sábado, 27 de dezembro de 2025
quarta-feira, 19 de novembro de 2025
Pronunciamento de Abdias Nascimento em 17/10/1997 -Discurso no Senado Federal
HOMENAGEM PELO TRANSCURSO DOS 80 ANOS DE DEOSCOREDES MAXIMILIANO DOS SANTOS, MESTRE DIDI, A MAIOR FIGURA VIVA DA TRADIÇÃO RELIGIOSA AFRO-BRASILEIRA.
Abdias do Nascimento
Imagem
disponível em https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/abdias-nascimento/exilio/
O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ. Pronuncia o seguinte
discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, sob
a proteção de Olorum, inicio este pronunciamento.
Se a cultura africana é a principal matriz da cultura brasileira,
a religião constitui o ponto focal de onde essa cultura se irradiou. Pois é na
prática religiosa que se encontram os elementos constitutivos da visão de mundo
e da cosmogonia africanas, onde se expressam com maior profundidade e clareza
os traços fundamentais que caracterizam a maneira africana de ser e estar no
mundo. Não foi à toa que os europeus, ao invadirem e ocuparem o continente
africano, buscaram sempre destruir ou, pelo menos, neutralizar as manifestações
religiosas, que percebiam claramente como o principal esteio ideológico a
sustentar a identidade individual e de grupo, sem a qual os africanos seriam
presa fácil da exploração e da inferiorização humana promovidas pelos
"colonizadores".
Transplantadas para as Américas com o tráfico de africanos escravizados,
as religiões africanas aqui desenvolveram, como forma de sobrevivência, a
estratégia do disfarce e do silêncio. Nesse contexto, a oralidade impôs-se como
necessidade, não apenas do ponto de vista de sua dinâmica interna, mas também,
e principalmente, de seu posicionamento de defesa diante da cultura branca
dominante. Daí o primado da tradição, que, num sistema de comunicação oral,
constitui o veículo de conservação e transmissão do saber, através do tempo e
do espaço, entre as gerações.
Ilesaiyn casa de adoração aos ancestrais
masculinos os Egungun no ile Asipa, fundado por Mestre Didi Alapini.
Disponível em Wikipedia
Disponível em https://br.pinterest.com/pin/296111744231868603/
Imagem disponível em https://memoriafeminista.com.br/imagens/mae-aninha/
Axé Opô Afonjá, com prefácio de Pierre Verger e notas de Roger
Bastide, editado no Rio de Janeiro em 1962, pelo Instituto de Estudos
Afro-Asiáticos; Contos de Nagô (1963), com ilustrações de Carybé, pela GRD do
Rio de Janeiro; West African Rituals and Sacred Art in Brazil, em co-autoria
com sua esposa, a Antropóloga Juana Elbein dos Santos, editado em 1967, pelo
Instituto de Estudos Africanos da Universidade de Ibadan, Nigéria; Um Negro
Baiano em Ketu, edição do Jornal A Tarde, Salvador, 1968; Ancestor Worship in
Bahia: The Egun Cult, editado pelo Journal des Americanistes, no 48º Encontro
das Sociétés des Americanistes, Paris, 1969; Eshu Bara Laroyê: A Comparative
Study, pelo Instituto de Estudos Africanos da Universidade de Ibadan (1971);
Eshu Bara: Principle of Individual Life in the Nago System, mais
uma vez em colaboração com Juana Elbein dos Santos, publicado em 1973, na
coletânea La Notion de Personne en Afrique Noire, edição do Centre National de
Recherche Scientifique, de Paris; Religião e Cultura Negra na América Latina,
em co-autoria com Juana Elbein dos Santos, publicado pela Unesco, em 1977, em
co-edição com a Siglo XXI, na coletânea África na América Latina;
Por que Oxalá usa Ekodidé,
Fundação Cultural do Estado da Bahia, Salvador, 1982; The Nago Culture in
Brazil: Memory and Continuity, na coletânea African Studies, edição da Unesco,
Paris, 1985; Xangô, El Guerrero Conquistador y Otros Cuentos de Bahia, Buenos
Aires, SD, 1987; no mesmo ano, Contes Noires de Bahia (Brésil), Paris, Editions
Khartala; Mito da Criação do Mundo, com litogravuras de Adão Pinheiro, Editora
Massangana, Recife, 1988; História de um Terreiro Nagô, pela Max Limonad, São
Paulo, 1989
Fiz questão de citar individualmente cada um dos componentes dessa
lista exaustiva apenas para ressaltar o fato de um autor brasileiro, com uma
vasta obra publicada em vários países de diferentes continentes e em diversos idiomas,
ser virtualmente desconhecido em sua própria terra. Talvez por não ser um
branco falando sobre o negro, mas, sim, um autêntico produtor da cultura
afro-brasileira, dotado de suficiente capacidade e ousadia para exprimir, com a
própria voz, a visão e os anseios de sua comunidade.
