Por Narcimária C.P. Luz
Uma forma de abraçar as saudosas e infindáveis lembranças de Mainha é revisitar as histórias que contam um pouquinho da sua vida e assim, revisitando essas convivências, percebi que Januária era uma explosão de translação.
Cada estação quer, como menina, adolescente jovem e mulher, espraiava uma intensidade de VIDA envolta das vibrações primavera, verão, outono e inverno.
Sua vida em constante translação
nos ofertou as Januárias que se seguem, são muitos episódios rápidos que vieram
à memória às vésperas do seu aniversário de 93 anos.
Levei sete anos para escrever algo que tocasse as lembranças desse amor que nutriu minha vida. Perder Januária fisicamente me causou uma grande dor. Hoje percebo que a maturidade do luto me deslocou para o terreno da saudade carregada de alegria e paz.
Aqui estou com meu coração debruçado nessas recordações que me emocionam e me fazem prosseguir sem ela fisicamente.
PRIMAVERA
Imagem
disponível em https://loja.mondiniplantas.com.br/rosa-roseira-rosa-mery
Seu nascimento em 10/11/1932 era lembrado com muita alegria por
minha avó Anastácia, que teve o anúncio de sua chegada por meio de um pé de
roseira bem rosa, que floresceu na varanda de casa e exalava um perfume
extraordinário.
Ela deveria nascer em casa, no bairro de Quintas, na cidade de
Palha, hoje Cidade Nova, mas, pelas circunstâncias do parto, foi para a
Maternidade Climério de Oliveira, novidade na época, principalmente para a
população de descendência africana.
Acredito que a roseira conversou com minha avó, presenteando-a com
a sensação de que ela teria uma filha amorosa, doce, gentil, carinhosa, amiga,
mas também muito forte, destemida no lidar com os desafios da vida,
enfrentando-os com garra, coragem, permitindo o florescer constante de sonhos e
esperança ao redor.
E assim foi.
Teve dois irmãos, Jaime e Jair. Amava-os muito e se dedicava a
protegê-los.
Ela gostava de falar com alegria de seus aniversários na infância.
A decoração do chão da casa com folhas de pitanga e areia dava uma atmosfera
muito especial, herança africana. Minha avó Anastácia fazia pastéis deliciosos
e banana real, que era a sua preferida.
Tem o lado da Januária, dona de casa, zelosa, com bom gosto nas
escolhas da decoração, ineditismo nos eletrodomésticos(risos).
Sempre deu uma de arquiteta!
Fez coisas mirabolantes para manter o ritmo da casa e não
"deixar a peteca cair".
Não posso deixar de mencionar as decorações de São João que a transportavam em lembranças para a casa de seus pais.
A casa ficava linda!
E as iguarias?
Muiiiitas!
O sarapatel que fazia era famoso na Cidade Nova.
De-li-ci-o-so!
As iguarias saborosas da Semana Santa e o tom da organização e
sobriedade exigida no período inesquecível.
As árvores de Natal ela criava com um esmero que me encantava.
Até o final da vida, continuava a confeccionar suas árvores,
mantendo acesa a esperança nutrida pelo espírito de Natal.
A SUPER LUA
Imagem disponível
em https://depositphotos.com/br/photos/super-lua.html?qview=169614188
Além do ciclo da primavera vívido na trajetória de minha mãe, há
um especial que até hoje envolve minha vida e sonhos. Trata-se do perigeu que
gera a super lua, fenômeno que ocorre quando a lua se aproxima da Terra.
No imaginário de filha, minha mãe era era e é a super lua!
Quantas vezes ela aparecia grandiosa, enluarada, com uma força que
me abraçava, me retirando de momentos de perigo, medo, inseguranças, situações
que me agrediam e me paralisavam. Essa super lua Januária me devolvia a paz,
altivez e me dava poderes para prosseguir destemida.
Minha mãe possuía uma beleza e charme comentadíssimos!
Muito graciosa, elegante e sofisticada.
Admirava vê-la se maquiando.
