xangô à Boa Menina de Mestre Didi
Foto de A. Ikissima

Assim, a leitura dos textos, desenhos, colagens, esculturas, feitura de figurinos e cenários, compreendendo processos de tintura de tecidos, confecção de roupas, fabricação de instrumentos, aprendizagem de cantigas, danças e músicas polirrítmicas, constituem um processo nuclear das atividades curriculares e só possível com a participação imprescindível de Mestre Didi.





Exposição de trabalhos das crianças no Festival de Arte Integrada Mini comunidade Obá Biyí.
Foto de M. A. Luz

Essas atividades culminam, no encerramento de cada semestre, com o Festival de Arte Integrada Mini comunidade Oba Biyí, quando são convidados os pais, parentes e integrantes da comunidade e do bairro adjacente para compartilharem dos resultados alcançados.






Encenação do auto coreográfico A Chuva Dos Poderes de Mestre Didi
Fotos de M.A. Luz

De modo bastante sumário, é este o âmago da proposta de um projeto que já pode oferecer os seguintes resultados, divulgados pelo GTE, no Evento Secneb 83:
A Mini comunidade Oba Biyí concorre efetivamente para um desenvolvimento harmônico da criança, ao incentivar uma percepção valorizada de seu próprio mundo cultural, que lhe permite colocar-se melhor na escola oficial e na sociedade que a cerca.
 Entre as crianças que frequentam ou frequentaram a mini comunidade, houve sensível diminuição do índice de evasão escolar e melhor aproveitamento da escola pública, tendo alguns jovens ultrapassado à barreira das primeiras séries, cursando agora o segundo grau.
Os jovens maiores de quatorze anos, desejando continuar integrados ao projeto, formaram um Grupo de Jovens da Obá Biyí e já realizaram curso de artes cênicas, com adaptação e montagem da peça “A Vendedora de Acaçá”, do conto de Mestre Didi (Deoscoredes M. dos Santos), curso de projeção de cinema, cine clube com sessões semanais, curso de fotografia com exposições etc. Alguns desses jovens começam a atuar como monitores na Mini comunidade Obá Biyí.




Grupo de Jovens da Obá Biyí
Foto de A. Jorge M. Dos Santos

Através dos trabalhos de pintura, colagem, escultura, dramatização, dança música, visitas a museus, acesso a peças de teatro etc., as crianças vêm percebendo novas oportunidades e desenvolvendo, com maior amplitude, suas possibilidades e interesses.


Observações:

Este texto integra o livro IDENTIDADE NEGRA E EDUCAÇÃO, organizado por Marco Aurélio Luz e faz parte da coleção Cadernos de Educação Política do saudoso e memorável professor José Arapiraca. O livro publicado em 1989, Ianamá, reúne trabalhos de Sandra Maria Bispo, Ilê Aiyê, Narcimária Correia do Patrocínio Luz, Ana Célia da Silva, Vanda Machado, Florentina Souza, Hamilton Vieira, Januária Avelina Correia do Patrocínio. Contou também com a participação especial do eminente educador e escritor, artista, sacerdote o Alapini Deoscoredes M. dos Santos, Mestre Didi Asipa.
Mãe Aninha, Iyalorixá Obá Biyí, fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá, foi quem lançou as sementes para instalarmos a problemática da Educação Pluricultural quando lançou o desafio: “ Quero ver as crianças de hoje, no dia de amanhã de anel no dedo e aos pés de Xangô”.
O projeto Mini-Comunidade Obá Biyí denomina-se em sua homenagem, e teve como principal mentor seu “neto” Mestre Didi.



sábado, 8 de junho de 2013

ESCRITA E AUTORIA FORTALECENDO A IDENTIDADE

 Daniel Munduruku


Foto M.A. Luz

            Uma das lembranças mais agradáveis que tenho da minha infância é a de meu avô me ensinando a ler. Mas não ler as palavras dos livros e, sim, os sinais da natureza, sinais que estão presentes na floresta e que são necessários saber para poder nela sobreviver.