De par com seus deveres religiosos e sua obra literária, Mestre
Didi elaborou e desenvolveu também, desde a sua adolescência, um importante
trabalho na área das artes plásticas - particularmente depois de ter sido
eleito chefe do culto de Obaluaiê, e, como tal, estar incumbido da função e
responsabilidade do manejo dos materiais sagrados e de zelar pela tradicional
execução de emblemas e paramentos rituais.
Ibiri emblema de Nanan por Mestre Didi Asogba
Imagem disponível em https://museuafrobrasil.org.br/acervo/ibiri-emblema-do-orixa-nana/
Acervo de M.A.Luz
Em 1964, realizou em Salvador sua primeira exposição individual,
início de uma carreira que o consagraria como o artista mais expressivo e
autêntico da tradição africano-brasileira. Estados Unidos, Argentina, França,
Inglaterra, Nigéria, Gana - esses são alguns dos países em que ele expôs, em
mostras individuais e coletivas, suas belas e elegantes esculturas, elaboradas
com materiais como couro, búzios, contas, sementes e nervura de palmeira. Nelas
se fazem presentes os elementos plásticos dos modelos tradicionais em novas
concepções, esculturas-objetos diretamente inspiradas no significado dos
símbolos em suas relações míticas, testemunhando explorações estéticas
profundamente ligadas, do ponto de vista formal e conceitual, à cultura de que
se originam. Como explica o pesquisador Marco Aurélio Luz, "o valor máximo
da arte escultórica de Mestre Didi está em conseguir estabelecer um padrão
estético original que harmoniza a passagem do espaço no contexto das recriações
profanas, mantendo a complexidade simbólica e a profundidade das elaborações
sagradas".
Tudo isso valeu a Mestre Didi uma profusão de prêmios e menções elogiosas, inscrevendo o seu nome na reduzida galeria dos artistas plásticos brasileiros, de qualquer origem, considerados dignos de tal reconhecimento. Uma vez mais, porém, isso não lhe trouxe a merecida fama fora dos círculos especializados.
Encontro SECNEB
É o caso da Secneb - Sociedade de Estudos da Cultura Negra no
Brasil, de Salvador, na qual foi escolhido, em 1974, conselheiro e coordenador
de assuntos comunitários. Na mesma linha, cabe destacar o notável trabalho
educativo realizado pela Secneb, em conjunto com o Axé Opô Afonjá, que
funcionou por quase dez anos: a Minicomunidade Obá-Biyi - uma escola que
incorporou ao seu currículo, bem como à sua prática pedagógica como um todo, os
elementos fundamentais da tradição africana no Brasil. Embora interrompida em
função dos eternos problemas de recursos financeiros que infelizmente costumam
acompanhar iniciativas dessa natureza, a Minicomunidade constitui um marco
revolucionário na história da pedagogia no Brasil, tanto pela orientação
pedagógica, que contemplava os elementos fundamentais da tradição nagô, quanto
pela metodologia, caracterizada pelo respeito à alteridade ou à diferença,
fundamental num contexto de multirracialidade e pluriculturalismo.