Isso me inspirava!
Dizia: quando crescer, quero ser igual a ela!
Lembro-me dos seus vestidos, sapatos, bolsas, brincos, joias, perfumes, tudo que adornava sua beleza, identidade profunda ligada a Oxum, princípio feminino relacionado à maternidade, fertilidade, fecundação, cuida dos fetos e dos recém-nascidos até adquirirem a fala.
Tudo conforme anunciou a
roseira no seu nascimento.
VERÃO
Imagem disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/solsticio-de-verao-quando-acontece-e-o-que-significa/
Nessa estação Januária é ensolarada, brilhante, aquecida pela
alegria cheia de humor, atitudes de altivez e muita vontade de ser e viver.
Lembro-me de levá-la a um médico e, ao recebê-la, o médico se referiu a ela fazendo alusão à música de Chico Buarque "Januária na janela".
Como fala a música de Chico Buarque:
Toda gente homenageia
Januária na janela
Até o mar faz maré cheia
Para chegar mais perto dela...
Mesmo o Sol quando desponta
Logo, aponta os lábios dela"(1967).
Ela parou e olhou para ele, dizendo:
- Estou mais para cama do que para janela!
Rimos muito.
Outro episódio engraçadíssimo foi com Sidney Magal.
Imagem disponível em https://curtamais.com.br/goiania/sidney-magal-goiania-cantor/
Ela sempre admirou Sidney
Magal e eu estava no açougue quando ele entrou. Eu me aproximei e conversei com
ele sobre o quanto ela ficaria feliz se falasse com ela. Na época, ela estava
passando por uma depressão e esse contato faria muito bem para ela.
Então liguei e disse-lhe:
- Mainha, adivinha quem está aqui do lado e gostaria de lhe falar
com você?
- Quem?
- Sidney Magal!
- Ah! Tá.
- Januária? Aqui é Sidney Magal!
Tudo bem?
- Hum!
Sidney Magal me diz:
- Ela não está acreditando que sou eu.
Aí eu falei:
- Cante alguma música.
Ele cantou Sandra Rosa...
Ela continuou a não acreditar.
Lá paras tantas ela disse:
- Cante "eu te amo"
E ele não fez por menos, cantou
-Ah! Eu te amo! Oh! Eu te amo meu
amor!"
Isso em pleno açougue com todo
mundo olhando.
Risos.
No final ela se emocionou e ficou
radiante.
Ele foi no carro pegou uma foto e
autografou com os dizeres:
" Januária, te amo"
Fiquei muito feliz com esse gesto de Sidney Magal e o quanto de alegria que ele deu a ela nesse dia.
Seu aniversário de 80 anos, foi pleno de alegria e muitas reverências a sua trajetória.
Januária em seu aniversário ao lado do seu querido e amado irmão Jaime
Ela se divertiu muito!
A expansão da luz do verão fez resplandecer
o vigor da VIDA.
Conheci a música Despacito em
2017, através dela que dançava e cantava às vezes sentada ou com a bengalinha,
aludindo aos passinhos pequeninos que dava ao andar. Divertíamos muito com a
música!
"Mais Bonito não há"
interpretada por Tiago Iorc e Milton Nascimento, também a embalava, levando-a
até a infância com seu país, momento em que ela dizia ter sido o mais
esplendoroso para ela por estar mais protegida e recebendo muito amor e dengo.
Imagem disponível em https://musica.uol.com.br/noticias/redacao/2017/09/06/milton-nascimento-e-tiago-iorc-anunciam-turne-intimista-e-musica-inedita.htm
OUTONO
Imagem disponível
em https://www.ee.usp.br/proesa/esp/estacoes-do-ano/outono-e-um-bom-exemplo-das-postagens-do-blog
Januária soube semear!
Foi uma pessoa generosa aos extremos.
Sempre se doava ao próximo, sempre.
Sua inquietude criativa desde menina transformava sabugo de milho
em bonecas que eram compartilhadas com outras meninas.
