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PRODESE E ACRA



VIDA QUE SEGUE...Uma
das principais bases de inspiração do PRODESE foi a Associação Crianças Raízes
do Abaeté-Acra,espaço institucional onde concebemos composições de linguagens
lúdicas e estéticas criadas para manter seu cotidiano.A Acra foi uma iniciativa
institucional criada no bairro de Itapuã no município de Salvador na Bahia, e
referência nacional como “ponto de cultura” reconhecido pelo Ministério da
Cultura. Essa Associação durante oito anos,proporcionou a crianças e jovens
descendentes de africanos e africanas,espaços socioeducativos que legitimassem
o patrimônio civilizatório dos seus antepassados.
A Acra em parceria com o Prodese
fomentou várias iniciativas institucionais,a exemplo de publicações,eventos
nacionais e internacionais,participações exitosas em
editais,concursos,oficinas,festivais,etc vinculadas a presença africana em
Itapuã e sua expansão através das formas de sociabilidade criadas pelos
pescadores,lavadeiras e ganhadeiras,que mantiveram a riqueza do patrimônio
africano e seu contínuo na Bahia e Brasil.É através desses vínculos de
comunalidade africana, que a ACRA desenvolveu suas atividades abrindo
perspectivas de valores e linguagens para que as , crianças tenham orgulho de
ser e pertencer as suas comunalidades.
Gostaríamos de registrar o nosso
agradecimento profundo a Associação Crianças Raízes do Abaeté(Acra),na pessoa
do seu Diretor Presidente professor Narciso José do Patrocínio e toda a sua
equipe de educadores, pela oportunidade de vivenciarmos uma duradoura e valiosa
parceria durante o período de 2005 a 2012,culminando com premiações de destaque
nacional e a composição de várias iniciativas de linguagens, que influenciaram
sobremaneira a alegria de viver e ser, de crianças e jovens do bairro de
Itapuã em Salvador na Bahia,Brasil.


domingo, 27 de setembro de 2015

CORPO E ANCESTRALIDADE-Lançamento da 3ª edição do Livro Corpo e Ancestralidade- uma proposta pluricultural de dança-arte-educação.




No dia 30 de setembro, às 15h, no auditório da Biblioteca Pública do Estado da Bahia(Barris), a professora doutora Inaicyra Falcão dos Santos lançará a 3ª edição do Livro Corpo e Ancestralidade- uma proposta pluricultural de dança-arte-educação.
O evento que será realizado pela Acosta Produções Artísticas tem o objetivo colocar o público baiano em contato com esta obra que tem sido referência no ensino de dança no Brasil, a programação será composta por uma palestra de Inaicyra onde será apresentado ao público a sua trajetória artística, bem como o processo de criação do livro.
A tarde de lançamento terá sequência com a performance do Grupo Experimental de Dança da UFBA, Núcleo Irepó, apresentando fragmentos do espetáculo Oná Metá (Os Três Caminhos), trabalho artístico sob direção da professora doutora Lara Rodrigues Machado, inspirado em algumas obras esculturais de Deoscoredes Maximiliano dos Santos, Mestre Didi,  e que tem como eixo a ancestralidade, a tradição das culturas, com um diálogo no mundo atual.
Após a apresentação será realizado um bate papo com a plateia e sessão de autógrafos. A terceira edição do Corpo e Ancestralidade conta agora com ilustrações coloridas, o livro estará à venda no valor de R$: 40,00


Inaicyra Falcão é natural de Salvador, graduada em Dança pela Universidade Federal da Bahia, mestre em Artes Teatrais pela Universidade de Ibadan na Nigéria, doutora em Educação pela USP e livre docente na área de Práticas Interpretativas da Universidade Estadual de Campinas. Atualmente dedica-se a sua carreira de cantora lírica, com a qual participa de diversos eventos culturais e acadêmicos pelo Brasil.




quinta-feira, 24 de setembro de 2015






Processo civilizatório africano é tema de encontro nesta sexta-feira
A segunda edição do painel ‘Literatura Negra Comentada’, do Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, traz o escritor Marco Aurélio Luz para um debate sobre o processo civilizatório africano. A atividade será nesta sexta-feira (25), às 14h, no próprio equipamento social, situado na Av. Sete de Setembro, em Salvador.
Aberta ao público, a discussão terá como base os livros ‘Cultura Negra e Ideologia do Recalque’, ‘AGADÁ, Dinâmica da Civilização Africano-Brasileira’ e ‘O Rei Nasce Aqui Oba Biyi’, de autoria do palestrante, que também é filósofo, doutor em Comunicação e pós-doutor em Ciências Sociais. A organização do evento informa que fornecerá certificados.
Vinculado à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi), o Centro de Referência é uma das portas de entrada dos casos acompanhados pela Rede de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa. A unidade dispõe de biblioteca especializada e espaço para formações, além do atendimento ao público vítima de discriminação racial ou violência motivada por questões ligadas às religiões.
Serviço
O quê: 2ª edição do painel ‘Literatura Negra Comentada’, com participação do escritor Marco Aurélio Luz.
Quando: Sexta-feira (25.09), às 14h.
Onde: Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela - Avenida 7 de Setembro, nº 282, Ed. Brasilgás, 1º andar – Centro (mesmo prédio da Fundação Pedro Calmon), em Salvador. Mais informações: (71) 3117-7445/7448 - cr.racismo@sepromi.ba.gov.br.

Walmir França
71 96038521

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

JOEL RUFINO, Historiador, Literato, e Muito Mais.


Por Marco Aurélio Luz




A excelência de Joel como escritor é que era um pensador versado no conhecimento da história e nas artes da literatura.




Joel Rufino dos Santos


Escreveu muitos livros admiráveis em diversos gêneros literários da história do Quilombo dos Palmares aos infanto- juvenis.

Convivi com Joel em diversos momentos em que nossa trajetórias proporcionaram, e foi ele quem fez o prefácio da 1ª edição do Cultura Negra e Ideologia do Recalque (1983).

O que muito me encantou também é que me identifiquei com o gosto de Joel pelo futebol, e pela aproximação de seu pensamento sobre a presença do negro na constituição do futebol arte tão admirado e por isso tão presente nas características da identidade do povo brasileiro.