Ainda assim, e embora os alunos que por ela passaram apresentassem
melhor aproveitamento dos conteúdos curriculares e sensível redução na evasão
escolar, burocratas do Ministério da Educação resolveram cortar as verbas que a
mantinham, sob a alegação de que se tratava de uma experiência "de cunho
religioso". Com os novos ventos que sopram de Brasília, onde temos pela
primeira vez um Presidente da República aparentemente preocupado em encaminhar
soluções para a questão racial neste País, esperamos que esse importante
projeto possa ser retomado.
Certa ocasião, no apartamento do casal Zora e Antônio Olinto,
fiquei conhecendo Mãe Senhora, a respeitada sacerdotisa do Axé Opô Afonjá, da
Bahia. Sentada numa poltrona imponente como um trono, Mãe Senhora indicou-me um
assento próximo a ela. Colocou suas mãos sobre minha cabeça e respondeu a minha
indagação: "Sim, você tem compromisso com os Orixás; mas sua tarefa não é
dentro do terreiro. Sua missão é trabalhar pelos santos lá fora". Conhecer
Mãe Senhora significou um reforço da velha amizade que me ligava a seu filho
Deoscóredes Maximiliano dos Santos, ou Mestre Didi. Com Mestre Didi, tive o
prazer de compartilhar uma experiência inesquecível, embora as palavras de Mãe
Senhora me tivessem desestimulado de um aprofundamento maior nos ensinamentos e
nos mistérios do candomblé.
Corria o ano de 1969 e eu, recém-chegado aos Estados Unidos, vivia
o período inicial de um exílio que deveria prolongar-se por mais de uma década.
Em Nova York eu havia retomado uma breve experiência, iniciada no Rio de
Janeiro, pintando alguns quadros com motivos afro-brasileiros. Certo dia,
recebi na casa em que estava hospedado a visita do Mestre Didi e de sua esposa
Juanita. Mostrei a eles minhas tentativas pictóricas. Numa determinada tela,
onde se viam Xangô e suas três esposas, na imagem de Oxum, Didi se deteve,
apontando-a para Juanita. Trocaram um olhar significativo e eu os interpelei.
Queria saber se, na minha superficial formação religiosa, havia cometido alguma
barbaridade sacrílega. Porém, ambos acalmaram minha ansiedade, indagando como e
por que eu havia colocado, no olho de Oxum, um símbolo de Ifá, o Orixá que vê o
passado e o futuro, e conhece o destino dos seres humanos. Respondi-lhes que
apenas havia expressado um impulso artístico, sem nenhuma outra intenção. Eles,
então, me ensinaram que Oxum era o único Orixá a quem Ifá havia concedido o
poder de, igual a ele, ver e conhecer a sorte dos homens e das mulheres. Mas a
mim Oxum estava concedendo a graça de conhecer todas as dimensões dos seus
poderes, por meio dos seus símbolos e emblemas rituais.
Assim, inspirado por esse encontro com Didi, tratei de ampliar
aquele momento tão significativo da espiritualidade afro-brasileira em plena
Nova York. Contatei um babalorixá norte-americano formado nos templos ñañigos
de Cuba - o sacerdote Oseijema, que atualmente dirige uma comunidade-templo na
Carolina do Sul. Oseijema preparou uma recepção à altura do Alapini
afro-brasileiro. Localizado no Harlem, o templo de Oseijema anoiteceu
iluminado, florido, com o corpo sacerdotal vestindo seus paramentos solenes. Os
tambores soaram, enchendo a noite de ritmos quentes. E Didi foi recebido
solenemente como um verdadeiro príncipe-sacerdote de sua raça. E ambos,
Oseijema e Didi, naquele encontro, mais uma vez testemunharam a importância das
religiões africanas como instrumentos de coesão e fortalecimento da cultura de
um povo separado e dividido pela violência do colonialismo escravista.