Adorava música e muitas tocadas no rádio e interpretadas por cantoras
famosas dos anos 1930 e 1940. Ainda menina, ela cantava dramatizando, se
sentindo as próprias "cantoras do rádio".
Meu avô Januário só não gostava que ela cantasse Allah-la-ô,
marchinha do carnaval de 1941. Januária tinha 9 anos e acompanhava essa música
que foi sucesso total no rádio.
Imagem
disponível em https://www.facebook.com/photo.php?fbid=523134647696877&id=267295789947432&set=a.482947378382271
“Viemos do Egito / e muitas vezes nós tivemos que rezar / Alá,
Alá, Alá, meu bom Alá / mande água para Ioiô / mande água para Iaiá / Alá, meu
bom Alá”.
Composição de Haroldo Lobo e David Nasser e arranjo musical de
Pixinguinha. Sucesso no rádio, mas na Cidade Nova, na casa de Januário, não.
Formou-se em professora primária em 1952.
Na mesma época, foi admitida com louvor num concurso público para
professora pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia e foi trabalhar na
Escola Princesa Isabel, ao lado da casa de seus pais.
Formou-se pela Universidade Católica de Salvador em 1968, onde
também lecionou nos anos 1970. professora e vice-diretora do Colégio Estadual Governador
Lomanto Júnior em Itapuã e da Escola Rotary na ladeira do Abaeté.
Ensinou no Colégio Antônio Vieira e no Instituto Feminino da Bahia nos anos 1960 e 1970.
Como professora, semeou muitos frutos, dentre os quais dois estabelecimentos de ensino: um na década de 1950, a escola Nossa Senhora da Conceição em Quintas na Cidade Nova, com o apoio e entusiasmo de seus pais, e em 1978, a Escola Verde Recanto em Itapuã.
Amava ser educadora!
A poesia também a tornava um verão florescente, muito iluminado,
que aquecia a todos em volta. Nos ofertou belas poesias, hoje é um canal
valioso que nos liga às emoções que comunica Januária Outono.
Participou de muitos congressos na área de educação, apresentando comunicações sobre suas vivências exitosas na Escola Verde Recanto.
Contribuiu nas publicações: Identidade Negra e Educação em 1986
pela editora Ianamá; Poesias ilustradas com suas pinturas: "Mil Cores, mil
folhas..." pela Universidade do Estado da Bahia em 2009.
Descolonização e Educação: diálogos e proposições metodológicas com o artigo em coautoria comigo:"Educando através do repertório lúdico-estético dos provérbios afro-brasileiros". Nesse artigo, ela fala da sua trajetória nesse ciclo de translação.
Tudo lindo e intenso!
INVERNO
Muitas vezes no seu caminhar o frio, nublado e cinza apagava a
alegria.
Estudou numa escola primária que deixou marcas de muita tristeza e
dor, convivendo com o racismo atroz que dilacerava sonhos e alegrias. Realidade
dolorida ainda vivenciada por muitas crianças negras até os dias atuais.
Um dos episódios que ela lembrava e a entristecia foi um dia em
que defendeu seu irmão Jaime, ainda pequenino, de uns meninos que estavam
maltratando-o. A defesa que ela fez foi poderosa, tanto assim que os meninos
não se atreveram mais. Infelizmente, ela foi punida pela diretora que a chamou.
Ela, chorando com seus 8 aninhos, tentava explicar a situação sem sucesso.
Ela lembra que encostou a barriga na mesa da diretora, que pegou
uma grande régua e empurrou-a dizendo:
Afaste-se!
Chegue para lá, sua negrinha!
Diante dessa situação, muito nervosa, Januária desmaia. A diretora
chama uma funcionária para tirá-la de lá e essa pessoa pega uma compressa muito
quente e coloca na batata da perna esquerda da criança que desperta aos
prantos... Essa marca dessa queimadura ficou para sempre.
Sempre estudiosa, fez vestibular para a Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia e foi aprovada aos 22 aninhos.