              Leônidas, Friedenreich e Pelé, gerações que constituíram o futebol arte brasileiro.
foto disponível na internet
            Então em sua homenagem escolhemos apresentar uma página que demonstra não só seu estilo de magnifico contador de história mais também um profundo pensador referindo-se ao recalque neocolonial que atravessa nossas instituições oficiais especificamente do esporte.

Depois das performances do selecionado brasileiro nas copas de 1950 e 1954 Nelson Rodrigues se referiu ao “complexo de vira-lata” que atormentava o selecionado do futebol brasileiro.


Wangari Mattai

O recalque neocolonial é antigo e está nas origens da constituição do Estado.
Wangari Mattai nasceu no Quênia e tornou-se líder mundial pela preservação da natureza, tendo recebido o Prêmio Nobel da Paz e se tornado Representante da ONU.
Respeitada por sua coragem em expor suas convicções e reflexões, destaco a que se referiu ao pior legado do colonialismo. Trata-se do recalque dos valores das tradições civilizatórias anteriores a colonização.
Os Estados Nacionais pós coloniais promovem a rejeição desses valores e com ele o enfraquecimento de uma identidade própria e a baixa estima, caminho aberto para a constituição do neo colonialismo.
Joel Rufino narra a trajetória do jogador Fausto a Maravilha Negra, nos inícios do futebol brasileiro uma história de glória e tragédia consequência da formação do futebol arte, emergente dos valores e linguagens da tradição africano brasileira em contraposição às ideologias das estratégias neocartesianas europeias.

JOEL RUFINO E A HISTÓRIA POLÍTICA DO FUTEBOL BRASILEIRO



Um dos maiores historiadores do país, Joel Rufino dos Santos, deu à literatura esportiva um dos livros mais importantes, fundamental para aqueles que querem conhecer as raízes do nosso futebol, especialmente pesquisadores, jornalistas e estudiosos do tema.
“História Política do Futebol Brasileiro” (Editora Brasiliense, 1981) é, portanto, leitura obrigatória. O autor mostra logo no prefácio que é apaixonado pelo tema futebol, não apenas pelas histórias geradas, mas também pelo folclore e lendas geradas por ele: “Este livro é dedicado a Mão de Vaca, único goleiro vesgo da História do Brasil, que, no falecido campo do Tomás Coelho F.C., se especializou em defender pênaltis em tardes de domingo. E a Paulo César Lima, que conhece o poder da bola”.
Literatura na Arquibancada destaca abaixo dois trechos da obra. Primeiro a introdução. E logo a seguir, um dos capítulos batizado por “Juventude” (referente ao período que o futebol atravessou em sua história). Tanto na introdução como neste capítulo, Joel Rufino dos Santos destaca a importância de um dos craques do futebol brasileiro no contexto da “história política” do futebol brasileiro, tema da obra. Trata-se de Fausto, apelidado de “A Maravilha Negra”, que morreu precocemente, aos 34 anos, no ano de 1939. Portanto, em 28 de março de 2014, são 75 anos de sua morte.

INTRODUÇÃO

Por Joel Rufino 




Dori Kruschner

Certa manhã de fevereiro de 1937, desembarcou, todo lampeiro, na Praça Mauá, Rio de Janeiro, o técnico húngaro Dori Kruschner. Vinha precedido, naturalmente, do enorme prestígio que sempre cerca, no Brasil, os técnicos de qualquer coisa. (Alguns anos antes, por exemplo, um geólogo americano, Mr. Oppenheim, levantara tremenda polêmica no país, ao afirmar, categoricamente, que não tínhamos petróleo.) Dia seguinte já estava exibindo na Gávea, o boné quadriculado, o apito na boca, as pernas de leite.

Nossos times arrumavam-se em campo ainda como no tempo de Charles Miller: goleiro – dois zagueiros – três médios – cinco atacantes. Kruschener vinha trazer uma outra arrumação, considerada superior, o WM: goleiro – três zagueiros – dois médios – dois meias – três atacantes. Trazia, além disso, o individual, ginástica puxada, sem bola. E a medicine-ball. O Feiticeiro de Viena, embora ele fosse de Budapeste, ia atualizar o nosso futebol.
Naquele primeiro treino, ele escalou um negrão alto e magro de zagueiro, para jogar entre os outros dois. Sua função principal era marcar o centroavante adversário. O negrão torceu o nariz mas não disse nada. Quinze minutos de treino, tinha-se mandado dezenas de vezes ao ataque, como sempre fizeram os centro-médios brasileiros. O húngaro parava o ensaio, o negrão se mandava de novo. O cartola José Padilha se invocou. Enquanto fosse o presidente do Flamengo aquele moleque não vestiria mais a camisa rubro-negra! O jogador levou a questão à Primeira Vara Cível, pedindo passe livre. Perdeu.
Meses a fio, comparecia ao escritório do cartola. Não era recebido. Os amigos pediram por ele: afinal, se tratava da melhor bola do país. “Só se pedir penico. E publicamente”, respondia o dirigente. Um dia, os jornais apareceram com uma estranha carta: “rogando ao muito digno técnico de futebol do Flamengo a grande gentileza de desfazer, perante o Sr. Padilha, o mal-entendido”...E cocoreco, cocoreco, bico de pato. A maior humilhação a que um jogador de futebol já foi submetido neste país. Arriava as calças.
Quando saiu a convocação para a seleção da Copa do Mundo de 1938, ele estava tuberculoso. Ninguém falou na carta, nem da doença. Muito menos na relação entre as duas. No primeiro individual de 1939, o crioulo teve uma hemoptise.
– Você tem de se internar – diziam os amigos.
– Ainda não – ele respondia. – Quero mostrar que sou mais eu. E gringo nenhum, de fala difícil, é melhor do que o papai.
– O futebol evoluiu – insistiam. – A nova lei do impedimento acabou com o centro-médio.