Entretanto as peripécias do exílio me levaram a um périplo de um
ano na Nigéria, Universidade de Ifé, na qualidade de professor-visitante. Entre
os colegas havia um Babalaô, quero dizer, um sacerdote de Ifá, a quem solicitei
que lesse para mim o opelê desse orixá. Foi uma cerimônia longa, demorada, ele
falando iorubá, um intérprete traduzindo do iorubá ao inglês e minha esposa,
Elisa Larkin do Nascimento, traduzindo o acentuado inglês nigeriano para o
português. Em resumo, Ifá me dizia que quem me havia escolhido para filho não
fora Xangô, conforme suposição de outros pais-de-santo que desconheciam a
difícil iniciação no universo de Ifá. Este me afirmara que eu era um filho de
Oxum. Aí então compreendi as palavras de Mãe Senhora e a razão daquela pintura
que provocara o comentário de Mestre Didi.
Para ultrapassar as abstrações manipuladas pela produção
mistificada da consciência, o negro é obrigado não apenas a se inserir
corretamente no sistema social de classes, forçando a sociedade dominante a lhe
abrir espaços como indivíduo e como coletividade. Deve também assumir seus outros
aspectos reprimidos, em especial os que se relacionam à rica tradição cultural
afro-brasileira, onde se encontram os elementos que lhe fornecem uma sólida
identidade histórica. Desse ponto de vista, Mestre Didi constitui referência e
referencial obrigatórios, exemplo e paradigma da humanidade afro-brasileira em
sua luta secular pela afirmação de sua dignidade.
Assim, os 80 anos de Mestre Didi, que agora se completam, são
motivo de comemoração e regozijo numa comunidade cujas tradições se fincam
profundamente no respeito e reverência aos mais velhos como sustentáculos e
transmissores da cultura.
Para marcar a data, a
Editora Pallas, do Rio de Janeiro, acaba de republicar "Por que Oxalá usa
Ekodidé", em edição fac-símile da primeira edição, de 1966, com
ilustrações de Lenio Braga. É nesse espírito que eu conclamo a todos a se
juntarem a mim na emocionada saudação que faço a esse baluarte da cultura
afro-brasileira:
Axé, Mestre Didi!
O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco-PT-SP) - Senador Abdias do
Nascimento, permite-me V. Exª um aparte?
O SR. ABDIAS DO NASCIMENTO (Bloco-PDT-RJ) - Com muito prazer, ouço
o nobre Senador Eduardo Suplicy.
O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco-PT-SP) - Quero cumprimentar V. Exª
pela extraordinária aula com que hoje premia o Senado Federal, que nos permitiu
conhecer, com a profundidade que demonstra V. Exª, a tradição religiosa
afro-brasileira. Em seu pronunciamento, V. Exª ressaltou que os colonizadores
que foram à África procuraram acabar sobretudo com os valores religiosos do
povo para que, com maior eficácia, explorassem e destruíssem muito daquilo que
era importante para o desenvolvimento dos povos africanos. Nesta homenagem a
Didi, V. Exª traz muito daquilo que nem todos nós brasileiros conhecemos e,
assim, brinda-nos com uma síntese de obra tão importante. Senador Abdias do
Nascimento, cumprimento V. Exª pelo discurso. Muito Axé!
O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco-PDT-RJ) - Agradeço o aparte de V.
Exª e o incorporo ao meu pronunciamento.
Gostaria também de lembrar a V. Exª, que é representante do Estado
de São Paulo, que Didi acaba de merecer, na última Bienal de São Paulo, uma
sala especial para mostrar a importante obra escultórica que está realizando,
em profunda conexão e simbologia com os terreiros de candomblé da Bahia.
Muito obrigado pelo seu aparte, que ajudou a reforçar as minhas
palavras desta tribuna.
Muito agradecido a V. Exª.
Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/10/1997 - Página
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segunda-feira, 10 de novembro de 2025
JANUÁRIAS E SUAS ESTAÇOES
Por Narcimária C.P. Luz
Uma forma de abraçar as saudosas e infindáveis lembranças de Mainha é revisitar as histórias que contam um pouquinho da sua vida e assim, revisitando essas convivências, percebi que Januária era uma explosão de translação.
