HOMENAGEM PELO TRANSCURSO DOS 80 ANOS DE DEOSCOREDES MAXIMILIANO DOS SANTOS, MESTRE DIDI, A MAIOR FIGURA VIVA DA TRADIÇÃO RELIGIOSA AFRO-BRASILEIRA.
Abdias do Nascimento
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disponível em https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/abdias-nascimento/exilio/
O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ. Pronuncia o seguinte
discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, sob
a proteção de Olorum, inicio este pronunciamento.
Se a cultura africana é a principal matriz da cultura brasileira,
a religião constitui o ponto focal de onde essa cultura se irradiou. Pois é na
prática religiosa que se encontram os elementos constitutivos da visão de mundo
e da cosmogonia africanas, onde se expressam com maior profundidade e clareza
os traços fundamentais que caracterizam a maneira africana de ser e estar no
mundo. Não foi à toa que os europeus, ao invadirem e ocuparem o continente
africano, buscaram sempre destruir ou, pelo menos, neutralizar as manifestações
religiosas, que percebiam claramente como o principal esteio ideológico a
sustentar a identidade individual e de grupo, sem a qual os africanos seriam
presa fácil da exploração e da inferiorização humana promovidas pelos
"colonizadores".
Transplantadas para as Américas com o tráfico de africanos escravizados,
as religiões africanas aqui desenvolveram, como forma de sobrevivência, a
estratégia do disfarce e do silêncio. Nesse contexto, a oralidade impôs-se como
necessidade, não apenas do ponto de vista de sua dinâmica interna, mas também,
e principalmente, de seu posicionamento de defesa diante da cultura branca
dominante. Daí o primado da tradição, que, num sistema de comunicação oral,
constitui o veículo de conservação e transmissão do saber, através do tempo e
do espaço, entre as gerações.
Ilesaiyn casa de adoração aos ancestrais
masculinos os Egungun no ile Asipa, fundado por Mestre Didi Alapini.
Disponível em Wikipedia
Disponível em https://br.pinterest.com/pin/296111744231868603/
Imagem disponível em https://memoriafeminista.com.br/imagens/mae-aninha/
Axé Opô Afonjá, com prefácio de Pierre Verger e notas de Roger
Bastide, editado no Rio de Janeiro em 1962, pelo Instituto de Estudos
Afro-Asiáticos; Contos de Nagô (1963), com ilustrações de Carybé, pela GRD do
Rio de Janeiro; West African Rituals and Sacred Art in Brazil, em co-autoria
com sua esposa, a Antropóloga Juana Elbein dos Santos, editado em 1967, pelo
Instituto de Estudos Africanos da Universidade de Ibadan, Nigéria; Um Negro
Baiano em Ketu, edição do Jornal A Tarde, Salvador, 1968; Ancestor Worship in
Bahia: The Egun Cult, editado pelo Journal des Americanistes, no 48º Encontro
das Sociétés des Americanistes, Paris, 1969; Eshu Bara Laroyê: A Comparative
Study, pelo Instituto de Estudos Africanos da Universidade de Ibadan (1971);
Eshu Bara: Principle of Individual Life in the Nago System, mais
uma vez em colaboração com Juana Elbein dos Santos, publicado em 1973, na
coletânea La Notion de Personne en Afrique Noire, edição do Centre National de
Recherche Scientifique, de Paris; Religião e Cultura Negra na América Latina,
em co-autoria com Juana Elbein dos Santos, publicado pela Unesco, em 1977, em
co-edição com a Siglo XXI, na coletânea África na América Latina;
Por que Oxalá usa Ekodidé,
Fundação Cultural do Estado da Bahia, Salvador, 1982; The Nago Culture in
Brazil: Memory and Continuity, na coletânea African Studies, edição da Unesco,
Paris, 1985; Xangô, El Guerrero Conquistador y Otros Cuentos de Bahia, Buenos
Aires, SD, 1987; no mesmo ano, Contes Noires de Bahia (Brésil), Paris, Editions
Khartala; Mito da Criação do Mundo, com litogravuras de Adão Pinheiro, Editora
Massangana, Recife, 1988; História de um Terreiro Nagô, pela Max Limonad, São
Paulo, 1989
Fiz questão de citar individualmente cada um dos componentes dessa
lista exaustiva apenas para ressaltar o fato de um autor brasileiro, com uma
vasta obra publicada em vários países de diferentes continentes e em diversos idiomas,
ser virtualmente desconhecido em sua própria terra. Talvez por não ser um
branco falando sobre o negro, mas, sim, um autêntico produtor da cultura
afro-brasileira, dotado de suficiente capacidade e ousadia para exprimir, com a
própria voz, a visão e os anseios de sua comunidade.