Ele, que sempre tinha respostas prontas, baixava a cabeça.
Manhã de 28 de março de 1939. Um sanatório perdido nos cafundós de Minas. A irmã bate na sala do diretor para avisar que o 301 morreu. O diretor assume um ar de critério e pergunta:
– Sabe quem era aquele crioulo?
– Era...Era a Maravilha Negra.
É difícil encontrar um brasileiro que não tenha a sua história de futebol. Meu pai, por exemplo, contava que viu Lelé arrancar as balizas do velho campo do Madureira com um petardo da zona do agrião. Eu prefiro esta, de Fausto dos Santos, a Maravilha Negra, embora seja uma história triste. É que nela está o retrato de corpo inteiro do nosso futebol: a arte popular em luta contra os sistemas de jogo importados.
Quando a Maravilha Negra morreu, 1939, o futebol atingia, no Brasil, a sua idade adulta. Estava definitivamente popularizado e profissionalizado. Durante os vinte anos seguintes viveu, então, o seu apogeu, para declinar – talvez – em seguida. (“Talvez” porque ninguém, exceto as ciganas, pode adiantar o futuro.)
Assim, na primeira parte deste livro, vou mostrar como e por que o brasileiro começou a jogar futebol – entre 1894 e 1920.
Na segunda, mostrarei como e por que o futebol se popularizou, virando uma profissão – mais ou menos entre 1920 e 1940 – passando por uma transição que sacrificou a muitos, e, em especial, a este gigante que foi Fausto.
Na terceira parte retratarei o apogeu do nosso futebol – de 1940 a 1960. E, finalmente, na última seção do livro, buscarei, junto com o leitor, as razões da crise atual.
Como nas melhores novelas policiais é esta uma história de sangue, amor e subversão numa trama diabólica.



JUVENTUDE:Um pretinho do Maranhão foi o pai dos centros-médios brasileiros

Um pretinho do Maranhão foi o pai dos centros-médios brasileiros“Fausto trabalha como um escravo. É possível que todos os center-halves brasileiros trabalhem como escravos? Será por isso que todos eles são negros?” Será por isso que todos eles são negros?” Isto está escrito, no El Diluvio, um jornal de Madri, no ano de 1931.
Quem foi o maior craque do Brasil?
Cada qual tem a sua resposta. O mais seguro, porém, é responder à mineira: depende.
Cada época teve o seu maior, aquele que desequilibrava jogo. Na época do amadorismo, foi Fried, disparado.
Na fase de transição do amadorismo para o regime profissional – adotado em todo o país no ano de 1933 – foi um preto maranhense que deslumbrou o Brasil, a Europa e o Rio da Prata.


Fausto dos Santos, a Maravilha Negra.





Fausto, com a camisa do Barcelona


Sabemos muito pouco da sua infância: nasceu no interior do Maranhão, numa família paupérrima, no ano de 1905. O futebol mal tinha se firmado no Rio e em São Paulo e o pretinho alto e bem equilibrado já chutava uma bola de bexiga numa fazenda de Codó. Em 1926, jogava nos amadores do Bangu, time de fábrica da Capital Federal, já impressionando pelas qualidades que desenvolveu depois: o controle da bola, a visão de jogo, a elegância e a garra com que disputava uma partida, do começo ao fim. Em 1927, transferiu-se para o Vasco da Gama, primeiro time brasileiro a aceitar crioulos no seu plantel. Iniciava, sem saber, a sua via crucis.
Por que via crucis? Fausto sempre jogou futebol com raiva. Ia na bola como num prato de comida. Jogava sério e encarava o futebol como meio de escapar à pobreza, ganhar dinheiro para poder desfrutar a vida em gafieiras e rendez-vous, muita cachaça e violão. Os críticos chamavam-no de tudo – mercenário, acomplexado, exibido – as mesmas acusações que fizeram depois, em outras épocas, a Zizinho, a Jair, a Didi, e, hoje em dia, a Paulo César.
Só não o chamavam de ingênuo. Fausto nunca confiou em cartolas. Nem teve ilusões sobre a discriminação racial, que no seu tempo já era ostensiva. Não alisava o cabelo. Não frequentava a alta sociedade, embora por curto tempo andasse com o bolso recheado e o retrato diariamente nos jornais. Quando tentavam feri-lo dava o troco na hora, ganhando a fama de rebelde, mas também o respeito dos que jogavam com ele.



Fausto

Fausto gozou da máxima popularidade permitida a um artista, antes do advento do rádio. Até mesmo Fried, que fora longe demais, ficou em segundo plano, pois Fausto se exibiu para plateias muito maiores, no Brasil e exterior. A diferença maior entre os dois estava, porém, naquilo que ambos pensavam de si próprios. Fried encarava o futebol como status, Fausto como profissão. Ele foi, com efeito, o primeiro proletário consciente do nosso futebol.
Das conversas com sua mãe, e com os amigos – o incrível Jaguaré da Saúde, Tinoco, Russinho –, das muitas entrevistas que dava, sempre de cara amarrada, se deduz que todo seu esforço era para viver do futebol – não se promover através dele, mas viver dele. Tal esforço, numa fase carregada ainda de preconceito contra o jogador profissional, sobretudo o de origem pobre, consumiu-o.
A carga era, de fato, pesada. De amador – e nunca lhe pagaram a metade do que valia – queria passar a profissional; da várzea, queria passar a estrela internacional – e todos os seus contratos no exterior foram rescindidos dramaticamente, no Uruguai, na Espanha, na Suíça; de “carregador de piano”, no modesto Bangu, quis passar a primeira estrela do Vasco e do Flamengo – e a cartolagem, certa feita, chegou a impedi-lo de jogar, acionando, para consumar a arbitrariedade, até mesmo o Departamento de Censura Federal.
O conflito com Kruschner, técnico húngaro de enorme prestígio nos anos 30, que o empurrou para a humilhação e o sacrifício, ficou como exemplo do massacre a que estão sujeitos os que não se submetem – mas são fracos, e isolados, para resistir. Formalmente, o técnico estrangeiro tinha razão: a nova lei do impedimento, editada em 1925, matara o centro-médio. A questão, porém, era de fundo: arte popular contra sistemas importados de jogo. As poucas vozes que então se ergueram para aprofundar o problema foram abafadas por um velho e arraigado preconceito da nossa crônica esportiva: o de que futebol nada tem a ver com política.
Nos dois últimos anos de vida, Fausto criou a escola de centro-médios brasileiros: matada no peito, passadas elegantes, cabeça em pé, passe perfeito a qualquer distância. O meio de campo se tornou depois dele – e ainda é, cinquenta anos depois – a posição do “cobra” do time.
A cada jogo, precisava provar que aquela inovação do WM era má. Terminava o primeiro tempo botando os bofes pela boca, e não aguentava o segundo. Ou invertia, poupando-se no primeiro para deslanchar no segundo. Adiantava? Não. Os críticos se enchiam mais de razão: Kruschner é que estava certo. O futebol tinha de evoluir. Em todo o país, começou a se jogar no WM.
Diante da realidade, o menino preto de Codó, que um dia pusera a Europa de joelhos, mais parecia um guerrilheiro desarmado.