Cada estação quer, como menina, adolescente jovem e mulher, espraiava uma intensidade de VIDA envolta das vibrações primavera, verão, outono e inverno.
Sua vida em constante translação
nos ofertou as Januárias que se seguem, são muitos episódios rápidos que vieram
à memória às vésperas do seu aniversário de 93 anos.
Levei sete anos para escrever algo que tocasse as lembranças desse amor que nutriu minha vida. Perder Januária fisicamente me causou uma grande dor. Hoje percebo que a maturidade do luto me deslocou para o terreno da saudade carregada de alegria e paz.
Aqui estou com meu coração debruçado nessas recordações que me emocionam e me fazem prosseguir sem ela fisicamente.
PRIMAVERA
Imagem
disponível em https://loja.mondiniplantas.com.br/rosa-roseira-rosa-mery
Seu nascimento em 10/11/1932 era lembrado com muita alegria por
minha avó Anastácia, que teve o anúncio de sua chegada por meio de um pé de
roseira bem rosa, que floresceu na varanda de casa e exalava um perfume
extraordinário.
Ela deveria nascer em casa, no bairro de Quintas, na cidade de
Palha, hoje Cidade Nova, mas, pelas circunstâncias do parto, foi para a
Maternidade Climério de Oliveira, novidade na época, principalmente para a
população de descendência africana.
Acredito que a roseira conversou com minha avó, presenteando-a com
a sensação de que ela teria uma filha amorosa, doce, gentil, carinhosa, amiga,
mas também muito forte, destemida no lidar com os desafios da vida,
enfrentando-os com garra, coragem, permitindo o florescer constante de sonhos e
esperança ao redor.
E assim foi.
Teve dois irmãos, Jaime e Jair. Amava-os muito e se dedicava a
protegê-los.
Ela gostava de falar com alegria de seus aniversários na infância.
A decoração do chão da casa com folhas de pitanga e areia dava uma atmosfera
muito especial, herança africana. Minha avó Anastácia fazia pastéis deliciosos
e banana real, que era a sua preferida.
Tem o lado da Januária, dona de casa, zelosa, com bom gosto nas
escolhas da decoração, ineditismo nos eletrodomésticos(risos).
Sempre deu uma de arquiteta!
Fez coisas mirabolantes para manter o ritmo da casa e não
"deixar a peteca cair".
Não posso deixar de mencionar as decorações de São João que a transportavam em lembranças para a casa de seus pais.
A casa ficava linda!
E as iguarias?
Muiiiitas!
O sarapatel que fazia era famoso na Cidade Nova.
De-li-ci-o-so!
As iguarias saborosas da Semana Santa e o tom da organização e
sobriedade exigida no período inesquecível.
As árvores de Natal ela criava com um esmero que me encantava.
Até o final da vida, continuava a confeccionar suas árvores,
mantendo acesa a esperança nutrida pelo espírito de Natal.
A SUPER LUA
Imagem disponível
em https://depositphotos.com/br/photos/super-lua.html?qview=169614188
Além do ciclo da primavera vívido na trajetória de minha mãe, há
um especial que até hoje envolve minha vida e sonhos. Trata-se do perigeu que
gera a super lua, fenômeno que ocorre quando a lua se aproxima da Terra.
No imaginário de filha, minha mãe era era e é a super lua!
Quantas vezes ela aparecia grandiosa, enluarada, com uma força que
me abraçava, me retirando de momentos de perigo, medo, inseguranças, situações
que me agrediam e me paralisavam. Essa super lua Januária me devolvia a paz,
altivez e me dava poderes para prosseguir destemida.
Minha mãe possuía uma beleza e charme comentadíssimos!
Muito graciosa, elegante e sofisticada.
Admirava vê-la se maquiando.
Isso me inspirava!
Dizia: quando crescer, quero ser igual a ela!