De par com seus deveres religiosos e sua obra literária, Mestre
Didi elaborou e desenvolveu também, desde a sua adolescência, um importante
trabalho na área das artes plásticas - particularmente depois de ter sido
eleito chefe do culto de Obaluaiê, e, como tal, estar incumbido da função e
responsabilidade do manejo dos materiais sagrados e de zelar pela tradicional
execução de emblemas e paramentos rituais.
Ibiri emblema de Nanan por Mestre Didi Asogba
Imagem disponível em https://museuafrobrasil.org.br/acervo/ibiri-emblema-do-orixa-nana/
Acervo de M.A.Luz
Em 1964, realizou em Salvador sua primeira exposição individual,
início de uma carreira que o consagraria como o artista mais expressivo e
autêntico da tradição africano-brasileira. Estados Unidos, Argentina, França,
Inglaterra, Nigéria, Gana - esses são alguns dos países em que ele expôs, em
mostras individuais e coletivas, suas belas e elegantes esculturas, elaboradas
com materiais como couro, búzios, contas, sementes e nervura de palmeira. Nelas
se fazem presentes os elementos plásticos dos modelos tradicionais em novas
concepções, esculturas-objetos diretamente inspiradas no significado dos
símbolos em suas relações míticas, testemunhando explorações estéticas
profundamente ligadas, do ponto de vista formal e conceitual, à cultura de que
se originam. Como explica o pesquisador Marco Aurélio Luz, "o valor máximo
da arte escultórica de Mestre Didi está em conseguir estabelecer um padrão
estético original que harmoniza a passagem do espaço no contexto das recriações
profanas, mantendo a complexidade simbólica e a profundidade das elaborações
sagradas".
Tudo isso valeu a Mestre Didi uma profusão de prêmios e menções elogiosas, inscrevendo o seu nome na reduzida galeria dos artistas plásticos brasileiros, de qualquer origem, considerados dignos de tal reconhecimento. Uma vez mais, porém, isso não lhe trouxe a merecida fama fora dos círculos especializados.
Encontro SECNEB
É o caso da Secneb - Sociedade de Estudos da Cultura Negra no
Brasil, de Salvador, na qual foi escolhido, em 1974, conselheiro e coordenador
de assuntos comunitários. Na mesma linha, cabe destacar o notável trabalho
educativo realizado pela Secneb, em conjunto com o Axé Opô Afonjá, que
funcionou por quase dez anos: a Minicomunidade Obá-Biyi - uma escola que
incorporou ao seu currículo, bem como à sua prática pedagógica como um todo, os
elementos fundamentais da tradição africana no Brasil. Embora interrompida em
função dos eternos problemas de recursos financeiros que infelizmente costumam
acompanhar iniciativas dessa natureza, a Minicomunidade constitui um marco
revolucionário na história da pedagogia no Brasil, tanto pela orientação
pedagógica, que contemplava os elementos fundamentais da tradição nagô, quanto
pela metodologia, caracterizada pelo respeito à alteridade ou à diferença,
fundamental num contexto de multirracialidade e pluriculturalismo.