Sobre o autor
Joel Rufino dos Santos é carioca nascido em Cascadura, subúrbio do Rio de Janeiro. Historiador, Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Foi professor da Graduação e da Pós-Graduação nas Faculdades de Letras e Comunicação da UFRJ. Foi co-autor de um dos marcos da historiografia do Brasil com o livro História Nova do Brasil. Foi preso político na ditadura e escreveu de dentro do presídio cartas a seu filho Nelson a fim de explicá-lo de que não tinha feito nada de errado. Num misto de poesia, história, realidade e ficção, Joel Rufino faz florescer sua literatura para crianças. As cartas foram publicadas em 2000 no livro Quando voltei tive uma surpresa. Foi com seus textos infantojuvenis que recebeu dois prêmios Jabutis e duas indicações ao Prêmio Hans Christian Andersen (Dinamarca), considerado o prêmio Nobel da literatura infantil e juvenil. Em uma fase grande de sua vida, militou em prol dos negros e da visibilidade da cultura popular brasileira. Sempre a favor dos menos abastecidos, como ele foi, aceitava com simpatia os cargos públicos que possibilitavam lutar a favor da cultura afrobrasileira.

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PALMARINO- Para o Joel Rufino


                                               Por José Jorge

                                                              
Lá se vai
Um guerreiro dos Palmares
Guerreiro dos Palmares não morre, viaja
E já correu terras céus e mares
Influenciando a Abolição
Que já vem, que já vêm, que já vem
O que é que o baiano tem?
O que é que Pernambuco tem?
A Baía da Guanabara, a da Boa Viagem
As gentes do Dique do Tororó
O Pelourinho,
Um grito parado no ar
Tem brinco de ouro preto de Minas
Que ele deu pra Teresa, tem!
Caneta de sonhos, tem!
E como ele escreve bem
Faz prosa e escritos de ninar também
Só vai no Bonfim quem tem
Manoel Quirino, Lima Barreto, os Arcos e a Lapa, Heitor dos Prazeres, Di Cavalcanti
Machado de Assis, de Esaú e de Jacob


O Dia em que o povo venceu

                                            

                                              Setembro de 2015

terça-feira, 1 de setembro de 2015

AS IMPRESSÕES DE GILBERTO GIL SOBRE AS SEMANAS AFRO-BRASILEIRAS


Entrevista concedida a Marco Aurélio Luz no âmbito das Semanas Afro Brasileiras




Cartaz das SEMANAS AFRO BRASILEIRAS


Em 1974 participei a convite de Mestre Didi da realização das SEMANAS AFRO BRASILEIRAS no MAM Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Foi um momento histórico, um ponto de retomada na luta de afirmação do negro brasileiro através da exposição da riqueza de sua cultura fruto da reposição da continuidade do fluxo civilizatório africano no Brasil.
Das inúmeras atividades destacaram-se as apresentações musicais e o encontro de Gilberto Gil e Jorge Ben foi muito especial.
Depois dessa realização fui incubido de organizar um número da Revista de Cultura Vozes sobre as Semanas AFRO BRASILEIRAS publicada em 1977. Dentre as entrevistas publicamos agora a que fiz com Gilberto Gil também nos juntando as homenagens de seus 50 anos de realizações.





Gilberto Gil
Foto disponível na INTERNET




A presença de elementos negros nas composições de Gilberto Gil está ligada às suas origens, à sua identificação intuitiva com a cultura de raízes africanas. Ele fala da conscientização dessa presença e da marcante influência da maneira negra de cantar, tocar e dançar em todo mundo.



MA- Eu lhe perguntaria primeiro como você tomou conhecimento das Semanas Afro-brasileiras e da exposição de arte sacra negra?

GG- Foi através de Didi e Juanita. Eles me contaram na Bahia que tinham a intenção de fazer um encontro relacionado com a cultura negra e a arte negra. Perguntaram se eu gostaria de participar e eu achei legal, bacana, porque o trabalho de Didi é muito interessante e muito importante. O de Juanita também, um trabalho muito rigoroso de um outro ponto de vista. Ela é uma pesquisadora lúcida e aberta. Então eu achei legal.
MA-Você chegou a ver a exposição?
GG-Eu vi a exposição muito rapidamente no MAM e depois em São Paulo(Anhembi) na Feira da Bahia. Vi e achei muito bonita, com uma série de símbolos esculpidos, coisas antigas negras no Brasil, as indumentárias, muito bonito...