Lembro-me dos seus vestidos, sapatos, bolsas, brincos, joias, perfumes, tudo que adornava sua beleza, identidade profunda ligada a Oxum, princípio feminino relacionado à maternidade, fertilidade, fecundação, cuida dos fetos e dos recém-nascidos até adquirirem a fala.
Tudo conforme anunciou a
roseira no seu nascimento.
VERÃO
Imagem disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/solsticio-de-verao-quando-acontece-e-o-que-significa/
Nessa estação Januária é ensolarada, brilhante, aquecida pela
alegria cheia de humor, atitudes de altivez e muita vontade de ser e viver.
Lembro-me de levá-la a um médico e, ao recebê-la, o médico se referiu a ela fazendo alusão à música de Chico Buarque "Januária na janela".
Como fala a música de Chico Buarque:
Toda gente homenageia
Januária na janela
Até o mar faz maré cheia
Para chegar mais perto dela...
Mesmo o Sol quando desponta
Logo, aponta os lábios dela"(1967).
Ela parou e olhou para ele, dizendo:
- Estou mais para cama do que para janela!
Rimos muito.
Outro episódio engraçadíssimo foi com Sidney Magal.
Imagem disponível em https://curtamais.com.br/goiania/sidney-magal-goiania-cantor/
Ela sempre admirou Sidney
Magal e eu estava no açougue quando ele entrou. Eu me aproximei e conversei com
ele sobre o quanto ela ficaria feliz se falasse com ela. Na época, ela estava
passando por uma depressão e esse contato faria muito bem para ela.
Então liguei e disse-lhe:
- Mainha, adivinha quem está aqui do lado e gostaria de lhe falar
com você?
- Quem?
- Sidney Magal!
- Ah! Tá.
- Januária? Aqui é Sidney Magal!
Tudo bem?
- Hum!
Sidney Magal me diz:
- Ela não está acreditando que sou eu.
Aí eu falei:
- Cante alguma música.
Ele cantou Sandra Rosa...
Ela continuou a não acreditar.
Lá paras tantas ela disse:
- Cante "eu te amo"
E ele não fez por menos, cantou
-Ah! Eu te amo! Oh! Eu te amo meu
amor!"
Isso em pleno açougue com todo
mundo olhando.
Risos.
No final ela se emocionou e ficou
radiante.
Ele foi no carro pegou uma foto e
autografou com os dizeres:
" Januária, te amo"
Fiquei muito feliz com esse gesto de Sidney Magal e o quanto de alegria que ele deu a ela nesse dia.
Seu aniversário de 80 anos, foi pleno de alegria e muitas reverências a sua trajetória.
Januária em seu aniversário ao lado do seu querido e amado irmão Jaime
Ela se divertiu muito!
A expansão da luz do verão fez resplandecer
o vigor da VIDA.
Conheci a música Despacito em
2017, através dela que dançava e cantava às vezes sentada ou com a bengalinha,
aludindo aos passinhos pequeninos que dava ao andar. Divertíamos muito com a
música!
"Mais Bonito não há"
interpretada por Tiago Iorc e Milton Nascimento, também a embalava, levando-a
até a infância com seu país, momento em que ela dizia ter sido o mais
esplendoroso para ela por estar mais protegida e recebendo muito amor e dengo.
Imagem disponível em https://musica.uol.com.br/noticias/redacao/2017/09/06/milton-nascimento-e-tiago-iorc-anunciam-turne-intimista-e-musica-inedita.htm
OUTONO
Imagem disponível
em https://www.ee.usp.br/proesa/esp/estacoes-do-ano/outono-e-um-bom-exemplo-das-postagens-do-blog
Januária soube semear!
Foi uma pessoa generosa aos extremos.
Sempre se doava ao próximo, sempre.
Sua inquietude criativa desde menina transformava sabugo de milho
em bonecas que eram compartilhadas com outras meninas.