       
 Foto de Marcelo Luz

  Meu avô deitava-se sobre a relva e começava a nos ensinar o alfabeto da natureza: apontava para o alto e nos dizia o que o vôo dos pássaros queria nos informar.
            Outras vezes fazia questão de nos ensinar o que o caminho das formigas nos dizia. E ele nos ensinava com muita paciência, com a certeza de que estava sendo útil para nossa vida adulta. Aos poucos, fui percebendo que aquilo era uma forma natural de aprendizado e que tudo era real. Mesmo quando nos falava dos mistérios da natureza, das coisas que minha cabeça juvenil não compreendia, sentia que o velho homem sabia exatamente o que estava nos ensinando. Fazia isso nos contando histórias das origens, das estrelas, do fogo, dos rios. Ele sempre nos lembrava que, para ser conhecedor dos mistérios do mundo, era preciso ouvir a voz carinhosa da mãe-terra, o suave murmúrio dos rios, a sabedoria antiga do irmão-fogo e a voz fofoqueira do vento, que trazia notícias de lugares distantes.
       

Foto de Narcimária do Patrocínio Luz

 E assim cresci. E já grande fui perceber que o ensinamento que o velho avô nos passava, realmente nos ajudava a viver os perigos da floresta. Assim podia ler o que a natureza estava sentindo e o que nos estava dizendo. Coisas do futuro? A natureza dizia. Coisas do presente? A natureza nos dizia. Mortes? Brigas? Descaminhos? Estava lá a natureza para nos comunicar.
      


Foto de Marcelo Luz

 Hoje, pensando naquele tempo, sinto que a sabedoria dos povos indígenas está além da compreensão dos homens e mulheres da cidade. Não apenas pelo fato de serem sociedades diferenciadas, mas por terem desenvolvido uma leitura do mundo que sempre dispensou a escrita, pois entendiam que o próprio mundo desenvolve um código que precisa ser compreendido. E apenas os alfabetizados nesta linguagem são capazes de fazer esta leitura.
            Apesar de ter crescido na cidade, freqüentado a escola formal desde pequeno e ter um relativo domínio dos códigos urbanos, alguma coisa internamente sempre me alertou para a necessidade de não deixar os códigos da floresta morrer dentro de mim. Este alerta sempre aparecia nas horas em que dúvidas ou dificuldades se faziam mais presentes. Era como uma voz que me lembrava o motivo pelo qual tinha aceitado vir para a cidade e nela viver, mesmo tendo aberto mão de uma vida aldeã.
            Este alfabeto, que a natureza teima em manter vivo; esta escrita invisível aos olhos e coração do homem e da mulher urbanos, tem mantido as populações indígenas vivas em nosso imenso país. Esta escrita fantástica tem fortalecido pessoas, povos e movimentos, pois traz em si muito mais que uma leitura do mundo conhecido...Traz também em si todos os mundos: o mundo dos espíritos, dos seres da floresta, dos encantados, das visagens dos desencantados. Ela é uma escrita que vai além da compreensão humana, pois ela é trazida dentro do homem e da mulher indígena. E neste mundo interno, o mistério acontece com toda sua energia e força.

Foto de Narcimária do Patrocínio Luz

A LÓGICA DO DOMINADOR

Não preciso lembrar aqui que a lógica de quem domina é totalmente diferente daquela dita anteriormente. O humano ocidental cresceu para dominar a natureza como algo fora dele. Dessa forma, ele ignorou a escrita da natureza na tentativa de tornar-se dono dela. Desvalorizou as outras formas de leitura e de escrita do mundo e impôs seus próprios olhares e métodos científicos fazendo-nos crer que sua escrita era mais perfeita que aquela infinitamente mais antiga.
            Estes olhares que os europeus trouxeram para cá revelaram que seus interesses estavam acima da real intenção de encontrar-se com nossos antepassados. Eles não tiveram consideração por nossos olhares e logo mostraram suas verdadeiras intenções de domínio, de riqueza fácil. Para isso não se furtaram de querer aprisionar nossos avós, roubar-lhes os conhecimentos tradicionais e tentar tirar de dentro de nós nossa forma de escrever, nossa própria escrita. Quiseram roubar – e em muitos casos conseguiram – nossa alma colocando em seu lugar um espírito que nunca foi nosso. E o que eles colocaram no seu lugar? Necessidades que não eram nossas. Vontades que não tínhamos; desejos que não desejávamos; ódios que não sentíamos; bens que não nos pertenciam; pensamentos que não pensávamos. Foram plantando no coração de nossos antepassados um desejo de não Ser.