Exu, orixá princípio do movimento que proporciona  existência.
Exposição de arte sacra negra.
 Foto:M.A. Luz


Oxossi orixá princípio da caça, o provedor do alvorecer da humanidade.
Exposição de arte sacra negra.
 Foto M. A. Luz



Xangô, orixá do princípio de sociabilidade.
Foi o quarto rei de Oyó, cidade capital política do império nagô/yorubá.
Foto M.A. Luz



Oxum, orixá princípio dos mistérios e poderes femininos.
Paramentos emblemáticos, abebe de forma ventral, ventre fecundado, fertilidade.
Também é considerada patrona da música.
Seu ritmo característico é o ijexá.
Foto M. A. Luz 


MA- Você acha que ela lhe trouxe uma informação nova em termos de cultura negra?
GG- É, um pouco. Eu já tinha visto outra exposição ligada ao culto negro. Uma vez no Unhão, Museu de Arte popular[1], que tinha uma parte grande dedicada a toda essa coisa de arte negra na Bahia, ligada evidentemente ao culto e aos aparatos ritualísticos da religião. E foi muito interessante. Na época, foi a primeira coisa que eu vi dos trajes dos orixás, dos instrumentos. Eu já tinha visto na Bahia, de modo que em termos de abertura panorâmica em torno do espaço cultural negro, essa exposição talvez tenha sido mais marcante para mim. Mas a exposição do Didi é alguma coisa assim mais cuidada, mais sofisticada, e mais profunda. Porque ele se dedica exclusivamente a isso e é imbuído da função dele, como elemento de ligação entre a tradição e as comunidades. Do ponto de vista legal mesmo, institucional do terreiro Axé Opô Afonjá, onde ele tem uma função sacerdotal. Então ele leva muito a sério isso... não tenho dúvida.





Iwin Igi, o Espírito da Árvore.
Representação de ancestralidade masculina.
Escultura de Mestre Didi

Foto disponível na INTERNET




MA- Você já estava então familiarizado com o aspecto estético, artístico da cultura negra através do culto religioso?

GG-Já, mais ou menos, é evidente. Primeiro, porque na Bahia eu era muito ligado a todas essas coisas. Não diretamente, mas por força de polaridade, de magnetismo relativo a certas áreas como o turismo. Eu estava próximo da coisa de terreiro, que se fazia presente através de elementos comuns no teatro, na música. Então, desde adolescente já conhecia Valdeloir Rêgo, o gravador de Santo Amaro que agora esqueço o nome[2], e uma série de pessoas que estavam ligadas à música e à cultura negra. O Reitor Edgard Santos...

MA- Você ia no terreiro?

GG- Não, eu não ia ao terreiro. Mas é por isso que eu digo, eu conhecia tudo aquilo do terreiro que saía pra cultura popular e artes plásticas. Quase num nível tão respeitoso de divulgação quanto num nível mais vulgar de “folclorização”. Tudo isso chegava até nós em Salvador e era essa “ambiência atmosférica” que eu tinha. A primeira vez que eu fui a um terreiro, foi ao terreiro de Egun na ilha de Itaparica. Mais tarde fui a São Gonçalo, ao Axé Opô Afonjá.

MA- Isso foi quando?

GG- Isso foi agora, há dois ou três anos.

MA-Foi antes ou depois da exposição?

GG- Foi antes, alguns meses antes.

MA- Você acha possível uma recriação profana da música sacra na faixa em que você exerce, meio ligado à cultura popular e ainda ligado à cultura de massa através do disco, do show? No ambiente em que você produz, através dos canais que utiliza, é possível uma criação a partir da cultura popular, cuja divulgação fique vinculada à cultura de massa?

GG- Primeiro, eu acho que essa coisa hoje, o divisor de águas entre esses dois espaços, é muito difícil de estabelecer. Assim, no Rio, São Paulo e Salvador, cultura de massa e cultura popular estão cada vez mais misturadas mesmo.

MA- Nesse caso, a música sacra dos terreiros seria a marca desse divisor de águas, isto é, a música das casas mais tradicionais, que não estão ligadas a esses dois circuitos a não ser indiretamente?

GG- É o que escoa dali pra fora.

MA- Você vê uma aproximação mais direta com a música de culto, o conjunto de Djalma Correia (Bahiafro) por exemplo, fazendo uma recriação melódica, rítmica, como uma possibilidade de trabalho pra você?

GG- Claro que é possível você fazer um estudo, um recolhimento de material básico de música sacra negra, música de culto, de terreiro. Claro que você pode recriar em vários níveis: nível sinfônico, camerístico, regionalista, cânticos de coros, reproduções primárias e diretas com o que se apresenta o próximo ao próprio terreiro. Mas a formação da alma brasileira, dos arquétipos negros ligados ao canto e à dança, às manifestações lúdicas, ligadas evidentemente à religião e ao culto dos orixás se apresentam já como uma resultante, numa manifestação do que a gente chama de cultura popular. Então, a maioria dos gêneros de música brasileira vem diretamente dos toques, dos cânticos. Maracatu, samba, jongo, coco, cateretê etc. São música negra, com nomes vindos das línguas africanas faladas pelas primeiras comunidades a se instaurarem aqui no Brasil. É tudo uma adaptação para moldes urbanos de um toque daqueles que vem de lá da comunidade de culto, e isso não é só no Brasil. Em Cuba, em todo o Caribe a música é isso. O calipso, o mambo e o bolero são toques de orixá. É difícil você pensar na necessidade de uma utilização sistemática da coisa para revela-la. Acho que ela já é muito revelada inconsciente e conscientemente também. O samba na alma brasileira, sendo negro, vem da religião negra também.




Samba de roda do Recôncavo Baiano.
 Foto disponível na INTERNET


MA- Você veria uma distinção entre o samba urbano e o samba de roda cantado em Salvador e no Recôncavo? Eu percebo o samba de roda como uma recreação da qual as pessoas participam diretamente e acabam todos se integrando à roda. Esse samba comunal, originário, seria também o samba de morro carioca, o partido alto.

GG- O coco do norte também é assim, a mesma coisa. Roda, palmas, uma repartição da responsabilidade funcional por todos os elementos. Cada um funcionando ordenadamente não é a mesma coisa...   
MA- Esse samba comunal é produzido ``naturalmente´´. Assim, quando o sambista do morro do Rio foi sondado para vender um samba, ele não entendeu como poderia vender algo que fazia parte da roda e era cantado durante o carnaval, na praça XI. Os compositores e a comunidade podiam levar seus sambas pra exibir aos grupos que se aglutinavam ali. Na passagem do samba e outros gêneros pra cultura de massa, observamos uma adaptação para a classe média. O samba passa a participar do rádio onde já entra com outros instrumentos, como o pandeiro, viola, cavaquinho, violão...