Adorava música e muitas tocadas no rádio e interpretadas por cantoras
famosas dos anos 1930 e 1940. Ainda menina, ela cantava dramatizando, se
sentindo as próprias "cantoras do rádio".
Meu avô Januário só não gostava que ela cantasse Allah-la-ô,
marchinha do carnaval de 1941. Januária tinha 9 anos e acompanhava essa música
que foi sucesso total no rádio.
Imagem
disponível em https://www.facebook.com/photo.php?fbid=523134647696877&id=267295789947432&set=a.482947378382271
“Viemos do Egito / e muitas vezes nós tivemos que rezar / Alá,
Alá, Alá, meu bom Alá / mande água para Ioiô / mande água para Iaiá / Alá, meu
bom Alá”.
Composição de Haroldo Lobo e David Nasser e arranjo musical de
Pixinguinha. Sucesso no rádio, mas na Cidade Nova, na casa de Januário, não.
Formou-se em professora primária em 1952.
Na mesma época, foi admitida com louvor num concurso público para
professora pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia e foi trabalhar na
Escola Princesa Isabel, ao lado da casa de seus pais.
Formou-se pela Universidade Católica de Salvador em 1968, onde
também lecionou nos anos 1970. professora e vice-diretora do Colégio Estadual Governador
Lomanto Júnior em Itapuã e da Escola Rotary na ladeira do Abaeté.
Ensinou no Colégio Antônio Vieira e no Instituto Feminino da Bahia nos anos 1960 e 1970.
Como professora, semeou muitos frutos, dentre os quais dois estabelecimentos de ensino: um na década de 1950, a escola Nossa Senhora da Conceição em Quintas na Cidade Nova, com o apoio e entusiasmo de seus pais, e em 1978, a Escola Verde Recanto em Itapuã.
Amava ser educadora!
A poesia também a tornava um verão florescente, muito iluminado,
que aquecia a todos em volta. Nos ofertou belas poesias, hoje é um canal
valioso que nos liga às emoções que comunica Januária Outono.
Participou de muitos congressos na área de educação, apresentando comunicações sobre suas vivências exitosas na Escola Verde Recanto.
Contribuiu nas publicações: Identidade Negra e Educação em 1986
pela editora Ianamá; Poesias ilustradas com suas pinturas: "Mil Cores, mil
folhas..." pela Universidade do Estado da Bahia em 2009.
Descolonização e Educação: diálogos e proposições metodológicas com o artigo em coautoria comigo:"Educando através do repertório lúdico-estético dos provérbios afro-brasileiros". Nesse artigo, ela fala da sua trajetória nesse ciclo de translação.
Tudo lindo e intenso!
INVERNO
Muitas vezes no seu caminhar o frio, nublado e cinza apagava a
alegria.
Estudou numa escola primária que deixou marcas de muita tristeza e
dor, convivendo com o racismo atroz que dilacerava sonhos e alegrias. Realidade
dolorida ainda vivenciada por muitas crianças negras até os dias atuais.
Um dos episódios que ela lembrava e a entristecia foi um dia em
que defendeu seu irmão Jaime, ainda pequenino, de uns meninos que estavam
maltratando-o. A defesa que ela fez foi poderosa, tanto assim que os meninos
não se atreveram mais. Infelizmente, ela foi punida pela diretora que a chamou.
Ela, chorando com seus 8 aninhos, tentava explicar a situação sem sucesso.
Ela lembra que encostou a barriga na mesa da diretora, que pegou
uma grande régua e empurrou-a dizendo:
Afaste-se!
Chegue para lá, sua negrinha!
Diante dessa situação, muito nervosa, Januária desmaia. A diretora
chama uma funcionária para tirá-la de lá e essa pessoa pega uma compressa muito
quente e coloca na batata da perna esquerda da criança que desperta aos
prantos... Essa marca dessa queimadura ficou para sempre.
Sempre estudiosa, fez vestibular para a Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia e foi aprovada aos 22 aninhos.