DOMINAR A ESCRITA DO PARIWAT

            Se houve uma tentativa de rasgar nosso espírito modificado pelo espírito europeu, houve também – e ainda há – uma nova tentativa de sacrificar nossa escrita tradicional, nosso olhar próprio com a uma lógica cruel que descaracteriza e empobrece nossa gente. Falo da escola tal como ela existe hoje nos meios urbanos. Falo da lógica da diferença que tem habitado os discursos políticos nos últimos quinze anos e que serviu, de certa forma, para reafirmar nossa condição de subseres humanos na prosopopéia lingüística dos discursos etno-pedagógicos dos pariwat.
            Nestes discursos, sempre aparecem as realizações dos governos com relação à educação indígena como algo novo, que leva em consideração o “pensar” dos representantes nativos. É claro que não se pode negar os avanços que ocorreram e uma maior preocupação no sentido de tentar organizar o conteúdo que levasse a contento uma educação realmente diferenciada e inclusiva. Mas o que significa isso? Quais os efeitos que isso tem causado na cabeça dos nossos jovens? Como os povos têm reagido a semelhante apelo?
            A resposta não é simples, mas ouso dizer que as pedagogias inclusivas não passam de arremedos na solução de um “problema” indígena, pois elas salientam ainda mais a falta de uma real compreensão do que seja um povo indígena e suas verdadeiras necessidades. Mais: elas escancaram a falta de um pensamento governamental a respeito do tratamento que estes grupos étnicos devem ter. Ou seja, revelam que o governo não tem competência para definir o que ele pensa a rspeito dos indígenas. Ou será que alguém de governo já se posicionou de forma inequívoca sobre as intenções políticas com relação aos indígenas? Como saber quais as reais intenções políticas oficiais sobre os nativos?
            Ora, o que vem acontecendo são justificativas pedagógicas do tipo inclusivistas (a diversidade na universidade), ou paliativas (programas estaduais de magistérios indígenas) ou ainda neoliberais (formação de técnicos para suprir o mercado). E qual o propósito disso? Seriam muito diferentes dos projetos de “inclusão” que faziam os militares em sua política de incorporação à sociedade brasileira?
            Não importa qual seja a resposta a estas perguntas e, sim, o que vemos acontecer na prática e que não respeita o caminho da memória e da tradição indígena em seu mais amplo sentido. Basta lembrar, para isso, que o domínio da escrita do pariwat é justificado pela necessidade de ler a realidade brasileira que, a priori, não faz parte do imaginário indígena. De modo que, ao meu ver, foi-se criando uma necessidade nos jovens nativos de apreender conceitos e teorias que não cabem no pensar holístico e circular de seus povos. Esta agressão ao sistema mental indígena, fruto de uma história da qual não somos culpados, mas sobre qual temos responsabilidade, acaba se perpetuando nas novas políticas inclusivistas levados a efeito por governos nas três esferas.
            Conclusão: nossos jovens se vêm obrigados a aceitar como inevitável à necessidade de ler e escrever códigos das quais prefeririam não aprender e não lhes é dado o direito de recusar sob a acusação de preguiça ou descaso para com a boa vontade dos governos e governantes.

FORTALECENDO A AUTORIA

            De qualquer forma, entendo que há uma preocupação prática nos diversos programas de educação indígena espalhados pelo Brasil afora, sejam eles operados pelas esferas governamentais ou não-governamentais. Muitos desses programas têm partido do princípio que é preciso fortalecer a autoria como uma forma de fortalecer também a identidade étnica dos povos que atendem. Isso é muito positivo se a gente entender que a autoria, aqui defendida, signifique que estes povos possam num futuro próximo, criar sua própria pedagogia, seu modo único de trafegar pelo universo das letras e do letramento. Só assim posso imaginar que valha a pena o esforço dos que se põem a trilhar este caminho. Se estes grupos de fato acreditarem que estão criando pessoas para a autonomia intelectual e se abrirem espaço na sociedade para a livre expressão deste pensamento, então eles estarão, de fato, fortalecendo a autoria e apresentando um caminho novo para as manifestações culturais, artísticas, políticas, lúdicas e religiosas dos nossos povos indígenas. Caso contrário, estarão levando nossa gente para o mesmo buraco em que o pensamento quadrado ocidental se meteu e, neste caso, estarão sendo piores que o regime ditatorial que almejava exterminar as identidades transformando-as numa única e cínica identidade nacional brasileira.


 Daniel Munduruku é autor indígena de livros infanto-juvenis. Formado em Filosofia, História e Psicologia. Integrou o programa de pós-graduação em Antropologia Social na Universidade de São Paulo. É Diretor-Presidente do INBRAPI – Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual.Esse texto foi uma colaboração do autor para o SEMENTES Caderno de Pesquisa, Vol 5,n. 7, 2004 ps.29-31,publicação do PRODESE