GG- Banjo, clarinete... Houve uma adaptação paralela à que os negros tinham feito na América. O inicio da música de massa no Brasil, através de instrumentos brancos, com Pixinguinha, João da Bahiana, Donga e todo o pessoal do início do século  é influenciado pela formação do Jazz-band. Os conjuntos brasileiros se formam na base dos instrumentos de madeira, metal. É trambone, trompete, banjo, como nos EUA...

MA- Os negros americanos, não podendo tocar os atabaques, transformam os instrumentos brancos com uma característica rítmica própria. No Brasil, seria essa manifestação também resultante de uma repressão?

GG- Eu não sei. Não conheço bem a história da repressão aos folguedos negros, ao músical, à “opera negra” no início do século no Brasil. Conheço passagens a respeito do maxixe, por exemplo, que foi denunciado como obsceno por Rui Barbosa, e seus dançarinos acusados de atentarem contra o pudor público. Tentaram proscrever o maxixe que era um ritmo de origem negra. Sei também da repressão aos capoeiristas, da reação do mundo branco aos jogos, danças e músicas que eu chamei de “ópera negra” do início do século. Mas não me parece que a coisa possa ser vista como nos EUA. Os negros daqui tinham mais liberdade de tocar e cantar e de uma certa forma isso era até apreciado pelos brancos. O negro americano não podendo cantar o seu canto nas fazendas de algodão procurou cantar de uma forma branca.

MA- Você acha que aqui, ao invés de ser pressionado pelo sistema para vender seu samba, o compositor por si mesmo resolveu fazer samba para o rádio?

GG- Mas isso é claro. A casa Edison começou nos anos 20 e foi pegando o pessoal. Donga, Pixinguinha e João da Bahiana estavam gravando desde o tempo da casa de tia Ciata. Enquanto os jovens ainda rodavam aquela casa, eles já estavam gravando. Aqui foi bem diferente, quer dizer, eu tenho a impressão que a coisa aqui já começou ao nível de aculturamento das coisas negras. A passagem das coisas negras para o instrumental branco, o modus operandi da música branca, já se deu com o advento da industrialização, da divulgação da música de massa.



Pixinguinha e Louis Amstrong .
Foto disponível na INTERNET

MA- Você acha que apesar dessa adaptação foi mantida uma característica marcante ligada àquelas raízes?

GG- Acho, sem dúvida. Mais ainda que nos EUA, de certa forma por causa da liberdade religiosa que foi mantendo a tradição. Por isso, até hoje, qualquer jovem mais informado pode identificar claramente as características básicas, primitivas de nossa música. Ainda que não possa denominar porque desconhece os nomes de cada ritmo. Se alguém ouve o afoxé, o ijexá ou as batidas-congo ligadas ao maracatu identifica como sendo uma coisa de raiz negra, ou melhor, uma coisa negra de raiz. Nos EUA não se dá isso, pelo menos de modo geral.

MA- Eu acho que no Brasil, a adaptação negra dada a esses instrumentos brancos seria algo mais desejado, uma alternativa mais livre, mesmo melodicamente. Porque o jazz, como única saída para o negro americano, me parece, até melodicamente, algo rebelde às regras musicais brancas de então.

GG- Mas de certa forma rebelde a partir delas, tendo nelas a única escolha. A princípio, os negros pegavam naqueles instrumentos para tocar as marchas militares que as bandas brancas tocavam em desfiles pela cidade. Então, quando os negros tinham acesso a esses instrumentos, eles tentavam um mimetismo do que os brancos faziam, uma coisa assim de moleque de rua que acompanha a banda tentando tocar um trombone imaginário. Quando ele pegava o trombone tentava fazer o que o branco fazia, mas evidentemente, levava o seu elemento real, concreto, quer dizer, não podia usar uma forma idêntica a do branco porque ele era negro e tinha outra cultura musical. O jazz é bateria, e esse ritmo todo o que era? Tentando imitar a marcha militar, o negro colocava toda uma onomatopeia , uma polivalência rítmica que vinha de seu mundo e não existia no mundo branco.




St.Louis Cotton Club Band.
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MA- O conjunto regional, viola, cavaquinho, pandeiro, já caracterizava marcadamente a música popular adaptada de bases negras, não é?

GG- É, o violão...

MA- Na época em que a música popular, já misturada com a cultura de massa, atingia o público das universidades, vocês (Gil, Caetano) introduziram instrumentos elétricos nessa música, o que gerou uma polêmica.

GG- Uma discussão muito grande na época. Mas uma bobagem, porque o rock tinha sido um movimento musical eminentemente negro, feito com instrumentos elétricos pelos negros dos EUA. Little Richard, Chuck Berry, os blueman de Chicago, Albert King e outros provocaram essa transição do Blues até chegar ao rock. Foi uma coisa feita exatamente num sentido antropofágico. O negro chegava nos lugares e tomava os instrumentos elétricos do mesmo modo como tinha tomado de assalto os trombones e clarinetes do fim do século passado em New Orleans. Esses instrumentos elétricos, possibilitados pelo desenvolvimento tecnológico nas grandes cidades, nos guetos de Chicago e em toda New York, foram formando o que veio a dar no rock and roll, no soul music. Houve também influencia das igrejas protestantes negras, onde já se fazia uma outra mistura composta com a música branca gregoriana e sacra. Então, quando a gente usou a guitarra elétrica aqui no Brasil, o pessoal deu uma grita. Na verdade, guitarra elétrica, no sentido da abordagem que a gente estava fazendo, era essencialmente negra. Já tinha sido feita e não era nada elitista, pelo contrário. O instrumento elétrico foi dos que mais possibilitou a divulgação da música negra de base.

MA- É que o corpo começou a se mexer...

GG- Totalmente, deixando de ser uma coisa negra para ser nacional e universal. Sob todos os aspectos era absurda a reclamação do uso da guitarra elétrica como provocador de alienação do material brasileiro. Nesse sentido, o material brasileiro é bem parecido com o americano. O que tinha sido bom lá, deveria ser necessariamente bom aqui. Assim, para Pixinguinha e outros, foi bom a utilização do desenvolvimento de uma adaptação de instrumentos que já tinha ocorrido na América. Não havia razão para não se fazer isso de novo. Mas como havia um desconhecimento e mesmo uma alienação histórica, ninguém entendeu. Os críticos rejeitavam em função de valores aprendidos na periferia, na proximidade histórica deles. Se você fosse dizer que o jazz band brasileiro, que até a década de 40 ainda era escrito j-a-z-z nas baterias das cidades do interior do Brasil, era inspirado no modelo americano, eles não se queixariam de uma abordagem disso. Mas eles pensavam que o conjunto regional tinha nascido em solo brasileiro...