Infelizmente, não teve a aprovação dos pais, por considerar o
curso inadequado para a época. Essa tendência artística era considerada um
caminho "estranho" para uma mulher.
Não achavam que era uma profissão adequada.
A perda inesperada de seu pai em 1960 a fez sofrer muito,
principalmente num momento em que eu tinha nascido. Parecia que meu avô sabia
que ia partir. Ele a alertava, dizendo.
-Filha, vamos batizar essa menina logo.
Nasci em junho, em agosto meu avô faleceu.
Um choque para minha mãe.
A perda de minha avó Anastácia em 1965 também foi muito difícil
para ela.
O falecimento de meu tio Jair, o caçula, a entristeceu muito e,
quando meu tio Jaime partiu, que era o irmão com quem ela interagia mais e
muito presente na vida dela , isso a abateu por demais.
Amou muito durante toda a vida.
Ofertou amor demais para quem
merecia e quem não merecia.
Muitas vezes, esse amor pleno de doação e entrega absoluta a fez
sofrer. Mas o tempo foi aplacando as decepções, fazendo-a calar e seguir em
frente.
Adorava ouvir a interpretação genial de Zé Ramalho cantando
"Sinônimos". A letra comunicava o sentimento sobre o amor para ela.
A artrose foi um dos seus desafios mais ferrenhos. Trouxe-lhe
tristeza e aos poucos foi tragando a sua alegria de viver.
Hoje, essas Januárias me visitam em sonhos vigorosos. Ela vem em
forma de abraços carinhosos, conselhos, conversamos, damos muitas risadas e
também passeamos muito em lugares inusitados. Às vezes, ela vem acompanhada de
minha avó Anastácia, com a qual tenho um grande vínculo. Acordo mais serena.
Outras vezes, elas vêm em forma de perfume, de uma música, de um sabor delicioso de comidas que ela fazia.
Exímia cozinheira!
As Januárias estão presentes na minha vida e na de meus irmãos
Narciso, Nailson e José Luís.
1985
Nossas vidas têm o cintilar da sabedoria, valores e atitudes que
ela semeou em nossos corações.
Os netos e netas, através de nós, dentro do possível, recebem esse
cintilar que ajuda a lidar com o mundo contemporâneo e seus desafios: Maurício,
Marcelo, Ana Carolina, Robert, Gabriela, Sophia, Zoe e Fraser.

Januária e seu neto primogênito Maurício
Januária e sua neta primogênita Ana carolina
Estou ciente de que não poderei dar conta nesse relato da riqueza
e fartura das histórias das amadas Januárias que preencheram minha vida e estarão vivas e pulsando
no meu coração para sempre.
Então concluo, apelando para o resplandecer de Januária e suas estações, Aprendi com ela ser necessário caminhar com leveza...
Olhar através da autocompaixão, atenta ao véu das aparências dos espelhos que seduzem e enganam.
Olhar com gratidão a explosão de vida que nos abraça todos os
dias.
Escutar com o coração, extraindo as surpresas das palavras que
acalmam a alma, nos encorajando a manter a cabeça erguida
Luto é dor!
É preciso, necessário, atravessar essa via confusa e sofrida da
perda... É uma travessia solitária! A maneira de sentir a perda, a partida de
pessoas tão valiosas na nossa vida, é singular... Não tema a demora desse ciclo
do luto!
A saudade vai se achegando, abraçando, acalmando...
As pessoas amadas que partiram, viram estar conosco por meio de
sonhos vívidos e acalentadores.
As lembranças vêm em forma de momentos envoltos em músicas,
danças, histórias, risadas, sabores, cheiros, lugares... Tudo se regenera
dentro de nós. Acredite! Mas saiba que não seremos mais os mesmos. Nossa
maneira de ver e estar no mundo muda radicalmente.
Paris 1991
JÁNUÁRIAS, TE AMO!
OBRIGADA POR TUUUUDO!
SALVE 10/11!















