Ainda assim, e embora os alunos que por ela passaram apresentassem
melhor aproveitamento dos conteúdos curriculares e sensível redução na evasão
escolar, burocratas do Ministério da Educação resolveram cortar as verbas que a
mantinham, sob a alegação de que se tratava de uma experiência "de cunho
religioso". Com os novos ventos que sopram de Brasília, onde temos pela
primeira vez um Presidente da República aparentemente preocupado em encaminhar
soluções para a questão racial neste País, esperamos que esse importante
projeto possa ser retomado.
Certa ocasião, no apartamento do casal Zora e Antônio Olinto,
fiquei conhecendo Mãe Senhora, a respeitada sacerdotisa do Axé Opô Afonjá, da
Bahia. Sentada numa poltrona imponente como um trono, Mãe Senhora indicou-me um
assento próximo a ela. Colocou suas mãos sobre minha cabeça e respondeu a minha
indagação: "Sim, você tem compromisso com os Orixás; mas sua tarefa não é
dentro do terreiro. Sua missão é trabalhar pelos santos lá fora". Conhecer
Mãe Senhora significou um reforço da velha amizade que me ligava a seu filho
Deoscóredes Maximiliano dos Santos, ou Mestre Didi. Com Mestre Didi, tive o
prazer de compartilhar uma experiência inesquecível, embora as palavras de Mãe
Senhora me tivessem desestimulado de um aprofundamento maior nos ensinamentos e
nos mistérios do candomblé.
Corria o ano de 1969 e eu, recém-chegado aos Estados Unidos, vivia
o período inicial de um exílio que deveria prolongar-se por mais de uma década.
Em Nova York eu havia retomado uma breve experiência, iniciada no Rio de
Janeiro, pintando alguns quadros com motivos afro-brasileiros. Certo dia,
recebi na casa em que estava hospedado a visita do Mestre Didi e de sua esposa
Juanita. Mostrei a eles minhas tentativas pictóricas. Numa determinada tela,
onde se viam Xangô e suas três esposas, na imagem de Oxum, Didi se deteve,
apontando-a para Juanita. Trocaram um olhar significativo e eu os interpelei.
Queria saber se, na minha superficial formação religiosa, havia cometido alguma
barbaridade sacrílega. Porém, ambos acalmaram minha ansiedade, indagando como e
por que eu havia colocado, no olho de Oxum, um símbolo de Ifá, o Orixá que vê o
passado e o futuro, e conhece o destino dos seres humanos. Respondi-lhes que
apenas havia expressado um impulso artístico, sem nenhuma outra intenção. Eles,
então, me ensinaram que Oxum era o único Orixá a quem Ifá havia concedido o
poder de, igual a ele, ver e conhecer a sorte dos homens e das mulheres. Mas a
mim Oxum estava concedendo a graça de conhecer todas as dimensões dos seus
poderes, por meio dos seus símbolos e emblemas rituais.
Assim, inspirado por esse encontro com Didi, tratei de ampliar
aquele momento tão significativo da espiritualidade afro-brasileira em plena
Nova York. Contatei um babalorixá norte-americano formado nos templos ñañigos
de Cuba - o sacerdote Oseijema, que atualmente dirige uma comunidade-templo na
Carolina do Sul. Oseijema preparou uma recepção à altura do Alapini
afro-brasileiro. Localizado no Harlem, o templo de Oseijema anoiteceu
iluminado, florido, com o corpo sacerdotal vestindo seus paramentos solenes. Os
tambores soaram, enchendo a noite de ritmos quentes. E Didi foi recebido
solenemente como um verdadeiro príncipe-sacerdote de sua raça. E ambos,
Oseijema e Didi, naquele encontro, mais uma vez testemunharam a importância das
religiões africanas como instrumentos de coesão e fortalecimento da cultura de
um povo separado e dividido pela violência do colonialismo escravista.