MA- Em relação a sua experiência musical nas semanas Afro-brasileiras, o que você diria?

GG- Eu gostei. Não se pode dizer que essa experiência tenha sido “suigeneris” ou particularizante. Ela não estava dissociada dos eventos geralmente presentes no contexto de música popular, como arte popular. Também não resultou de uma visão reservada a um aspecto cientifíco da cultura negra, apesar de estarem lá o Jorge Bem, o Macalé, o conjunto do Djalma(Bahiafro), enfim, artistas que trabalham material musical negro. Eu não acredito que houvesse uma consciência da diferenciação buscada através das semanas, como de cultura e arte negra. Muita gente foi lá para assistir a mais uma apresentação de Gilberto Gil, Macalé, Jorge Bem e outros. Mas mesmo assim, a idéia de coisa negra existia, evidentemente. Houve momentos em que se buscou uma integração mais íntima do nosso trabalho, A música que a gente produz como a do Bahiafro, mais ligada a de culto. Lembro que, naquela noite, tocamos reproduções de toques de Oxalá, de Ogum e de Xangô. O Bahiafro estava tocando e cantando e nós nos preocupamos em nos juntarmos a eles. Houve um caráter de improviso do canto negro. Através de mim, do Jorge, do Macalé e outros músicos que estavam ali, muitos de formação eminentemente branca, do rock inglês ao neoclassicismo e dessa fase atual. Foi um trabalho de integração. Foi assim que eu senti.






Vadinho, alabe integrante do Bahiafro




                 Gil e Djalma Corrêa do Bahiafro


MA- Você acha que houve integração ou ficaram marcadas as diferenças?

GG- Não, eu acho que houve integração mesmo. Porque ninguém pode negar que a música do mundo de hoje é a música negra. Hoje, ao contrário do que houve no inicio do século nos EUA, os brancos aprovam a música negra. Os brancos do mundo inteiro, da Suécia, da Alemanha, tocam o que Jimmy Hendrix tocou. Os brancos e todo o seu aparato eletrônico, ao nível de música popular, exploram as polirritmias africanas que vieram com o jazz e hoje já são procuradas na própria fonte. Em muitos conjuntos de jovens ingleses há um músico da Nigéria ou mesmo músicos das West Indians, da Jamaica ou do Brasil. Todo conjunto americano de música progressiva atual tem um percussionista brasileiro...

MA- Você acha que no Brasil houve uma mudança na forma de cantar, isto é, a influência operística italiana cedeu terreno a uma forma mais negra de canto, mais anasalada? Essa mudança teria sido provocada por João Gilberto?

GG- Ele não buscava a excelência da voz, como se faz no canto erudito branco, mas sim a excelência da alma, numa emissão mais natural, mais malemolente, mais negra mesmo.


MA-Eu acho Clementina também representativa de um padrão negro de cantar

 Clementina é canto de terreiro, de comunidade negra. Uma forma anasalada, gutural, mais onomatopaica e  convulsiva no sentido de que veicula necessariamente uma energia de corpo inteiro. Não é uma forma de cantar buscada no refinamento, no falsete do bel canto, na ascese branca. Canta o corpo todo passando pela garganta, sacode a voz, sacode as palavras, tudo. É a escola negra.

MA- Você é dessa escola, não é? De certa forma é um caminho que João Gilberto já tinha reivindicado 


 GG- É, eu sou mais daí, e meu trabalho todo é possibilitado por João Gilberto. Paradoxalmente, foi ele quem deu consciência disso tudo. Ele é um marco indescritível dentro da música popular brasileira. Ainda não temos um distanciamento histórico necessário para entender a magnitude do trabalho de João Gilberto. A abertura dada por ele é que possibilita uma visão das coisas que nós estamos falando. Porque ele aproxima o canto negro de suas raízes e ao mesmo tempo atenua a música do branco no canto negro. É um exercício de unidade da música brasileira, onde ele “amacia” e unifica todas as tendências. Do preciosismo musical, no sentido da racionalidade da escala, da música europeia, ao caráter negro da simplicidade do canto. Ele canta parecido com Jackson do Pandeiro, Dorival Caymmi e todos esses mulatos que herdaram diretamente as influências primitivas da arte musical negra no Brasil. O que ele realizou é muito grande e abre possibilidade para todas essas reciclagens, em termos de análise e síntese, como a “jovem guarda”,”tropicalismo” e Milton Nascimento hoje em dia.

MA- Antes de conhecer o trabalho de João Gilberto você já cantava com essa tendência?

GG- Já, porque até então, minha fonte era o nordeste, com Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Jorge Veiga e outros. Eu já era muito identificado com a coisa negra, pela alma mesmo, pela intuição, sabe?

MA- E João Gilberto possibilita uma continuidade deste espaço.

GG- É, João é quem dá mesmo o espaço pra gente.

MA- Você ditou Caymmi como próximo das influências primitivas da música e canto negros. Isso, mesmo na época das “músicas da noite”, das composições com Guinle?


GG- É difícil responder, porque o encanto que uma pessoa como Caymmi tem por esse tipo de música já vem de sua própria alma. Porque essa música de boate também é uma reprodução dos blues, Billy Holiday, enfim, todo esse slow blues que acabou dando a “música de noite”. O samba-canção é uma derivante do blues, e do século passado para cá o circuito fechou e pronto: a música do mundo passou a ser negra. E vem muito da América, porque a música se popularizou no mundo através dos meios fonomecânicos possibilitados pela indústria americana, que é de formação negra, daí...No Brasil essa influência foi muito grande porque as fontes americanas eram basicamente as nossas. É evidente que existe o lado econômico e social dessa influência mas no que a gente ouviu de mambo,bolero e calipso tem muita alma.