Infelizmente, não teve a aprovação dos pais, por considerar o
curso inadequado para a época. Essa tendência artística era considerada um
caminho "estranho" para uma mulher.
Não achavam que era uma profissão adequada.
A perda inesperada de seu pai em 1960 a fez sofrer muito,
principalmente num momento em que eu tinha nascido. Parecia que meu avô sabia
que ia partir. Ele a alertava, dizendo.
-Filha, vamos batizar essa menina logo.
Nasci em junho, em agosto meu avô faleceu.
Um choque para minha mãe.
A perda de minha avó Anastácia em 1965 também foi muito difícil
para ela.
O falecimento de meu tio Jair, o caçula, a entristeceu muito e,
quando meu tio Jaime partiu, que era o irmão com quem ela interagia mais e
muito presente na vida dela , isso a abateu por demais.
Amou muito durante toda a vida.
Ofertou amor demais para quem
merecia e quem não merecia.
Muitas vezes, esse amor pleno de doação e entrega absoluta a fez
sofrer. Mas o tempo foi aplacando as decepções, fazendo-a calar e seguir em
frente.
Adorava ouvir a interpretação genial de Zé Ramalho cantando
"Sinônimos". A letra comunicava o sentimento sobre o amor para ela.
A artrose foi um dos seus desafios mais ferrenhos. Trouxe-lhe
tristeza e aos poucos foi tragando a sua alegria de viver.
Hoje, essas Januárias me visitam em sonhos vigorosos. Ela vem em
forma de abraços carinhosos, conselhos, conversamos, damos muitas risadas e
também passeamos muito em lugares inusitados. Às vezes, ela vem acompanhada de
minha avó Anastácia, com a qual tenho um grande vínculo. Acordo mais serena.
Outras vezes, elas vêm em forma de perfume, de uma música, de um sabor delicioso de comidas que ela fazia.
Exímia cozinheira!
As Januárias estão presentes na minha vida e na de meus irmãos
Narciso, Nailson e José Luís.
1985
Nossas vidas têm o cintilar da sabedoria, valores e atitudes que
ela semeou em nossos corações.
Os netos e netas, através de nós, dentro do possível, recebem esse
cintilar que ajuda a lidar com o mundo contemporâneo e seus desafios: Maurício,
Marcelo, Ana Carolina, Robert, Gabriela, Sophia, Zoe e Fraser.

Januária e seu neto primogênito Maurício
Januária e sua neta primogênita Ana carolina
Estou ciente de que não poderei dar conta nesse relato da riqueza
e fartura das histórias das amadas Januárias que preencheram minha vida e estarão vivas e pulsando
no meu coração para sempre.
Então concluo, apelando para o resplandecer de Januária e suas estações, Aprendi com ela ser necessário caminhar com leveza...
Olhar através da autocompaixão, atenta ao véu das aparências dos espelhos que seduzem e enganam.
Olhar com gratidão a explosão de vida que nos abraça todos os
dias.
Escutar com o coração, extraindo as surpresas das palavras que
acalmam a alma, nos encorajando a manter a cabeça erguida
Luto é dor!
É preciso, necessário, atravessar essa via confusa e sofrida da
perda... É uma travessia solitária! A maneira de sentir a perda, a partida de
pessoas tão valiosas na nossa vida, é singular... Não tema a demora desse ciclo
do luto!
A saudade vai se achegando, abraçando, acalmando...
As pessoas amadas que partiram, viram estar conosco por meio de
sonhos vívidos e acalentadores.
As lembranças vêm em forma de momentos envoltos em músicas,
danças, histórias, risadas, sabores, cheiros, lugares... Tudo se regenera
dentro de nós. Acredite! Mas saiba que não seremos mais os mesmos. Nossa
maneira de ver e estar no mundo muda radicalmente.
Paris 1991
JÁNUÁRIAS, TE AMO!
OBRIGADA POR TUUUUDO!
SALVE 10/11!




























.jpg)