Entretanto as peripécias do exílio me levaram a um périplo de um
ano na Nigéria, Universidade de Ifé, na qualidade de professor-visitante. Entre
os colegas havia um Babalaô, quero dizer, um sacerdote de Ifá, a quem solicitei
que lesse para mim o opelê desse orixá. Foi uma cerimônia longa, demorada, ele
falando iorubá, um intérprete traduzindo do iorubá ao inglês e minha esposa,
Elisa Larkin do Nascimento, traduzindo o acentuado inglês nigeriano para o
português. Em resumo, Ifá me dizia que quem me havia escolhido para filho não
fora Xangô, conforme suposição de outros pais-de-santo que desconheciam a
difícil iniciação no universo de Ifá. Este me afirmara que eu era um filho de
Oxum. Aí então compreendi as palavras de Mãe Senhora e a razão daquela pintura
que provocara o comentário de Mestre Didi.
Para ultrapassar as abstrações manipuladas pela produção
mistificada da consciência, o negro é obrigado não apenas a se inserir
corretamente no sistema social de classes, forçando a sociedade dominante a lhe
abrir espaços como indivíduo e como coletividade. Deve também assumir seus outros
aspectos reprimidos, em especial os que se relacionam à rica tradição cultural
afro-brasileira, onde se encontram os elementos que lhe fornecem uma sólida
identidade histórica. Desse ponto de vista, Mestre Didi constitui referência e
referencial obrigatórios, exemplo e paradigma da humanidade afro-brasileira em
sua luta secular pela afirmação de sua dignidade.
Assim, os 80 anos de Mestre Didi, que agora se completam, são
motivo de comemoração e regozijo numa comunidade cujas tradições se fincam
profundamente no respeito e reverência aos mais velhos como sustentáculos e
transmissores da cultura.
Para marcar a data, a
Editora Pallas, do Rio de Janeiro, acaba de republicar "Por que Oxalá usa
Ekodidé", em edição fac-símile da primeira edição, de 1966, com
ilustrações de Lenio Braga. É nesse espírito que eu conclamo a todos a se
juntarem a mim na emocionada saudação que faço a esse baluarte da cultura
afro-brasileira:
Axé, Mestre Didi!
O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco-PT-SP) - Senador Abdias do
Nascimento, permite-me V. Exª um aparte?
O SR. ABDIAS DO NASCIMENTO (Bloco-PDT-RJ) - Com muito prazer, ouço
o nobre Senador Eduardo Suplicy.
O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco-PT-SP) - Quero cumprimentar V. Exª
pela extraordinária aula com que hoje premia o Senado Federal, que nos permitiu
conhecer, com a profundidade que demonstra V. Exª, a tradição religiosa
afro-brasileira. Em seu pronunciamento, V. Exª ressaltou que os colonizadores
que foram à África procuraram acabar sobretudo com os valores religiosos do
povo para que, com maior eficácia, explorassem e destruíssem muito daquilo que
era importante para o desenvolvimento dos povos africanos. Nesta homenagem a
Didi, V. Exª traz muito daquilo que nem todos nós brasileiros conhecemos e,
assim, brinda-nos com uma síntese de obra tão importante. Senador Abdias do
Nascimento, cumprimento V. Exª pelo discurso. Muito Axé!
O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco-PDT-RJ) - Agradeço o aparte de V.
Exª e o incorporo ao meu pronunciamento.
Gostaria também de lembrar a V. Exª, que é representante do Estado
de São Paulo, que Didi acaba de merecer, na última Bienal de São Paulo, uma
sala especial para mostrar a importante obra escultórica que está realizando,
em profunda conexão e simbologia com os terreiros de candomblé da Bahia.
Muito obrigado pelo seu aparte, que ajudou a reforçar as minhas
palavras desta tribuna.
Muito agradecido a V. Exª.
Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/10/1997 - Página
22282




















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