Caymmi Oba Onikoyi, integrava o corpo dos Obá de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá.
Na foto está presente com Stella sua esposa na confirmação do Osi Oju Obá em 1977.
Acervo M.A. Luz



MA- O que já se chamou de “Américas Negras”, não é?

GG- É verdade, e como eu disse, a questão econômica não está só. Existe uma identificação mesmo.

MA- A primeira vez que você tocou com Jorge Ben foi nas Semanas Afro-brasileiras?


GG-Em público, foi a primeira vez. Foi um momento em que houve um reconhecimento de “parentesco”, uma constatação da matriz, digamos, de uma matriz única. Foi ali que se criou essa consciência. Nem tanto para mim ou para ele, que já sabíamos, mas em termos de um consenso de que Gil e Jorge têm coisas em comum. Daí, surgiu o disco em que atuamos juntos. O nome dos dois orixás, Xangô e Ogum, colocados no disco, têm muito a ver com aquele encontro das semanas Afro-brasileiras no MAM, que ficou como um signo de identificação do nosso trabalho. Não se pode dizer que foi exatamente ali que se revelou isso ou aquilo mas que foi um encontro revelador eu não tenho dúvida.






As Semanas Afro Brasileiras rendeu muitos frutos,um deles foi  a aproximação de Gil e Jorge Ben Jor.
Foto disponível na INTERNET


MA- Ali houve uma polarização do aspecto negro. E dentro disso, como você vê a música do Jorge?


GG- Eu vejo a música de Jorge como a que mantém elementos mais nítidos da complexidade negra na formação da música brasileira. Modos diferentes musicais vieram para o Brasil através de várias nações africanas. Jorge assume o que veio do norte da África, o muçulmano, como elemento básico do seu trabalho. Ele não gosta de perder a perspectiva primitivista, não deixa de se ligar no Gege, Ketu, Yoruba. Mas ele tem um outro lado que inclui o moderno.

MA- Muita coisa assim de espírito de Rio de Janeiro, certo?

GG- Um Rio complexo, uma negritude carioca. Eu diria que a escola de samba, por exemplo, é uma coisa mais simplificada do que a música de Jorge Bem. Sua música é muito mais complexa em termos de integralidade negra, mais do que o chamado samba-enredo, que se estabeleceu como um clichê da escola de samba. Os elementos da música do Jorge são muito diversos e isso é bem descrito em Zumbi, quando ele fala das diversas nações, convocando Angola, Congo como num discurso meio messiânico. Ele tem consciência de uma integralidade e sua complexidade decorre daí e vice-versa.

MA- Eu acho Charles 45 um motivo bem carioca...

GG- É, ao mesmo tempo ele é um garoto carioca da atualidade de escola de samba. Mas o que o distingue dos outros sambistas é a consciência de uma complexidade negra, a manutenção na música de nítidas diferenciações de elementos. Assim ele compõe baseado em vários ritmos especificamente negros, e compõe samba, mas diferente da maioria dos compositores de escola de samba, que produz uma música cultivada na escola, um híbrido já todo pronto sem nenhuma das diferenciações elementares dos ritmos básicos. O Jorge consegue essa elementaridade e denomina as diversas escolas negras.




MA- Você poderia dizer quais das suas músicas estariam mais próximas ou não desses valores, desses elementos básicos da cultura musical negra?

GG- Algumas composições minhas nascem da necessidade de mostrar um conhecimento sobre os ritmos negros. Filhos de Gandi está nitidamente dentro dessa linha. É uma música feita sobre afoxé com o tema afoxé ligado ao ijêxa. Abra o olho, não quanto à letra mas quanto à música, também é construída sobre esses ritmos. Em domingo no parque já entra ritmo de capoeira mas há ijêxa também. Enfim, em outras músicas minhas pode ser identificado um ou outro elemento básico de música negra mas isso não é tão nítido quanto no trabalho de Jorge Ben. Não há essa intencionalidade inconsciente que torna o trabalho dele tão completo. E eu digo inconsciente, porque pelo menos para mim, não sei como é com o Jorge, não é muito consciente. Agora sim, eu talvez vá fazer um disco na África. Eu quero gravar com o pessoal da Nigéria e buscar uma ligação mais direta com o que se canta nos terreiros, nas comunidades periféricas aos centros de religião negra no Brasil, na Bahia.



Alegria na identificação e na amizade



MA- Essa aproximação com Jorge Bem lhe trouxe uma indicação de trabalho.

GG- É, Jorge Ben é para mim uma espécie de mestre. Eu tenho muitos mestres mas ele é um mestre em exercício, mais um par talvez, na medida que existe muito dele nessa minha vontade de dar nitidez aos matizes das matrizes negras do meu trabalho. Isso aparece nos meus shows quando eu improviso. Um lado assim preto velho que está no meu mundo... minha avó, tias velhas, meu pai. Um vocabulário onde entram palavras nagôs, ditas com aquela guturalidade negra na voz. Fica assim como um reencontro com minha formação mais primária.

MA- Sua família era de Salvador?

GG- É. Minha família veio da África mas eu não sei de qual nação. Meu bisavô foi escravo, mas se emancipou antes da abolição. Ele adotou então um nome português -Moreira- e criou família. Meu pai era órfão e foi criado por uma tia com muita dificuldade mas conseguiu ser um profissional liberal, médico. Aí então se casou, formou família. Minha mãe, assim como meu pai, sabe muito pouco sobre suas origens. Não é como uma família abastada com árvore genealógica. Eles teriam que buscar o que existe de documentação sobre a formação de nossa família. De meu avô para traz fica muito difícil localizar parentesco, origem.

MA- Está bem, É isso aí...
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Notas
1. A exposição a que Gilberto Gil se refere constituía o “setor Afro-Bahiano” e foi organizada pelo próprio Didi -Deoscoredes M. dos Santos- em 1965
2.O gravador de Santo Amaro é Emanuel Araújo.

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Acima vídeos que contextualizam a parceria entre Gilberto Gil e Jorge Ben Jor e a música que Gil fez em homenagem ao ancestral Baba Alapalá.